Vivemos num mundo acelerado, de minutos contados e que nos enreda num novelo de compromissos. Corremos em contrarrelógio com a agenda diária…não paramos. Face a esta pressão que omite nas nossas vidas um “mergulho” interior, a prática do journaling, assume um papel de reencontro com a nossa essência. Na prática, o journaling é um exercício, em jeito de diário terapêutico, que nos permite, por escrito, um encontro com o nosso passado, presente e futuro. É esse o desafio que nos deixam no livro Guardar depois de escrever (edição Manuscrito) os psicólogos e psicoterapeutas Rute Agulhas, especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e Pedro Fernandes, especialista em Psicologia da Educação e em Psicologia Comunitária.

“As situações negativas que vivemos não se esquecem apenas porque não falamos delas. Se não estiverem devidamente elaboradas e resolvidas dentro de nós, é possível que surjam pensamentos mais negativos”, adverte Rute Agulhas no início de uma conversa que envereda pelos benefícios da escrita terapêutica: “relaxamento, autoestima elevada, menor sintomatologia ansiosa e depressiva, maior sensação de bem-estar geral”, assinalam os autores na obra que entregaram recentemente aos escaparates.

Uma conversa que talha as diferenças entre o diário que todos conhecemos e um diário terapêutico. Este, “pretende ir um pouco mais longe, orientando a pessoa no sentido de esta relatar e analisar as situações e, também, os seus pensamentos, emoções, comportamentos, desejos, expetativas. É como um convite a um encontro consigo mesmo”, sumaria Rute Agulhas.

No final, de acordo com os autores, não há que esquecer o livro. Antes regressar ao que se escreveu. É demasiado precioso para ser esquecido.

Para iniciarmos esta conversa, seria importante percebermos o que é um diário terapêutico. Pode sumariar a natureza e objetivos deste diário?

Rute Agulhas: Num diário convencional, feito apenas de folhas em branco, a pessoa tende a escrever e a relatar as situações vividas, tal como elas ocorreram, sem analisar de forma mais aprofundada a forma como foram experienciadas. E, ainda assim, experiencia, de um modo geral, uma sensação positiva de libertação e de alívio.

Um diário terapêutico pretende ir um pouco mais longe, orientando a pessoa no sentido de esta relatar e analisar as situações e, também, os seus pensamentos, emoções, comportamentos, desejos, expetativas. É como um convite a um encontro consigo mesmo, mergulhando no seu mundo interior e tentando encontrar formas mais adequadas e não distorcidas de olhar para as suas vivências – ajudar a pessoa a encontrar outros significados para as suas vivências, construindo uma narrativa mais ajustada.

Mais do que escrever apenas o que se passou, é escrever o que se passou e analisar a forma como a pessoa interage com essa mesma experiência, tentando daí retirar diversas aprendizagens.

rute agulhas e pedro fernandes
Os psicólogos e psicoterapeutas Rute Agulhas e Pedro Fernandes, autores do livro "Guardar depois de escrever". créditos: Manuscrito

Por que razão ao escrevermos nos conhecemos melhor ou, como refere no seu livro, a escrita como “forma privilegiada de encontro e expressão dos nossos pensamentos e emoções”?

Pedro Fernandes: A escrita, tal como outras formas de expressão artística, permite-nos aceder, de forma genuína e não filtrada, ao que pensamos, ao que sentimos. Quando escrevemos, é como se nos permitíssemos partilhar, de forma livre, o que vai dentro de nós, a nossa própria interioridade.

E, dessa forma, é-nos conferida a oportunidade de analisarmos e refletirmos sobre nós e sobre a nossa história de vida, processando cognitiva e emocionalmente os acontecimentos sobre os quais escrevemos, com benefícios terapêuticos.

“A autoestima não é algo que compramos, é algo que precisamos de desenvolver e requer um trabalho diário” - Joana Gentil Martins, psicóloga clínica
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A quem se destina a escrita terapêutica?

Rute Agulhas: A escrita terapêutica destina-se a todas as pessoas, mesmo àquelas que gostem menos de escrever. Acreditamos que também estas possam desenvolver o gosto pela escrita à medida que o fizerem e sentirem que daí retiram algum tipo de benefício.

Basta apenas a companhia do livro, uma caneta ou um lápis e 10 a 15 minutos por dia reservados para este encontro consigo mesmo. Num local privado e confortável, sem pressa.

