Existindo em Portugal uma legislação pensada para prevenir e combater a violência doméstica, continuamos, no entanto, a ter um número elevadíssimo de processos-crime arquivados que nos leva a afirmar recorrentemente que o sistema não funciona.

Muitas e muitos profissionais apontam as vítimas como sendo as principais responsáveis pelo não andamento dos processos, identificando o desejo manifestado pelas próprias no sentido de não desejarem procedimento criminal ou voltarem para os agressores como fortes razões para a não continuidade do procedimento criminal.

Mas será exatamente assim?

O sentido de o crime de violência doméstica ter natureza pública é precisamente o de poder ser alvo de investigação criminal sempre que haja notícia do crime independentemente da vontade da vítima. Assim sendo, o desejo da vítima em continuar ou não com o procedimento criminal nada deveria importar para a continuação do procedimento criminal. Evidentemente que, a colaboração e envolvimento das vítimas em todo o processo é muito importante, desde logo para uma descrição minuciosa da factualidade vivenciada, mas também para um mais fácil apuramento dos eventuais meios de prova existentes. Ainda assim, não pode ser considerada determinante para a continuidade do processo.

Colocar a responsabilidade do falhanço dos processo-crime nas vítimas afigura-se perverso e profundamente revitimizador para as mesmas. Não podemos passar a mensagem que as vítimas têm de apresentar denúncia dos factos criminosos por estamos perante um crime público e depois culpá-las pelo não andamento dos processos, quando as mesmas até denunciaram a situação. As vítimas recuam muitas vezes nos seus pedidos de ajuda, sim, perante a inexistência de imediatez nas respostas esperadas para os seus problemas. As vítimas não se sentem entendidas e apoiadas, percecionam que não há solução para o seu problema e isso leva-as muitas vezes a ficar na relação abusiva.

Contudo, mesmo quando as vítimas mantêm a sua postura e querem efetivamente avançar com o procedimento criminal, perante a inexistência de outros meios de prova que corroborem a sua versão dos factos, é sabido que os processos acabam por ser arquivados porque quando nos deparamos com palavra das vítimas em contraposição com a dos agressores sem mais elementos de prova, impõe-se a aplicação do princípio da presunção da inocência do arguido com o consequente arquivamento dos autos. O que nos leva à conclusão que tem de se abandonar a perspetiva do depoimento da vítima como sendo a figura central dos processos-crimes, pois, isso significa continuar a colocar o ónus da prova na vítima, o que é absolutamente errado.

Reconhece-se a necessidade de continuar a passar a mensagem às vítimas e a toda a sociedade que é importante que denunciem a prática do crime de violência doméstica porque se trata de uma violação de Direitos Humanos, que integra a criminalidade violenta no ordenamento jurídico português, e que tem de haver um envolvimento e participação das vítimas ao longo de todo o processo e de uma intervenção técnica especializada e muito mais humanizada.

Mas, a dimensão do flagelo da violência doméstica reclama sobretudo por respostas urgentes, adequadas à gravidade e reiteração da conduta criminosa do agressor, capazes de assegurar a proteção de todas as vítimas, incluindo as crianças.

Isso obriga-nos a olhar para este tipo de crime, que normalmente é passado no seio doméstico, como um crime de cenário. Ou seja, se pretendemos mais e melhores resultados processuais em prol da proteção e defesa das vítimas e de toda a sociedade no seu conjunto é preciso apostar noutra forma de recolha dos meios de prova existentes no local do crime. A exploração do cenário do crime, com a recolha de fotografias em relação às vítimas, mas também fotografias do local do crime, a recolha de vestígios, designadamente hemáticos, a apreensão de armas e objetos contundentes à prática do crime, e, bem assim, de documentos que atestem a factualidade ocorrida afigura-se imprescindível, com vista a uma célere e eficaz recolha dos meios de prova que se encontram no local. Evitar-se-á, assim, a ocultação senão mesmo a dissipação dos meios de prova numa grande parte dos crimes de violência doméstica.

Por outro lado, parece haver uma resistência em usar certos meios de prova e meios de obtenção de prova nos processos-crime de violência doméstica, quando a lei, na verdade, não os exclui. A título exemplificativo, veja-se que existe uma grande relutância em lançar mão das perícias de médico-legais de psicologia forense, seja para as vítimas seja para os agressores, nesta tipologia de processos, quando as mesmas seriam um grande contributo para a descoberta da verdade. No que diz respeito às vítimas, permitiriam aferir da coerência e verosimilhança dos factos reportados e identificar os danos emocionais, psicológicos, resultantes da prática do crime e no que tange aos agressores as perícias permitiriam atestar a personalidade daqueles e gravidade da sua conduta.

É preciso inverter o paradigma e apostar numa investigação criminal com outros recursos, que lance mão da congregação da diversidade de meios de prova e que tenham por base uma abordagem holística e livre de preconceitos.

O sistema judicial tem de tratar o crime de violência doméstica como crime violento que, efetivamente, é!

Um artigo de opinião da Advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças