Quando em 2020, as viagens além-fronteiras se tornaram uma quase impossibilidade devido à pandemia da COVID-19, à belga Joke Langens, a viver no nosso país desde 2013, foi-lhe natural descobrir o país (quase) secreto que guardamos dentro de portas. A viagem a Portugal cumpriu-se através dos olhos de uma estrangeira que se fez à estrada, em contextos tão diversos como uma plantação de chá em Vila do Conde, uma viagem no comboio a vapor ao longo do rio Douro, a visita a um vale glaciar na Serra da Estrela, ao mercado municipal em Setúbal e a descoberta da arte oleira alentejana.
Desta forma e a par com Dirk Timmerman, profissional ligado ao mundo da música, nasceu o livro “100 Experiências Inesquecíveis em Portugal” (edição Casa das Letras), obra que, de acordo com os autores, “não pretende ser um guia de viagens”, antes baseando-se em “estórias e histórias, pessoas e outros seres vivos, cheiros e sons”.
A obra, a primeira de uma coleção intitulada “The Road Less Traveled”, é-nos apresentada em sete capítulos regionais, com a geografia a assumir o protagonismo, desde o Norte montanhoso até ao Sul inundado de sol, num périplo entre interior e litoral, entre a cidade e o campo.
Livro que “não se destina apenas a quem vem de fora, mas também aos portugueses, mesmo aqueles que já palmilharam milhares de quilómetros em terras lusas”, realçam os autores.
Joke Langens partilha com o SAPO Lifestyle quatro entre as suas cem sugestões de viagem a Portugal.
Braga
Faça uma viagem no funicular mais antigo do mundo movido a água
Situado a mais de 400 metros acima do nível do mar, o Santuário do Bom Jesus do Monte ergue-se sobre a cidade de Braga. O complexo religioso representa a Paixão de Cristo e, com várias escadarias, num total de 573 degraus, a subida do Monte Espinho faz lembrar o Monte do Calvário.
No século XIX, também os visitantes com fins não religiosos eram atraídos ao Bom Jesus devido ao seu parque e lagos recém-criados, refrescados pela brisa fresca do Atlântico e longe do calor abrasador do verão de Braga, no vale. Por iniciativa de um empresário local, um funicular movido a água veio assim oferecer uma subida menos dolorosa do sopé do Monte Espinho até ao sítio inscrito como Património Mundial da UNESCO. Uma traição à própria ideia por trás do santuário para uns, uma bênção para outros.
Coordenado a partir da Suíça, pelo engenheiro suíço Niklaus Riggenbach − autor do famoso sistema Riggenbach −, e concebido e instalado pelo engenheiro português Raoul Mesnier de Ponsard, o funicular foi inaugurado em 1882.
O sistema Riggenbach-Mesnier consiste em dois carros contrabalançados nas extremidades opostas de um longo cabo, que sobem e descem a encosta sobre os carris. Ambos têm um reservatório de água de 6000 litros. Depois de todos os passageiros terem embarcado, o operador no carro superior é informado do número de passageiros ascendentes com um sistema de campainha: um toque para cada seis pessoas. O tanque do carro superior é cheio até pesar ligeiramente mais do que o outro carro. Os travões são libertados e a gravidade assume o controlo: quando o carro superior desce lentamente, o outro faz a radical ascensão de 116 metros. No final da viagem, o depósito do carro descendente é esvaziado e o processo é repetido.
Um ícone da engenharia portuguesa do século XIX, este é o mais antigo de apenas um punhado de funiculares hidráulicos ainda em funcionamento no mundo.
Drave (Geoparque de Arouca)
Caminhe até Drave, uma aldeia desabitada nas montanhas mágicas
Caminhos sinuosos levam-no através de paisagens lunares a mil metros acima do nível do mar, uma terra de ninguém com o abismo sempre à espreita na berma da estrada. Uma estrada que termina em frente a outro cenário surreal: as esquecidas minas de volfrâmio de Regoufe, essenciais durante a Segunda Guerra Mundial, mas abandonadas desde 1990.
A aldeia tem mais ovelhas do que pessoas e é a ligação mais próxima entre o mundo exterior e Drave. É o ponto de partida do percurso linear de quatro quilómetros até à aldeia mágica, inacessível de carro. O trilho começa com uma subida íngreme, após a qual o resto da caminhada é tranquilo, embora exposto ao vento e ao sol. Ao fim de cerca de dois quilómetros, a misteriosa aldeia começa a aparecer. A 600 metros acima do nível do mar, Drave surge aconchegada entre as Montanhas Mágicas, elevando-se no alto do vale. A capela caiada de branco contrasta fortemente com as casas de ardósia e os seus telhados de xisto que quase desaparecem na paisagem.