No vosso livro dão particular atenção aos acontecimentos traumáticos. A escrita terapêutica destina-se apenas a “curar” traumas?

Rute Agulhas: Apesar de a escrita terapêutica ser mais frequentemente associada à expressão e reflexão sobre eventos negativos ou mesmo traumáticos, a investigação mostra-nos que a pessoa também pode retirar múltiplos benefícios de escrever sobre experiências positivas intensas, que potenciam sensações e emoções mais agradáveis.

Comecemos pelas situações negativas ou potencialmente traumáticas. A vivência de uma situação negativa ou mesmo traumática pode alterar a forma como a pessoa se vê a si mesma, ao mundo e ao futuro, ativando diversos sinais e sintomas que variam de pessoa para pessoa em função de diferentes fatores – como sejam as características da pessoa e os seus recursos internos, como por exemplo a autoestima, resiliência e traços de personalidade; a sua trajetória de vida e também a sua rede de suporte social. E, de uma forma geral, a pessoa tende a evitar pensar ou falar sobre estas situações. Também as pessoas à sua volta evitam abordar o assunto, para que a pessoa esqueça mais facilmente.

Ora, as situações negativas que vivemos não se esquecem apenas porque não falamos delas. Se não estiverem devidamente elaboradas e resolvidas dentro de nós, é possível que surjam pensamentos mais negativos (que nem sempre se controlam e invadem a mente), memórias, pesadelos… que, por sua vez, impactam a forma como nos sentimos e nos relacionamos com os outros.

Por vezes olhamos de forma enviesada e distorcida as vivências positivas que temos e pensamos, por exemplo, que 'não sei fazer nada', 'ninguém gosta de mim', 'tudo me corre mal'.

Falar ou escrever sobre estas memórias é especialmente importante, na medida em que facilita a elaboração da situação e se contraria uma reação de fuga e de não confronto.

Costumamos recorrer à metáfora do armário para ajudar a tornar esta ideia mais clara. Imaginem um armário com as gavetas cheias de coisas amontoadas, por arrumar. As gavetas não fecham bem e o armário pode mesmo perder a sua estabilidade. Para arrumar as gavetas é necessário retirar tudo cá para fora, analisar, selecionar e, tantas vezes, arrumamos e acaba mesmo por sobrar espaço. Agora sim, a gaveta está arrumada e podemos fechá-la, ou mesmo até fechar à chave. Que é como quem diz, também temos o direito a não falar sobre um determinado assunto, mas que este esteja devidamente arrumado dentro de nós.

Também a expressão e análise de situações positivas pode ser extremamente benéfica, na medida em que nos ajuda a valorizar essas mesmas situações (tantas vezes ignoradas ou minimizadas), potenciando a experiência de emoções mais agradáveis. Por vezes olhamos de forma enviesada e distorcida as vivências positivas que temos e pensamos, por exemplo, que “não sei fazer nada”, “ninguém gosta de mim”, “tudo me corre mal”. É preciso contrariar estas leituras cheias de armadilhas e ajudar a pessoa a focar-se nas suas competências, conquistas e recursos. Assim, escrever sobre aspetos positivos pode também revelar-se terapêutico.

guardar depois de escrever
créditos: Manuscrito

Como referem no livro, a escrita terapêutica “trata-se de um tipo de terapia acessível a todos”. Exclui o recurso à terapia convencional ou é-lhe um complemento?

Pedro Fernandes:  Sabemos, pela evidência científica, que a escrita terapêutica apresenta um conjunto alargado de benefícios de natureza física e psicológica, que sublinham as suas potencialidades terapêuticas, estando ao alcance de todas as pessoas. Ao mesmo tempo, é muito importante referir que tal não substitui a participação num processo psicoterapêutico individual, conduzido por um psicólogo e/ou terapeuta devidamente certificado, que seja sentido como necessário. E este é um ponto da máxima importância que nós alertamos no livro.

Uma das características centrais deste livro prende-se exatamente com a sua versatilidade. Tanto pode ser utilizado num processo terapêutico enquanto recurso complementar ao trabalho realizado entre terapeuta/cliente ou, por outro lado, pode ser entendido como um meio para um processo de autoconhecimento e desenvolvimento pessoal, realizado de forma autónoma.

