Desde 2016 que Maria Palha dá voz a centenas de crianças mundo fora, Portugal incluído. Um projeto que para a psicóloga clínica formada no Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida, carregou desde o início um roteiro futuro bem definido: o de criar um mapa de bem-estar emocional e o de fundamentar uma sociedade mais humana.

O périplo mundial de Maria, levou-a junto de crianças, entre os cinco e os 12 anos, em contextos de vida diferentes: filhos de gangsters na Serra Leoa, crianças que crescem nas favelas brasileiras ou com monges nos mosteiros japoneses e em comunidades colombianas indígenas. Como denominador comum, o de saber o que as preocupava e que expetativas tinham face aos adultos, mas também as suas dicas, sugestões e recomendações. Como meta, coligir e alcançar estratégias que “cortem com ciclos de sofrimento crónico”.

Dando expressão e continuidade aos resultados obtidos com o trabalho de campo, nasceu o livro “Emocionar, um kit de saúde emocional para famílias” (edição Objectiva). A par, Maria Palha é uma das fundadoras da BeHuman, associação portuguesa sem fins lucrativos.

Em entrevista ao SAPO Lifestyle, a investigadora revela como os princípios deste kit de saúde emocional, podem ser uma ferramenta útil nos tempos que vivemos e que nos empurram para novos territórios da nossa capacidade física e emocional.  “Se souber o que gosto de fazer, vou conseguir estar mais tempo em casa. Se tiver ferramentas para melhores relações com os outros, terei menos conflitos. Se tiver interações mais significativas com o planeta acabo por ter um maior sentido de pertença”, conta-nos a psicóloga clínica.

No fundo, “ajudar as famílias a criarem uma conta poupança de emoções prazerosas para depois lidarem melhor com as crises”.

Há mais de 14 anos que Maria Palha mostra a sua inquietude face ao mundo. Fá-lo, a desenhar e implementar programas de saúde mental em diversos contextos. Um périplo que começou em Moçambique, como voluntária no Hospital Central de Maputo. Seguiu-se a candidatura aos Médicos Sem Fronteiras e anos de operações em contextos de crise humanitária, como epidemias, conflitos armados, catástrofes naturais.

Uma persecução do bem individual e comum que levou Maria Palha, entre outros países, à Índia, Nepal, Camboja, Moçambique, Zimbabué, São Tomé e Príncipe, Serra Leoa, Colômbia.

Maria Palha
créditos: Maria Palha

Maria Palha, julgo que a sua longa viagem ao encontro de crianças em diferentes contextos nos dá um bom mote para iniciarmos a conversa. Quer contar-nos quando e porquê começou esse seu projeto?

Comecei a fazê-lo em 2016 e estive três anos a entrevistar crianças em 13 países diferentes, Portugal incluído. A ideia era a de criar um mapa de bem-estar onde, em cada país, eu iria entrevistar as crianças para que me falassem das suas preocupações e para me darem dicas do que devemos fazer para sermos mais humanos. O objetivo deste kit de saúde emocional era conseguir, usando a voz das futuras gerações, cortar com ciclos de sofrimento crónico.

Foi incrível o resultado porque, de facto, compilei uma série de práticas de bem-estar, de vários países do mundo. As crianças davam-me dicas sobre o que devemos fazer para sermos mais humanos e isto incluía termos mais compaixão, preocupar-nos com os outros, sermos generosos, ter autoconhecimento.

No fundo, para as crianças, para sermos mais humanos, temos de ter mais autoconhecimento, aprender a ter melhores relações com os outros e entre gerações e a construir interações mais significativas com o planeta. Desenvolvemos, com isto, sentido de propósito e bem-estar comum.

estive três anos a entrevistar crianças em 13 países diferentes, Portugal incluído. A ideia era a de criar um mapa de bem-estar.

Esteve em diferentes continentes, em contextos vários. Isso exige-lhe uma grande capacidade de adaptação ao lugar e às populações?

Sim. Normalmente é preciso perceber quem temos perante nós. Por exemplo, na Líbia, no programa que aí criei, tive de o ajustar ao apoio do sofrimento dos prisioneiros de Muammar Kadhafi. Em paralelo, criei um programa para apoiar as mulheres da comunidade, por terem perdido os filhos, por terem sofrido violência sexual, entre outras questões. Dentro de um país é possível criar programas diferentes.

