Os nossos sentidos são vitais para a compreensão de tudo o que nos rodeia. Eles enriquecem as nossas experiências de vida e são parte integrante das nossas memórias. No entanto, são falíveis e inconsistentes, vulneráveis a diferenças entre indivíduos e a doenças, pelo que aquilo que consideramos ser real não é mais do que uma reconstrução complexa, uma realidade virtual criada pelo nosso cérebro. A verdade é que os nossos sentidos podem trair-nos, oferecendo-nos a sua própria interpretação do que podemos ver, ouvir, cheirar, tocar ou sentir.

Disso mesmo nos dá prova o autor do livro O Estranho e Surpreendente Mundo dos Sentidos (edição Vogais). Guy Leschziner, neurologista, compila no seu livro relatos de quem sofreu alterações extraordinárias de um dos cinco sentidos: um homem que nunca sentiu dor, uma pessoa que tem calor em vez de frio (e vice-versa) e um homem que sente o sabor das palavras. “Estes relatos surpreendentes demonstram as limitações dos sentidos, a sua dependência do bom funcionamento do nosso sistema nervoso e, mais importante, o modo como a perceção do mundo pode ser bastante diferente da realidade para cada um de nós”, lemos na apresentação ao livro.

Guy Leschziner é também autor do livro O Cérebro Noturno: Pesadelos, Neurociência e o Mundo Secreto do Sono (ambos os livros publicados pela Vogais).

De O Estranho e Surpreendente Mundo dos Sentidos publicamos um excerto do primeiro capítulo “De que são feitos os super-heróis”.

“De que são feitos os super-heróis”

“Da dor só podemos desejar uma coisa: que pare. Nada no mundo é tão mau como a dor física”.

George Orwell, 1984

“Uma simples mão — cuja única vontade é ter uma coisa em que tocar que retribua o toque”.

Anne Sexton, The Touch

“Quando era criança e um dos meus dentes caiu, o meu pai cometeu o erro de me dizer que, se o pusesse debaixo da almofada, a fada dos dentes me daria uma libra”, conta‑me Paul, agora com 34 anos.

“Eu pensei imediatamente Oh, bestial! Tenho imensos dentes na boca. São muitas libras!”, diz, rindo‑se. “O meu pai apanhou‑me com um alicate, a tentar arrancá‑los”. Sentado à mesa da cozinha com Paul enquanto o pai, Bob, e a mãe, Christine, andam de um lado para o outro atrás de nós, as aterradoras histórias da sua infância começam a multiplicar‑se.

Paul volta‑se para os pais e recorda: “Lembro‑me de uma vez vos ter pedido aperitivos ou batatas fritas e vocês terem respondido que não podia comer porque estava quase na hora do jantar. E eu fiquei parado, a partir os dedos, porque não podia ter o que queria”. Mostra‑me como torceu os dedos para trás, e, na minha cabeça, ouço‑os partir. “Sim, fiz coisas estúpidas. Coisas que, obviamente, não passariam pela cabeça de uma criança normal”. E, quando ouço Paul e Bob falarem, torna‑se óbvio que ele foi tudo menos uma criança normal.

Na verdade, não é um adulto normal — porque Paul não sente dor. Absolutamente nenhuma. Nunca sentiu. Não tem noção do que é a dor. Ele diz‑me: “É difícil mostrar empatia por uma pessoa que está com dores. É difícil compreender a dor quando não a sentimos”.

Paul, o homem que não sabe o que é a dor. O estranho e surpreendente mundo dos sentidos
Guy Leschziner é neurologista nos hospitais Guy e St. Thomas, em Londres. Dirige o Sleep Disorders Centre, um dos maiores serviços de investigação e tratamento de distúrbios do sono da Europa.

A incapacidade de sentir dor é coisa de super‑heróis e o desejo mais profundo das pessoas que são torturadas por ela. Mas, infelizmente, a incapacidade que Paul tem de sentir dor não está associada a nenhuma superforça, a ossos inquebráveis e a supercura. Peço‑lhe para calcular quantas vezes partiu um osso. “Tem de ser na ordem das centenas, desde pequenas fissuras até grandes fraturas. Dedos, tornozelos, pulsos, cotovelos, joelhos, ancas, crânio — acho que não há um único osso que eu não tenha partido”.

