Nas últimas semanas, os media têm vindo a auxiliar na desconstrução de alguns dos mitos que permeiam a violência doméstica e a demonstrar que este fenómeno não conhece idades e transcende contextos sociais e financeiros. Ainda que com as respetivas investigações em curso, vejam-se, em Portugal, o caso de Betty e José Castelo Branco, mas também nos Estados Unidos, com Cassie e Puff Diddy.

Segundo a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), entende-se por violência doméstica o comportamento violento que é exercido, direta ou indiretamente, sobre qualquer pessoa que habite no mesmo agregado familiar (por exemplo, cônjuge, companheiro, filho, pai, mãe, avós), ou que, mesmo não coabitando, seja companheiro, ex-companheiro ou familiar. Não raras vezes, a violência doméstica envolve mais do que um tipo de violência. A título de exemplo:

  • Violência física: dar estaladas, murros, pontapés; apertar o braço ou o pescoço; bater com a cabeça da vítima na parede; entre outros atos de violência menos severos até formas extremamente severas, das quais resultam lesões graves, incapacidade permanente ou a própria morte da vítima.
  • Violência psicológica/emocional: desprezar, menosprezar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos; gritar para atemorizar a vítima; destruir objetos com valor emocional; perseguir no contexto social e laboral. Por vezes, a violência emocional pode ser (ainda) mais marcante que a física, razão pela qual a maioria das vítimas atribui a este formato de violência os maiores níveis de sofrimento.
  • Intimidação, coação e ameaça: relacionada com a anterior, consiste na manutenção de um clima constante de alerta e medo do agressor, com recurso a ameaças (por exemplo, ameaçar causar dano ou a própria morte a familiares da vítima, como os seus pais, filhos ou animais de companhia); mostrar ou mexer em objetos intimidatórios (por exemplo, limpar a espingarda, dormir com armas à cabeceira da cama); coagir a vítima à prática de condutas ilícitas (por exemplo, roubar) para conseguir ter controlo sob a mesma.
  • Violência sexual: a qual corresponde a toda a forma de imposição de práticas de cariz sexual contra a vontade da vítima (por exemplo, abuso sexual; exposição ou forçar a práticas sexuais com terceiros; queimar os órgãos sexuais da vítima). Por si só, a violência sexual é um importante preditor do homicídio.
  • Abuso económico: é uma forma de controlo através da qual o agressor nega à vítima o acesso a dinheiro ou bens de valor. Não raras vezes, o agressor impede a vítima de ter um emprego estável, facilitando o isolamento social. O agressor pode impedir ainda a vítima de gerir o seu próprio dinheiro, necessitando da autorização do mesmo para todos e quaisquer gastos financeiros. Outro exemplo é gastar o dinheiro da vítima para adquirir bens para o próprio ou utilizar os bens pessoais da pessoa, privando a vítima de o fazer e desfrutar dos mesmos.
  • Isolamento social: o roubo da liberdade também é uma forma de violência. Na maioria das vezes, o agressor afasta a vítima da sua rede social e familiar, aumentando a possibilidade de controlar e manipular e diminuindo a probabilidade de a vítima conseguir pedir ajuda. Este controlo envolve o mundo offline, mas também o mundo digital (por exemplo, assediar através de mensagens de texto ou chamadas, controlar publicações e amigos nas redes sociais, assim como as mensagens trocadas com ferramentas digitais; ameaçar com a publicação online de informações, fotos ou vídeos). Por vezes, a própria vítima acaba por se afastar dos outros, seja por vergonha, omitir eventuais marcas físicas das agressões, medo de um potencial momento de confronto entre o agressor e familiares ou quiçá pela manipulação emocional do agressor (“estamos tão bem só os dois”, “nunca tenho a atenção só para mim”, “se gostasses de mim, dedicavas-me mais tempo”). Aliado a este isolamento, pode assistir-se também à resistência em deixar a vítima sozinha com profissionais de saúde ou a tentativa de acompanhar todas as deslocações a serviços de saúde, procurando o agressor responder sempre às questões.

O isolamento social da vítima é um dos elementos que responde, em parte, a uma questão clássica da sociedade que tende a alimentar o estigma e a desvalorização do sofrimento das vítimas, concretamente: “Mas se ela está a sofrer porque é que não vai embora?”, contribuindo para que a vítima fique numa relação em que é maltratada.

Na esfera da manipulação emocional, destaca-se ainda o “ciclo da violência” que define a violência doméstica, e que engloba três fases centrais: a fase do aumento da tensão; que vem seguida da fase do ataque violento ou de um episódio de violência; e, depois, a fase de apaziguamento, reconciliação ou “lua-de-mel” em que a vítima providencia uma nova oportunidade ao agressor e à relação.

No que remete para a sociedade, destacam-se provérbios populares como “entre marido e mulher não se mete a colher”, ou as crenças irracionais que tendem a culpar as vítimas e legitimar a ideia de que o homem tem o direito soberano de agredir uma mulher como “se o marido lhe bateu, alguma ela fez” ou então “se não sai da relação é porque gosta de apanhar”.

No que diz respeito à própria família, esta normaliza, por vezes, o fenómeno da violência doméstica quando, por exemplo, uma mãe que também foi uma vítima no passado não auxilia a filha (“eu também passei por isso, sabes como são os homens, não vale a pena”) – sendo que, a própria filha, agora vítima, enquanto adulta, por ter assistido a violência na infância, pode não ver com tanta clareza a gravidade da situação.

A violência doméstica, para as vítimas, encontra-se associada a elevados níveis de ansiedade, depressão, perturbação do stress pós-traumático, ideação suicida, assim como apresenta impacto negativo na saúde física. É imperativo recordar que as crianças do seio familiar que assistem a dinâmicas permeadas por violência também são vítimas, ainda que silenciosas.

Peça ajuda, não se encontra sozinho(a)!

As explicações são de Sofia Gabriel e de Mauro Paulino, da MIND | Instituto de Psicologia Clínica e Forense.