A ideia é, sempre, perceber que cultura é que temos, quais são as estratégias de coping [esforços cognitivos e comportamentais para lidar com situações de dano], o que é que as pessoas fazem para aumentar o seu bem-estar ou para cuidar de si. Posteriormente, há que ajustar um programa que lhes permita, acima de tudo, aceder aos seus próprios recursos.

Sim, mas as crises, tal como recentemente percebemos com a COVID-19 podem ser súbitas. Como se lida com isso?

Normalmente não estamos à espera das crises. Isso leva-nos a entrar numa situação de preocupação, de medo, de ansiedade, todas as emoções que são inerentes a um cenário de crise. Se soubermos quais são as mensagens destas emoções, ou as mensagens do quadro sintomatológico que surge perante uma situação destas, conseguimos utilizar as medidas de precaução necessárias, técnicas de autoajuda que nos impedem depois de procurar ajuda especializada. No fundo é fazer com a saúde emocional, o mesmo que fazemos com a saúde física.

Neste momento, se olharmos para a COVID-19, o paralelismo é grande. As pessoas já sabem quais são as medidas de precaução, já sabem qual é o quadro sintomatológico e é aprenderem a fazer exatamente o mesmo em relação à saúde mental e perceberem qual é o seu quadro sintomatológico.

Como gerir a nossa saúde emocional numa crise? Maria Palha encontrou resposta nas crianças de 13 países

Como se faz esse exercício?

Cada pessoa desenvolve um quadro sintomatológico dependente do seu histórico e das suas características pessoais. Mas normalmente uma situação destas, como uma pandemia, afeta diferentes dimensões, como a espiritual, a social, a económica.

É inevitável qualquer um de nós, nem que seja, em alguma das dimensões da sua vida, desenvolver alguns sintomas. Num primeiro momento será: "ah, eu não estou muito preocupado com a situação”. Mas há manifestações físicas, no que respeita aos ritmos biológicos. Por exemplo, as pessoas dormem de mais ou dormem de menos, apresentam alterações de apetite, dores no corpo sem causa física aparente, dores de cabeça. No fundo, é o corpo a sinalizar que algo merece a nossa atenção.

É o medo que nos vai fazer agir para tomarmos as precauções devidas para sobrevivermos.

E no que respeita às emoções, aquelas que não têm uma expressão de dor física?

É importante perceber que estas reações acontecem normalmente nos primeiros três meses a seguir a um episódio, neste caso o momento em que foi decretada a pandemia.

“Pais cansados é igual a filhos stressados” - Nuno Martins, autor do livro “Educar pela positiva”
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No que respeita em específico à sua pergunta, é muito comum vermos os medos, ansiedades e preocupações, uma sensação de desesperança. No início pode eclodir o pensamento, “isto vai ficar assim para sempre”. Acresce a sensação de zanga e revolta, até de conflito entre as pessoas. Há uma sensação de tristeza, de aborrecimento e de desconfiança. Surgem pensamentos “ruminantes” associados à preocupação e ansiedade.

Estas manifestações servem-nos como um sinal de alerta. Se ignoramos e desvalorizamos, podem passar de uma reação normal para uma reação doente e aqui reside a questão de aprender quais são as técnicas de autoajuda para reduzir reações que no início serão normais.

E quais são estas técnicas?

Primeiro é importante entender que ao nível das emoções, elas são adaptativas e têm uma função muito importante que é ajudar-nos a sobreviver perante uma ameaça. O medo sinaliza-nos que, de facto, há uma ameaça e é o medo que nos vai fazer agir para tomarmos as precauções devidas para sobrevivermos. Por isso é que é tão importante, embora desconfortável e difícil, que haja este medo. É ele que vai fazer com que as pessoas procurem as informações necessárias, tomem as medidas necessárias de precaução, se protejam e percebam onde é que está o sistema de referência existente em caso de necessidade de procurar ajuda.

Outra coisa é a zanga e a agressividade. As pessoas zangam-se com o Sistema, com o Governo, com o Chefe, com a empresa, com a família, por aí fora. A zanga é uma emoção de ação e de energia e normalmente significa que é o momento de dar um murro na mesa. É esta zanga que nos permite, por exemplo, mudar velhos hábitos, perante novas rotinas. Mas, é preciso saber usar a zanga, fazendo-o perante as coisas que temos de mudar, não para a virar para os outros.

Como gerir a nossa saúde emocional numa crise? Maria Palha encontrou resposta nas crianças de 13 países
créditos: Editora Objectiva

Ou seja, a zanga pode ser usada em nosso benefício?