Quando entrei em casa, Paul já estava sentado à mesa. Não fiquei especialmente impressionado — era um homem jovem de cabelo louro, com óculos; sem nada de extraordinário que o distinguisse. Se passasse por ele na rua, não olharia duas vezes. Enquanto conversamos, percebo que as suas mãos estão um pouco deformadas, mas só quando me vou embora e ele se levanta é que reparo em quão baixo é. Deve ter pouco mais de um metro e meio. “Eu sou assim baixo por causa dos estragos que fiz aos meus ossos quando era criança. Parti muitas vezes as placas de crescimento nos joelhos, o que tolheu significativamente o meu crescimento”. E, quando me acompanha à porta, percebo que coxeia e tem as pernas arqueadas, um sinal de inúmeras fraturas mal cicatrizadas.

Pense nos seus cinco sentidos. Coloque‑os por ordem — no cimo ponha o sentido sem o qual não conseguiria viver e, no fundo, aquele que sacrificaria primeiro. Uma liga de futebol de fantasia; uma lista dos jogadores de que necessita para vencer o torneio, por ordem de importância decrescente. Para mim, a visão estaria sem dúvida no topo. Perder a visão, ser incapaz de ler, de ver os rostos dos amigos e da família, de contemplar uma paisagem maravilhosa seria demasiado para suportar. Em seguida, a audição: não conseguir ouvir música ou palavras seria quase intolerável. Estes dois sentidos permitem‑nos detetar o mundo à distância, conhecer o meio ambiente para lá da proximidade imediata dos nossos corpos, sentir prazer, percecionar o perigo, participar em interações sociais e na partilha de ideias e conceitos. No fundo da minha lista, na fila dos descartáveis, estariam o olfato e o paladar.

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Seria horrível ser privado do rico mundo da comida ou desprovido do prazer olfativo, mas a minha vida continuaria. O tato — bem, não competiria verdadeiramente com a visão ou a audição, por isso está na posição número três. Porém, pense melhor. Considere uma vida sem tato: a incapacidade de sentir o abraço dos nossos entes queridos, o calor do Sol no rosto, a sinalização de calor quando nos aproximamos de um incêndio. No entanto, o tato não se limita a estas sensações. Dependemos do tato para caminhar bem, para sentir as ondulações e irregularidades do chão sob os nossos pés, para saber onde estão os nossos corpos no espaço, qual é a posição de uma mão em relação à outra enquanto atamos os atacadores dos sapatos ou comemos de garfo e faca, para tirar a moeda certa do bolso quando pagamos um bilhete de autocarro. Sem o sentido do tato, até estes atos muito simples seriam impossíveis. Embora se possa pensar que é um sentido menor, é muito provável que seja precisamente o oposto. Talvez o tato seja tão intrínseco ao ato de ser, esteja tão enredado na nossa existência e na nossa consciência que é quase impossível imaginar uma vida sem este sentido. A nossa linguagem reflete isto com muita clareza. Descrevemos as pessoas como “quentes” ou “frias”, “suaves” ou “duras”, atribuindo caráter ou sentimentos a sensações físicas. Usamos frases como “Estou tocado pela tua bondade”, “É uma dor de alma” ou “Ele tem tendência para reagir a quente”. A linguagem da vida baseia‑se muito mais no tato do que na audição ou na visão. Mas não são apenas padrões linguísticos. Isto converte‑se em realidade.

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créditos: Akshar Dave/Unsplash

Experiências demonstraram que, dependendo se está a segurar uma bebida quente ou fria nas mãos enquanto conversa com outra pessoa, apreenderá o seu interlocutor como “mais quente” ou “mais frio”, e que mexer num bloco de madeira dura ou num pedaço de tecido macio influenciará a perceção que tem dessa pessoa. O calor de estar encostado ao peito da mãe, a associação com uma sensação de segurança e conforto, impregna o resto das nossas vidas — um aspeto intrínseco da natureza humana e da linguística. O toque liga‑nos às pessoas que nos rodeiam, com os efeitos de união de um abraço, de um toque no braço, de uma palmada nas costas, de uma carícia. O sentido do tato vai muito além de simples impulsos elétricos desencadeados na pele e está entrelaçado nas nossas emoções, memórias, sentido do eu e sentido dos outros. E, ao ver o impacto da perturbação deste sentido em muitos dos meus pacientes, não tenho dúvida de que não me voluntariaria para perder o tato antes de outros sentidos.

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Como descobrirá ao longo deste livro, a ausência de sensação pode ser uma coisa devastadora. Todavia, a ausência de dor — a mais forte das nossas sensações — parece uma bênção, não uma praga. A dor grita até chegar à nossa consciência, obscurecendo tudo o resto. A dor lancinante de bater com o dedo grande do pé em alguma coisa, de partir a cabeça ou de cortar o dedo afasta todas as outras sensações e sentidos, exigindo atenção e ação imediatas — e, como Paul demonstra, por bons motivos. A dor impede‑nos de nos magoarmos, ou, pelo menos, de cometermos o mesmo erro duas vezes. Precisamos de dor para aprender a evitar objetos afiados ou quentes, para nos ensinar o que é potencialmente prejudicial no nosso meio ambiente e para detetar lesões ou infeções. Se nos magoarmos, a dor obriga‑nos a concentrarmo‑nos no tratamento dessa parte do corpo, protegendo‑a e imobilizando‑a para que possa recuperar e sarar antes de começarmos a usá‑la de novo.

Estas múltiplas funções da dor são refletidas pelas suas diversas qualidades. Um aspeto importante é saber de onde vem, identificando o local da ferida ou da lesão. É crucial para a nossa sobrevivência sabermos que a agonia que sentimos se deve a termos queimado o dedo numa panela quente ou a um espinho no dedo grande do pé esquerdo.

Porém, a dor também tem uma componente emocional — o doloroso mal‑estar, o medo —, que é um potente impulsionador da aprendizagem de como a evitar. Sem a bagagem emocional que acompanha essa sensação de dor, sentir‑nos‑íamos menos inclinados a aprender com os nossos erros, a desenvolver estratégias para evitar a repetição de incidentes. Os riscos seriam demasiado grandes, as nossas vidas seriam reduzidas, a sobrevivência da nossa espécie ficaria em risco. Na verdade, os nossos cérebros são a prova da importância dos aspetos emocionais da dor para a nossa evolução. As áreas do cérebro envolvidas neste aspeto da nossa experiência de dor estão nas partes evolutivas mais antigas dos nossos cérebros, estruturas que se desenvolveram há milhões de anos no percurso de evolução dos animais, preservadas para sempre, a marca da utilidade do cérebro.

Estudos em animais e seres humanos mostram que múltiplas áreas do cérebro estão envolvidas na perceção da dor. Não há um ponto único, uma área única do cérebro onde a dor é “sentida”. Na verdade, os mecanismos do cérebro que estão na base da perceção da dor são mais uma rede do que uma simples via. Esta rede reflete a nossa compreensão dos diferentes aspetos da dor: a capacidade de identificar o local da dor no corpo, a que se dá o nome de componente “discriminativo‑sensorial”, e a carga emocional, muitas vezes referida como a componente “afetiva”. Separados, mas interligados.

As informações acerca da origem da dor são transmitidas para a área do cérebro que está envolvida em todos os aspetos do toque — o córtex sensorial. Esta tira de tecido cerebral é o local onde se encontra o homúnculo, o mapa sensorial do corpo no cérebro. Quando é representado num diagrama ou modelo, mostra uma figura extremamente distorcida com lábios, língua, mãos e pés muito inchados, onde a densidade dos nossos recetores de sensação é maior e a necessidade de discriminar a localização precisa de qualquer toque é mais pronunciada. Em simultâneo, estas informações sobre a dor são transmitidas para áreas ainda mais antigas do cérebro em termos evolutivos — as áreas que são responsáveis pelas emoções e pelos impulsos; as áreas do cérebro que codificam as nossas necessidades primitivas — necessidades benéficas como a fome, a sede e o desejo sexual — e as nossas necessidades dissuasivas — como o medo, o perigo e, muito importante, a dor. E é aqui, no sistema límbico, a ligação emocional do cérebro que se situa nas suas profundezas centrais, que é processada a componente afetiva da dor. Uma área do sistema límbico em particular, o córtex cingulado anterior, está implicada no caráter desagradável do medo e da dor e é um forte impulsionador da necessidade de evitar dor. Danos nesta área do cérebro resultam num fenómeno denominado “assimbolia da dor”, que é a perceção da localização, qualidade e intensidade precisa da dor sem o contexto emocional, deixando os indivíduos indiferentes à dor e mais lentos a sair dela devido à inexistência de um impulso emocional para evitá‑la de novo a todo o custo. De igual modo, a destruição de vias que levam à área do cérebro responsável pelo nosso mapa corporal pode resultar num estado em que as pessoas sentem o impacto emocional negativo da dor sem identificarem a sua origem.

