Após o lançamento do livro Porque é que ninguém me disse isto antes?, a psicóloga clínica inglesa Julie Smith oferece aos escaparates nacionais  um novo livro que "promete ser um companheiro acessível e direto para momentos de maior fragilidade emocional". Com uma linguagem arquitetada num tom empático, a obra Abrir quando... (edição Presença) apresenta-se como um guia prático para abrir sempre que a vida se complica. Páginas endereçadas a leitores que procuram apoio concreto quando se sentem perdidos, confusos ou emocionalmente sobrecarregados.

Organizado em capítulos curtos, o livro combina cartas pessoais da autora com orientações clínicas baseadas em mais de uma década de experiência no acompanhamento psicológico. "A proposta passa por oferecer ao leitor não apenas consolo, mas também ferramentas aplicáveis para lidar com a crítica interna, a solidão, o medo, o trauma ou a tomada de decisões em tempos de incerteza", lemos na sinopse à obra.

Com mais de quatro milhões de seguidores nas redes sociais, especialmente no TikTok, a psicóloga clínica Julie Smith tornou-se uma voz influente na divulgação de conteúdos de saúde mental.

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

Quando odeia a pessoa em quem se tornou

"(...) o eu não é algo preconcebido, mas algo em constante formação por meio da escolha da ação (...)"

John Dewey

Uma carta de mim para si

Pense em alguém da sua vida que ama incondicionalmente. Alguém que significa o mundo para si. Alguém a quem quer absolutamente o melhor. Recorde uma memória de um momento em que o viu descontraído e alegre. Repare em como essa imagem faz com que se sinta.

Agora imagine esses olhos cheios de dor enquanto ouve repetidamente as palavras "odeio-me". E atente em como se sente quando percebe que esta autoaversão se equipara à sua.

Com cada pedaço do seu ser, quer convencer essa pessoa do valor e do brilho que ela não consegue ver em si mesma, porque, do exterior, pode ver, claro como água, que há muito para amar nela. Muito para acarinhar e cuidar. Se pelo menos ela também o conseguisse perceber. Independentemente de essa pessoa corresponder às expectativas do mundo ou às próprias, isso em nada altera o seu amor por ela. Pode ver do exterior que esses sentimentos de aversão e ódio não são indicadores de mérito, pois ela entendeu tudo mal. Sabemos que ela merece amor e pertença, mesmo quando não o reconhece.

Julie Smith
Julie Smith Psicóloga clínica Julie Smith. créditos: Presença

Mantenha presente essa imagem de si e da pessoa que ama. Porém, desta vez, ponha-se no lugar da outra pessoa e eu ficarei no seu. Do exterior, posso perceber que a sua autoaversão é destrutiva para si, e nada mais.

E percebo que se agarra a ela como a única verdade possível, quando sei que há muito mais do que aquilo que consegue ver da sua perspetiva.

Apesar do meu profundo desejo para mudar a sua opinião, nenhuma palavra desta página ou de qualquer outra pode apagar as experiências que o ensinaram a odiar quem é. Não podemos fechar esse caminho na sua mente. Podemos apenas criar um novo. Um caminho cheio de compaixão e restituição.

No entanto, não lhe vou dizer para começar a entoar frente ao espelho "eu amo-me". Se não gostamos de quem somos hoje, o nosso foco deve estar em quem tencionamos ser amanhã. Pois a boa notícia em tudo isto, meu amigo, é que não estamos esculpidos em pedra e os capítulos anteriores da nossa história não têm de determinar os restantes. Somos uma grande quantidade de potencial. E é nossa a responsabilidade de assumir o comando da pessoa em quem nos estamos a tornar, de nos tratarmos como um valioso trabalho em curso, mesmo quando ainda não o sentimos.

Já vimos onde é que a alternativa nos conduz, e isso é algo que não desejaríamos a ninguém.

Viver de acordo com a pessoa que mais queremos ser, uma pessoa que podemos amar, não pode acontecer até começarmos por nos tratar com respeito, compaixão e humildade.

Distanciar-se dessas narrativas antigas é comprometer-se firmemente com proteger-se a si mesmo, querer a melhor vida possível para si e fazer a melhor contribuição possível para o mundo. Significa, por um Iado, uma aceitação radical das partes de si de que gosta menos e,por outro, ter a mesma honestidade, gentileza e encorajamento que demonstraria à pessoa emque pensou há pouco. Significa assumir o controlo em relação a como se trata a si mesmo, como se relaciona com os outros, e como se envolve com a vida, mesmo quando os velhos hábitos são resistentes, sabendo que a autoaversão contribui muito para o reter.

Ferramentas em tempo real

A nossa apreciação de nós mesmos raramente muda de um dia para o outro. Como a maior parte das coisas, esta muda com pequenos desenvolvimentos ao longo do tempo. Além disso, nunca é algo que nos surja já feito. Foi moldada por muitas pessoas, experiências e ações diferentes, muitas das quais nem reconheceríamos como tendo sido significativas. Nenhuma das ferramentas que se seguem proporcionam um volte-face milagroso, mas cada uma delas contribuirá consideravelmente para a sua capacidade de fazer escolhas cuidadosas sobre como se relaciona consigo mesmo enquanto avança, e de perceber o impacto que essas escolhas têm na sua vida.

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abrir quando créditos: Presença

Não disfarce a autoaversão com o perfecionismo

Uma das formas pelas quais o ódio por nós próprios se revela nas nossas vidas é quando procuramos as relações erradas, sabotamos as que poderiam ter sido saudáveis e nos afastamos de oportunidades. No entanto, isto nem sempre parece autodestruição óbvia.

Nos nossos esforços para nos libertarmos de sentimentos e crenças psicologicamente ameaçadores, desenvolvemos algumas regras de vida que garantem manter-nos seguros da realidade dessas crenças fundamentais nocivas. Isto pode assemelhar-se a: "Desde que todos à minha volta gostem de mim, estou bem." Então começamos a trabalhar no sentido de garantir que todos nos consideram úteis, amáveis e merecedores. Uma tarefa impossível de manter, que absorverá toda a energia que conseguimos investir nela, e ainda mais. A exaustão resultante é triste, mas a parte mais triste é que, por mais que todos gostem de nós por tudo o que fazemos, nunca somos completamente bem-sucedidos. Nunca nos sentimos profundamente aceites. Pois, bem no fundo, continuamos a acreditar que é tudo condicional. Sem o esforço constante, não nos sentimos merecedores de amor e pertença.

Deste modo, esteja atento a tendências perfecionistas que mascarem a autoaversão, mas apenas enquanto tenta suster o insustentável. Fazer uma contribuição valiosa para a sua comunidade é um passo positivo, mas deve ser apoiada numa apreciação de si mesmo que o possa man-ter através da imperfeição e dos altos e baixos nas suas relações com os outros.

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