As pessoas como ficam zangadas e frustradas, podem não saber canalizar bem esta zanga e acabam por gerar uma série de conflitos. Assim, falo da zanga, como uma forma de canalizar esta energia que surge para as mudanças necessárias.

Entrevistei centenas de crianças em diferentes países para criar o “kit de Saúde Emocional”. Perguntava-lhes: “o que podemos fazer para termos mais paciência?” Já que falamos em zanga, um dos segredos é ter paciência e compaixão. Para aumentar as doses de paciência, as crianças referiam: “isso é fácil, temos de respirar fundo ou beber um copo de água. E depois é dizer para dentro: eu sou forte para esperar por...”. Esta resposta é engraçada porque dá-nos três ou quatro segundos de ´para, escuta e olha`. Um ´reflete e decide qual a ação que vais tomar a seguir`.

“o que é que odeias que os adultos façam?” E a resposta das crianças era: “quando eles vão trabalhar ou não têm tempo para estarmos juntos”.

Como gerir a nossa saúde emocional numa crise? Maria Palha encontrou resposta nas crianças de 13 países

Nos últimos meses os pais reencontraram em casa tempo para os filhos. Este está a ser um tempo de reaprendizagem da relação com os nossos filhos?

Sem dúvida. No seguimento do que referi há pouco, uma das perguntas que fazia às crianças era: “o que é que te faz feliz?” E o que as fazia feliz era estarem com a família. De seguida perguntava: “o que é que odeias que os adultos façam?” E a resposta das crianças era: “quando eles vão trabalhar ou não têm tempo para estarmos juntos”.

Na verdade, parece que esta é uma questão das crianças e dos adultos. Estes, queixam-se que não têm tempo para estar com as crianças. Quando estão, parece que há uma dificuldade de apropriação de linguagem. Ou seja, neste momento há muitos recursos, muitas atividades, muitos jogos e isto é uma situação que exige uma adaptação sem dúvida. De repente, um CEO de uma empresa que tem de estar a fazer teletrabalho e a gerir as dinâmicas domésticas, vai ter de prestar atenção e tem de se adaptar a esta linguagem. Este exercício pode exigir a busca de material didático, de uma atividade, o que inclui no meu livro, um kit de saúde emocional para famílias com atividades, dicas, de como falar com as crianças, que assuntos introduzir, que tipo de linguagem, que tipo de jogos.

O facto de este momento exigir que nos tornemos em verdadeiros agentes de saúde pública, exige aprender a cuidar de si, aprender a cuidar do próximo e da comunidade que nos rodeia.

Entre adultos também vivemos tempos novos. A Maria falava da saúde emocional dentro de casa. Pensando num casal, temos dois “ecossistemas” emocionais a interagirem um com o outro e que nem sempre são iguais…

Esse é um ponto importante e aproveito para pegar nesta questão dos conflitos e das zangas. O que acontece muitas vezes é que as pessoas têm formas muito diferentes de encarar as situações de crise. Estas, como referi, são inesperadas e fazem-nos perder realidades: pessoas, coisas, bens que nós gostávamos. Isto exige um processo de luto.

Neste processo de luto que cada um vive, basta que estejam em fases diferentes, leva a que as pessoas entrem em conflito. Por exemplo, imagine que um dos membros do casal usa o humor para lidar com a situação e o outro vive com mais medo e com ansiedade. Isto gera muitos conflitos.

O que é importante é o casal estar na mesma página. Isto significa sentarem-se e criarem um momento da família onde se fala das preocupações e as expectativas que cada um tem. Juntamente a isto, acrescentam-se informações factuais do que acontece.

Se houver a partilha de preocupações, automaticamente vai haver também a partilha de soluções e até de formas de ajudar o próximo e isto tira a carga de tabu e de estigma do que se está a viver e acaba por aproximar o agregado.

Nos últimos meses vivemos uma experiência coletiva. A Maria Palha considera que, depois deste período de impacto nas nossas vidas da COVID-19, o “novo normal” será assim tão diferente?

Tenho a certeza que sim. Já estive em muitos contextos, com muitas crises e na realidade o que posso dizer com muita certeza é que o ser humano é muito resiliente e quando tem oportunidade, consegue desenvolver a sua humanidade a um nível que às vezes desconhecia. O facto de este momento exigir que nos tornemos em verdadeiros agentes de saúde pública, exige aprender a cuidar de si, aprender a cuidar do próximo e da comunidade que nos rodeia. Esta aprendizagem vai acontecer inevitavelmente e vai aumentar sem dúvida o conceito de bem-estar comum.

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