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Recordo‑me da fase em que os meus filhos começaram a andar — uma escorregadela por alguns degraus ou a dor de uma queda eram importantes lembretes de que tinham de ter cuidado. Um estalo da irmã: uma lição de que tinha de respeitar os brinquedos dela. Uma das minhas primeiras recordações é de quando tinha três ou quatro anos. Recordo‑me de um dia quente e soalheiro, típico do verão numa pequena aldeia na orla da Floresta Negra, a alguns quilómetros do Reno, que define a fronteira com a França. Eu tinha estado a brincar com os meus amigos, a andar de bicicleta, a brincar no parque infantil, e o ar estava cheio de guinchos de alegria.

Parecíamos um bando de miúdos de rua, a deambular pelas ruelas da aldeia sem a supervisão de adultos. O calor do Sol começava a diminuir, e recordo‑me de estar cansado e com fome e de a pesada porta de vidro do nosso prédio ser um obstáculo entre a minha pessoa e o meu jantar. Quando a empurrei, embateu numa abelha, que voou na minha direção e me picou no braço. Ainda sinto o pulsante saco de veneno que provoca dor a entrar na minha pele. Aqueles gritos de alegria depressa foram substituídos pelos meus berros de agonia — e desenvolvi um respeito por todas as coisas que voam e picam que nunca tinha sentido até àquele momento. Porém, estas lições de vida são conceitos totalmente desconhecidos para Paul.

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créditos: Aliaksei Lepik/Unsplash

Quando era criança, não tinha pistas para não fazer certas coisas. Dir‑se‑ia até que procurava recompensas ao danificar o próprio corpo. “Eu costumava fazer coisas estúpidas como pular de um lanço de escadas ou saltar do telhado. Não havia desvantagens. Eu não sentia dor. A única coisa que via era todas as pessoas que me rodeavam a darem‑me imensa atenção”. Recorda internamentos hospitalares, estar rodeado de médicos e enfermeiros, a sentir‑se mimado e importante. Perversamente, magoar‑se era uma experiência positiva para Paul. O seu pai, Bob, recorda um episódio em que encontrou o filho de pé no telhado plano da garagem. “Entrei em pânico. E a vizinha do lado disse‑me “Esse é o teu problema, Bob. Tu sabes que as crianças gostam de testar os limites. Devias dizer‑lhe ‘Se quiseres saltar, salta, e parte as duas pernas’. É psicologia inversa!” E eu respondi: “Vamos ver. Acho que tens razão!” Voltei‑me para ele e disse: “Paul, se queres saltar e partir as duas pernas, e passar os próximos 15 dias no hospital, é contigo”. E ele saltou imediatamente do telhado e partiu as duas pernas… e passou várias semanas no hospital. Adorou”.

Paul é completamente incapaz de sentir dor porque sofre de uma condição genética raríssima chamada insensibilidade congénita à dor. Desde que nasceu, nunca sentiu dor física — nunca teve uma dor de cabeça, uma dor de dentes nem qualquer outra dor. Bob conta que a mulher, Christine, percebeu desde o início que havia alguma coisa estranha com o filho. Recorda‑se de ela dizer: “Não achas estranho ele nunca chorar?” Bob pensou que Paul era um bebé feliz. Mas um dia o filho, na altura com cerca de 10 meses, estava deitado no chão, rodeado de bonecos, quando Bob voltou do emprego. Bob conta: “De repente, a Christine deu um salto, porque eu estava a pisar o braço do Paul! Os brinquedos que estavam no chão eram tantos que eu não tinha percebido”.

Apesar de estar a ser pisado por um adulto, Paul não chorou. Nem soltou um gemido. Nessa altura, Christine estava convencida de que o filho era muito diferente dos outros bebés. Só algum tempo depois desse incidente, quando Paul desenvolveu um abcesso e foi levado para o hospital, é que o seu estado foi identificado por profissionais de saúde. O médico que o observou perguntou se ele chorava de desconforto e Bob respondeu‑lhe: “A minha mulher tem a ideia louca de que ele não sente dor”. E foi assim que começou o processo de diagnóstico de Paul. Bob conta‑me: “Fomos ao hospital de Great Ormond Street e eles colocaram‑lhe uns elétrodos.