A emigração em massa, nos anos 1960, e o encerramento da mina levaram a um abandono quase completo da aldeia, mas, na década de 1990, ainda havia pessoas a viver sem eletricidade, água corrente ou gás e quase sem sinal de rede. Mas, na viragem do milénio, Drave tornou-se oficialmente desabitada e envolta em silêncio. Hoje, apenas o som do riacho no vale, o vento que sopra entre as montanhas, o canto dos pássaros e o zumbido dos insetos habitam aqui, para além dos escuteiros, que estão a reconstruir parte desta aldeia perdida no tempo.
Dê um mergulho refrescante nas lagoas de água cristalina, à sombra de castanheiros e azinheiras, antes de regressar ao século XXI.
Ribatejo
Conheça as aldeias palafitas dos Avieiros do Tejo
As casas sobre palafitas são, provavelmente, a última coisa que lhe vem à cabeça quando pensa no Ribatejo. No entanto, é exatamente isso que irá encontrar aqui. Resultaram de um fenómeno migratório peculiar, desconhecido até por muitos portugueses.
No final do século XIX, pescadores do Centro e Norte de Portugal, cansados da dureza da vida no tempestuoso oceano Atlântico, decidiram trocar a costa por algo mais pacífico, durante os meses de inverno. Destino: o rio Tejo. No início, os pescadores e as suas famílias viviam e dormiam nos seus barcos, uma vez que as suas estadias eram apenas sazonais. Mas o rio deu a estes “nómadas do Tejo”, ou Avieiros do Tejo, o que o oceano lhes negava.
Passado algum tempo, atraídos por uma vida mais calma nas margens do rio, a maioria deles decidiu ficar. Pouco tempo depois, apareceram os primeiros barracos de madeira, pintados de cores vivas. Sobre palafitas, para os proteger contra as cheias do rio. Aldeias improvisadas, como Escaroupim, Palhota, Caneiras, Patacão e Valada do Ribatejo, começaram a ser chamadas aldeias avieiras, nome alusivo à povoação costeira da Vieira de Leiria, de onde chegava a maioria dos pescadores. Algumas destas aldeias ainda resistem e são habitadas por filhos e filhas desses pescadores, agarrados a um estilo de vida que oscila entre o agradável pitoresco e o brutalmente duro. Hoje, resta apenas um punhado de barcos, alguns deles ainda utilizados para a pesca, outros para cruzeiros fluviais.
Aproveitando um destes, poderá desfrutar das vistas de cavalos lusitanos a pastar e navegar pacificamente através de alguns dos melhores locais para a observação de aves do país. Espere avistar aves, como os bispos-de-coroa-amarela, águias-pesqueiras, abelharucos, milhafres e uma das maiores colónias de garças da Europa.
Costa Vicentina
Admire as cegonhas nas falésias da Costa Vicentina
Então, nunca viu cegonhas brancas fazerem os seus ninhos no topo de penhascos, à beira-mar? Isso é porque, provavelmente, também nunca visitou a Costa Vicentina, o único lugar do mundo onde se pode ver este fenómeno. Em janeiro, uma colónia de cegonhas brancas regressa de África e pousa nas falésias e nos afloramentos rochosos do oceano Atlântico, de Vila Nova de Milfontes a Sagres. As aves constroem, ou reconstroem, então o que serão os seus ninhos de amor para os meses seguintes. As ondas rebentam violentamente nas falésias enquanto ventos fortes de inverno sopram a grande velocidade, mas as cegonhas teimam em continuar o trabalho. Os ramos e outros objetos úteis são procurados e trazidos pelo macho. O casal entrelaça tudo cuidadosamente para formar grandes ninhos redondos em rochas próximas da água ou nos penhascos acima dela. As suas crias nascem em abril e as numerosas famílias podem geralmente ser vistas até ao início de julho. Quando as temperaturas se tornam demasiado altas, tendem a voar para refúgios mais frescos.
A colónia de cegonhas brancas tem estado no radar dos cientistas desde 1984. Não há uma explicação sólida para este fenómeno único. A instalação de um vasto sistema de irrigação na região nos anos 1960 e o subsequente desaparecimento da maioria das árvores maiores pode ser uma razão; a reduzida presença de seres humanos, outra. De facto, as únicas pessoas com quem eles confraternizam são os corajosos pescadores que igualmente se aventuram nestas falésias impressionantes.
As falésias marítimas onde nidificam as cegonhas são uma das principais prioridades de conservação do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e da Costa Vicentina. É uma visão espetacular de que nunca se aborrecerá enquanto percorrer o Trilho dos Pescadores. E se não gosta de caminhadas, pode também visitar o Cabo do Sardão, cujas falésias estão entre as mais procuradas para a construção de ninhos de nível avançado.
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