“Todos temos um pouco de Autismo, não é verdade?”. A pergunta vinha do outro lado do gabinete. Era feita pelo pai que estava sentado no chão, dividindo com o filho de 2 anos uns blocos coloridos espalhados pela sala. A pergunta seguia-se ao seu desabafo pelas semelhanças que o filho espelhava da sua própria infância. “A minha mãe dizia-me que eu era exatamente igual”.
E era nesta frase que residia a sua esperança, logo a seguir bem expressa: “Se ele for parecido comigo quando chegar a adulto, então eu já fico tranquilo.” Nessa frase morava a esperança de ver o filho integrar-se numa escola, casar, ter filhos, ter um emprego, ser autónomo. “Que ele não precise de mim quando eu já cá não estiver”.
A mãe ia acenando com a cabeça, concordando e dividindo os mesmos sonhos, mas somando-lhe um medo mais antigo. Para ela a história era mais longa. Foi nascendo nos pequenos detalhes que os olhos de mãe espreitam desde a primeira hora. No olhar que o filho não procurou, no sorriso que não devolveu, na palavra que não respondeu, nas brincadeiras isoladas, nos choros que não se acalmavam no colo.
Foi lançando as suspeitas ao marido, à família, ao pediatra... mas nenhum deles agarrou no que lhes foi entregue. As dúvidas ficaram sozinhas dentro dela, como sementes que foram germinando silenciosas. Quem os conhecia devolvia a certeza dele ser simplesmente igual ao pai. Até ao dia em que já todos conseguiam ver que algo era realmente diferente naquela criança.
A consulta num especialista foi inevitável
E quando a palavra Autismo se ouviu no gabinete, a vida mudou. Para a mãe, que já tinha pesquisado em segredo e lido sobre outros casos, o diagnóstico foi só a confirmação da sua suspeita, mas para o pai, havia ainda muitas perguntas a fazer. “Se o meu filho tem autismo, então eu também tenho!”, dizia no começo da avaliação, com a zanga e a dúvida na voz. Mas à medida que os sinais se mostravam e o filho não respondia quando o chamavam, não imitava, falava a sua “própria língua”, não apontava e ia alinhando os brinquedos, inevitavelmente o quadro, mais do que nunca, parecia claro.
Mas então onde estavam as fronteiras dos diagnósticos? Se o pai tinha tido sinais tão semelhantes, significava que ele próprio tinha o mesmo diagnóstico? Ou significava que estava curado e que nesse caso também o filho poderia vir a estar?
Ainda agarrado à ideia da sua pergunta inicial, dizia: “Quantas pessoas preferem estar sozinhas, quantas têm algumas excentricidades ou os seus rituais? Isso faz delas pessoas com Autismo?”. Seguiram-se várias destas perguntas até que se levantou e ficou a olhar o filho de longe, como se tentasse vê-lo de outra perspetiva. E preparou-se para ouvir as respostas. A conversa que se seguiu focou-se em pontos essenciais para que compreendesse este universo complexo das Perturbações do Espectro do Autismo.
A investigação confirma que há um peso hereditário neste diagnóstico. Assim sendo, é muito possível que se encontrem aspetos semelhantes a um dos pais nas suas próprias infâncias. Um conjunto de pequenos traços poderão não ser suficientes para um diagnóstico, mas também são vários os casos de adultos que só nesta idade percebem que as suas dificuldades ao longo dos anos, nos diferentes contextos das suas vidas onde frequentemente se sentiam diferentes, podem de facto configurar um diagnóstico.
A verdade é que nos últimos anos, o conhecimento e os instrumentos para avaliação do Autismo evoluíram de forma incomparável. Por outro lado, pode existir aquilo que chamamos um fenótipo alargado na família e verificarmos que um dos pais e possivelmente os irmãos possam ter algumas características semelhantes, mesmo que não reúnam um número ou um impacto significativos para um diagnóstico.
Isto poderá significar que, embora aquela criança seja muito parecida com o pai, poderá não fazer o mesmo percurso de vida. A gravidade dos seus sintomas poderá ser diferente e ter um maior impacto. Quanto mais pequena for a criança mais difícil poderá ser antecipar o prognóstico, embora seja inquestionável que quando mais cedo iniciar a intervenção precoce, melhor poderá ser o seu desenvolvimento futuro.
Finalmente, e respondendo ao pai que perguntava do outro lado da sala se todos tínhamos um pouco de Autismo, é verdade que cada um de nós guarda em si fragilidades, necessidades e características próprias. Há quem sempre tenha sentido dificuldade em fazer novos amigos, ou expor-se numa situação social, ou quem tenha que ter tudo arrumado no mesmo sítio, ou cumprir rigorosamente as mesmas rotinas. Mas para desenhar um diagnóstico, é preciso procurar um conjunto de sinais e dificuldades que traduzam impacto para si próprio ou para as pessoas mais próximas.
Na verdade, uma característica poderá não ser necessariamente um sintoma. Tal como um traço isolado não define um desenho ou uma estrela sozinha não configura uma constelação inteira. E por isso, nem todos temos um pouco de Autismo, ainda que cada um de nós tenha, dentro e fora de si, o seu próprio universo.
Texto: Carla Almeida, Técnica de Educação Especial e Reabilitação
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