E disseram: “Vamos subir dez volts de cada vez. Ele sentirá dor nalgumas partes do corpo”. Ficaram muito preocupados porque as veias do seu rosto e braços ficaram salientes, mas subiram até aos 300 volts e não conseguiram encontrar a mais pequena reação à dor em qualquer parte do seu corpo. E eu recordo‑me de dizer que seria bom se ele fosse pugilista quando crescesse, mas é evidente que não percebia as implicações de não sentir dor”.

Tenho curiosidade de saber se a compreensão que Paul tem da dor psicológica também é afetada; se a ausência de dor física impediu de alguma forma o desenvolvimento das partes do sistema nervoso que processam a angústia existencial emocional. Ele sentiu a dor do desgosto amoroso, o sofrimento da perda? Tanto quanto percebo, este aspeto da sua vida é igual ao de todas as outras pessoas.

“Durante a infância e a adolescência, disseram‑me muitas vezes que a emoção e a dor [física] estão interligadas", diz‑me Paul.

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“Eu sinto toque, sinto emoção, sinto todas as outras sensações. Sinto‑as todas, exceto a dor”. Pergunto‑lhe se compreende a um nível pessoal, a um nível puramente intelectual, quando as pessoas falam sobre a dor de um coração partido ou a dor da tristeza; se a empatia que é incapaz de sentir quando vê pessoas em sofrimento físico se estende ao sofrimento emocional. Mas Paul é muito claro em relação a este ponto. Perdeu várias pessoas na vida, membros da família que faleceram. A dor interior, a profunda e torturante sensação de perda, é uma coisa que lhe é muito familiar. E, quando conversamos acerca da vida em termos mais latos, é óbvio que sente a dor de oportunidades perdidas, de amor não correspondido, de sonhos não realizados. O que acontece no seu caso é que há uma separação entre a dor física e a dor emocional. À primeira vista, isto parece um pouco lamentável — se a pessoa é incapaz de sentir dor física, talvez fosse preferível não sentir qualquer tipo de dor. Porém, sem a perturbação da perda ou o medo dela, talvez também não haja a alegria do amor nem a dor da saudade.

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créditos: Ehimetalor Akhere Unuabona/Unsplash

Sem esta complexidade emocional, como seriam as nossas vidas? Seriam como a de um psicopata, incapaz de estabelecer relações, incapaz de criar empatia com a vida de outras pessoas. A capacidade de sentir esta dor emocional implica que as redes centrais que controlam este aspeto da sensação de dor estão presentes em Paul, que não foram afetadas pela doença. O seu problema é mais fundamental e está apenas relacionado com a perceção da dor física em si. As lesões que sofre no corpo e os impulsionadores normais de danos nos tecidos resultantes de queimaduras, cortes ou inflamações não chegam ao cérebro em si.

A condução de impulsos através do sistema nervoso depende de uma peça muito específica de maquinaria molecular chamada canal de sódio. Os canais de sódio existem como poros moleculares na membrana exterior das células nervosas — também conhecidas como neurónios —, como os buracos de um passador fino.

No entanto, contrariamente a um passador, estes poros mantêm‑se quase sempre fechados e só são abertos em determinadas condições. Quando estimulado, o canal de sódio abre‑se, permitindo a entrada de iões de sódio e da sua corrente elétrica positiva na célula, como água a sair de uma banheira quando a tampa é puxada. Esta pequena mudança de carga elétrica na superfície da célula nervosa não resulta por si só na transmissão de sinais, mas é a natureza do impulso que abre o canal de sódio que é crucial para este processo fisiológico, que é a pedra angular da vida. O canal de sódio tem uma característica muito específica: deteta pequenas alterações na carga elétrica, e basta um pequeno fluxo de iões nas proximidades para que ele se abra. E, assim, a abertura de um canal de sódio leva os que estão ao seu lado a abrirem‑se, gerando desta forma uma queda em dominó e a rápida disseminação deste impulso elétrico por toda a extensão da célula nervosa. Como numa onda mexicana, cada canal de sódio é um espetador à espera de que o que está ao seu lado se levante, transmitindo uma mensagem de uma ponta à outra do estádio de futebol — ou, neste caso, de uma ponta à outra da célula nervosa.