Acreditamos, sim, que muitas das pessoas que decidam fazer este percurso interior, no fim dessa caminhada possam concluir que existem aspetos da sua vida que justificam a participação num processo psicoterapêutico. Neste sentido, este livro pode ser ainda entendido como um contributo para a identificação das necessidades psicológicas de cada um, que eventualmente possam justificar recorrer a ajuda especializada.

Devemos partilhar aquilo que escrevemos no diário terapêutico? Se sim, não poderá ser um fator inibidor a que “libertemos” a escrita?

Rute Agulhas: Pensamos que, ao fazer esta caminhada, a pessoa deve assumir que a faz apenas para si própria e que aquilo que escreve não será partilhado com terceiros. Para que escreva sem filtros, sem amarras e sem qualquer tipo de limitação ou inibição. Se, após escrever, entender que poderá ser benéfico para si partilhar, no todo ou em parte, aquilo que escreveu com alguém, naturalmente que o poderá e deverá fazer. Mas será uma decisão a ser tomada posteriormente, num exercício de liberdade individual.

“Muito cuidado com a frase, ‘luta pelos teus ideais e sonhos porque vais conseguir’” – Psicóloga Silvia Álava
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Ler um livro é percorrer um caminho. No caso vertente que passos propõem ao leitor que sejam dados?

Pedro Fernandes: Este livro tem uma característica muito especial que o distingue de um livro convencional: trata-se de um livro para escrever, fundamentalmente. Dessa forma, o verdadeiro protagonista desta caminhada é quem mergulha no seu interior e responde aos desafios que são apresentados.

Após uma parte introdutória sobre o paradigma da escrita terapêutica e uma parte seguinte dedicada ao conhecimento e apropriação de um conjunto de recursos de natureza psicológica que deverão acompanhar a pessoa neste percurso, inicia-se a caminhada propriamente dita. Tudo começa no tempo “Presente”, refletindo sobre um conjunto diversificado de temas que pretendem caracterizar a pessoa que sou hoje. De seguida, partimos para o “Passado”, procurando mapear e refletir sobre os acontecimentos mais significativos na nossa história de vida, nos seus diversos contextos…no fundo, as nossas fundações. De seguida, e com tudo o que (re)descobrimos sobre a pessoa que somos, rumamos ao futuro, ao futuro que desejamos para nós, transformando os sonhos e as ideias em projetos concretos.

Concluímos esta caminhada com uma reflexão final e com a construção de um “Lema de Vida”, uma frase poderosa que nos carateriza e que nos poderá acompanhar todos os dias, lembrando-nos a pessoa que somos e que queremos ser.

Uma viagem ao interior de nós pode ser uma tarefa exigente e difícil, temos consciência disso.

O livro vem acompanhado de um “bloco de recursos”. A que recursos se refere?

Pedro Fernandes: Uma viagem ao interior de nós pode ser uma tarefa exigente e difícil, temos consciência disso. Quando pensámos neste livro, quisemos que quem se propusesse realizar esta caminhada, se pudesse sentir o mais acompanhado e apoiado possível. Enquanto psicólogos e psicoterapeutas, este é um cuidado ético obrigatório. Eu e a Rute não estaremos lá, com as pessoas, mas estão as nossas palavras e estes recursos. Falamos de aprender algumas estratégias de relaxamento, pensar de forma mais positiva, resolver problemas de modo mais assertivo ou ativar a rede de suporte social. Recursos estes que devem ser aprendidos e exercitados antes de escrever, ao mesmo tempo que devem ser mobilizados, sempre que for necessário, ao longo da jornada.

Mais do que recursos específicos para este livro, são ferramentas eficazes e de comprovado valor, que podem e devem ser utilizadas no quotidiano de cada um.

Terminado o livro, ou seja, escrito o livro, a proposta que deixa é que este seja guardado (assim nos indica o título). É um objeto para consulta a trabalho futuros?

Rute Agulhas: Sim, contrariamente àquela ideia mais clássica de “escrever e deitar fora”, simbolizando o processo de eliminar as recordações mais negativas, entendemos que a pessoa deve “escrever e guardar”, exatamente pelas aprendizagens e narrativas mais ajustadas que poderão resultar deste processo de escrita. O diário deve ser guardado num local privado e seguro e consultado sempre que necessário.

E — por que não? — desafiamos ainda a pessoa a escrever para além deste diário, numa perspetiva de “volume 2”, agora orientado por si mesmo, de acordo com as suas necessidades e dando espaço à sua própria criatividade.

Entrevista concedida por escrito em janeiro de 2023.