Muito se fala sobre a necessidade de as vítimas de violência doméstica denunciarem sobre os factos criminosos e manterem a sua versão e postura até ao termo do processo-crime.
Fala-se também, ainda que erroneamente, que a postura das vítimas de violência doméstica é determinante durante a investigação criminal não só para o apuramento da existência de indícios da prática do crime e reiteração da conduta criminosa, mas também na própria fase de discussão e julgamento com vista à realização da prova para que haja condenação da pessoa agressora.
Reconhecendo a importância do depoimento das vítimas para que se faça justiça, mormente com a condenação do agente do crime, o processo-crime não depende nem pode depender da vontade da vítima, porquanto o crime de violência doméstica é um crime público e é um crime violento cuja investigação criminal, independentemente da vontade das vítimas, tem de continuar e explorar a existência de outros meios de prova.
Contudo, é assaz importante conscientizar as vítimas da pertinência do seu depoimento, pois, só estas podem esclarecer os pormenores da relação abusiva, caracterizá-la e relatar a própria escalada da violência.
Por outro lado, também é importante que as vítimas entendam o porquê de se envolverem no processo-crime e serem proativas com uma lógica participativa e empreendedora. É que as vítimas, mesmo quando não se reconhecem como tal, deve-lhes ser explicado pelos órgãos de polícia criminal, técnicos de apoio à vítima e demais profissionais, que os factos que constituem objeto do processo-crime constituem uma violação do Direitos Humanos e que o Estado Português dispõe de legislação e meios para assegurar a sua boa inquirição.
Após o momento da denúncia, as vítimas são chamadas para serem ouvidas durante o período da investigação criminal e é muito importante que mantenham a sua versão dos factos e que consigam concretizá-los no espaço e no tempo. Da mesma forma que, podendo, devem indicar as pessoas que viram e/ou ouviram os factos violentos integradores da relação abusiva e da denúncia, bem como podem juntar documentos, designadamente clínicos, demonstrativos dos factos denunciados.
Mas, à parte disso, as vítimas devem ser informadas que o sistema legal dispõe de um conjunto de mecanismos que lhes permite serem ouvidas em condições especiais, precisamente por serem vítimas de violência doméstica, sem que as mesmas temam a sua confrontação com a pessoa agressora, em condições que as protejam e, se assim o solicitarem, serem ouvidas uma só vez, sem necessidade de estarem a repetir várias vezes ao longo do processo-crime os factos denunciados, com toda a revitimização que essa repetição acarreta.
Desde logo, aquando da apresentação da denúncia, as vítimas devem ser de imediato esclarecidas que podem ser ouvidas em declarações para memória futura, se assim o requererem, apesar da existência da Diretiva interna do Ministério Público que já determina que as vítimas devem ser ouvidas nesses precisos termos. Ou seja, as vítimas que temem pela sua segurança, receando pela sua confrontação com o agressor em Tribunal ou porque pretendem mudar de localização, ou de país, ou mesmo porque são vítimas especialmente vulneráveis em função da idade (vejam-se os idosos e crianças) ou em função de doença, deficiência, gravidez, podem efetivamente pedir para ser ouvidas em declarações para memória futura.
Esta prerrogativa legal permite justamente às vítimas prestarem o seu depoimento perante as autoridades judiciárias durante a fase de inquérito do processo, isto é, numa fase embrionária do processo, sem que tenham de voltar a ser ouvidas aquando da audiência de discussão e julgamento, valendo igualmente o seu depoimento como meio de prova.
Por outro lado, mesmo quando as vítimas não são ouvidas em declarações para memória futura, podem, aquando da audiência de discussão e julgamento, pedir para que o agressor seja afastado da sala de audiência durante o seu depoimento por forma a não se sintam intimidadas e inibidas com a presença do mesmo e que o seu depoimento seja livre e o mais espontâneo possível.
Apesar desta possibilidade, nas situações em que sabemos que a presença simultânea em Tribunal do agressor e da vítima pode pôr em causa a segurança desta, as vítimas precisam saber que o seu depoimento também pode ser prestado por meio de videoconferência a realizar a partir de um outro Tribunal, que não o Tribunal onde decorre a audiência de discussão e julgamento, evitando-se assim a confrontação entre o agressor e vítima e eventuais situações que possam fazer perigar a segurança da vítima.
Mas, não será ainda demais que as pessoas saibam que se nenhum dos mecanismos enunciados forem suficientes para acautelar e garantir a segurança de uma vítima, por força da Lei nº 57/2021, de 16 de Agosto, passou a ser possível que a vítima solicite ao Tribunal onde decorre a audiência de discussão e julgamento o poder ser ouvida a partir do local em que se encontre, sem que tenha de o divulgar, audição essa que se realiza por meio de plataformas eletrónicas que o Tribunal disponha, como sejam o webex ou o zoom, e a combinar com a vítima.
Antigamente havia um mito que a vítima que não prestasse o seu depoimento no Tribunal não conseguiria falar sobre a sua realidade, contudo a experiência tem-nos vindo a demonstrar exatamente o oposto. As vítimas falam mais e melhor, na medida da segurança que sentem quando estão a prestar o seu depoimento e quando percecionam que estão a falar em condições de depoimento que favorecem a sua espontaneidade, longe dos agressores, portanto, em segurança.
Ora, é precisamente isso que os cidadãos em geral deve ter conhecimento, mas sobretudo as próprias vítimas. Não devem ter medo nem receio de falar porque o sistema judicial tem meios de as ouvir com mais e melhores condições canalizadas para a sua proteção.
Um artigo de opinião da Advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.
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