Brincar: aquela atividade que todos os adultos desejam que as crianças desempenhem sozinhas. Sobretudo durante longos almoços familiares, só para conseguir respirar um pouco mais fundo, saborear mais convenientemente aquele derradeiro café pós-prandial ou simplesmente para rir das mesmas memórias familiares.

Mas brincar é tão mais do que isto! Brincar está na génese daquilo que somos, como nos projetamos, como nos compreendemos e reinterpretamos depois da projeção.

Um bebé com menos de 3 meses brinca de uma forma muito diferente: mexe incessantemente os braços, mãos, pernas e pés, de forma a compreender os movimentos do próprio corpo. Um bebé de 4 meses, subitamente, tem um largo interesse nas mãos, levando-as à boca. A boca do bebé é um elemento integrativo de informação: todos os objectos são conhecidos com recurso à boca. Quando um bebé traz as mãos até à linha média, transfere objectos entre as suas mãos, está a dar-nos claro sinais que a sua brincadeira, inicialmente virada apenas e só para o seu próprio corpo, está a evoluir para interagir com o mundo.

Para isso, quando o bebé atinge os 6 meses, adquire uma capacidade fundamental, que é supor que o objecto continua a existir, apesar de não o continuar a ver. Imaginam a complexidade disto? É acreditar para além do que os sentidos percecionam, dar-lhe um continuidade temporo-espacial e saber que, apesar de um objecto não ser visto, ele continua a existir!

Até aos 2 anos, os bebés são brincadores solitários. A exploração é sobretudo física, mecânica dos objectos, contextos e ambientes. Podem até brincar no mesmo espaço e partilhar materiais (partilhar num contexto lato, já que frequentemente não existe sequer partilha), mas não brincam uns com os outros.

A brincadeira paralela domina as crianças entre os 2 e 4 anos. Podem associar-se no uso dos mesmo brinquedos, mas cada criança terá a sua agenda. Interagem, claro, mas não no sentido cooperativo.

A brincadeira cooperativa, bem como a brincadeira simbólica é algo que se estabelece gradualmente e é variável de criança para criança. Sabemos que aos 4 anos é suposto estar estabelecida: brincam às casinhas, cada um com o seu papel e embalam bonequinhas como se fossem bebés.

Brincar é tão fundamental para o cérebro da criança que é praticamente insubstituível. Na brincadeira dominamos o nosso corpo, a nossa acção, as nossas emoções e criamos estratégias, colaboramos, relacionamos-nos com os outros. Brincar estreita os laços entre seres humanos. É uma oportunidade única para forjar amizades para a vida. Brincar é Insubstituível!

Por isso escrevo este texto: numa época em que para as crianças fora do pre-escolar, brincar é algo que surge ensanduichado entre blocos de aulas, brincar passa a ser substituído por outra necessidade: a aquisição de conhecimento. E a minha pergunta é: que conhecimento é este que não pode ser adquirido através da brincadeira?

Porque brincar livremente é preciso! Brincar é diferente de jogar jogos. Os jogos foram inventados por outras pessoas, com regras que outros ditaram. A brincadeira livre é aquela que as regras vão sendo feitas à medida que brincamos. Brincar é dançar sem coreografia, é sonhar acordado, é adaptar receitas de culinária, é desenhar sem pensar se está bem desenhado, é pintar um cavalo de azul porque sim, é tamborilar os dedos na mesa e imaginar que somos bateristas de uma banda de rock.

Como é que podemos incentivar crianças a brincar?

Não podemos! Não nenhum adulto que consiga ensinar uma criança a brincar, porque a brincadeira é inata e é o adulto que vai perdendo capacidades com o tempo. Por isso é que não é possível que o adulto seja melhor a brincar do que uma criança.

Então, como é que podemos incentivar os adultos, seres aborrecidos e desconectados deles mesmos, a brincar?

Frequentemente os adultos sentem-se inadequados, com baixa autoestima e oprimidos de obrigações para com o mundo e os filhos. Quando mergulhados nestas circunstâncias, também a brincadeira pode contribuir para o bem-estar dos adultos: fazer coisas como moldar plasticina, mudar coisas, como pintar um desenho, dançar só porque sim, cantar palavras ao calhas são coisas que conseguem mudar o mundo à nossa volta, fazê-lo progredir e com isso, mudar-nos a nós próprios.

É urgente brincarmos. Com os nossos filhos. Pelos nossos filhos. Por nós.

Um artigo da médica pediatra Joana Martins.