
“Não há amor como o de mãe”, “Quem tem mãe, tem tudo” ou “Mãe, há só uma” são alguns exemplos de provérbios portugueses que ouvimos com frequência e repetimos muitas vezes quando falamos de uma das figuras centrais da família: a mãe. Ainda que diferentes entre si, todos estes dizeres populares aludem a uma conexão única, um sentimento avassalador e um amor incondicional que existe entre mãe e filho que, dificilmente, se consegue explicar por palavras. Mas e quando esse amor é tóxico, condicionador e opressivo? Nesse caso estamos perante aquilo que a psicóloga Diana Cruz define como uma relação tóxica.
“São relações que, disfarçadas de amor, são, na verdade relações prejudiciais, onde não há respeito ou amor verdadeiro”, começa por explicar sobre este tipo de dinâmicas que, em muitos casos, podem existir no domínio familiar, amoroso e profissional. “Algumas pessoas têm o infortúnio de viver relações tóxicas muito precocemente, com o pai ou a mãe, o que define e prejudica todo o desenvolvimento. As dinâmicas de relação mãe-filhos são persistentemente inseguras, agressivas e violentas emocionalmente.”
Esta é uma realidade que Ana*, de 35 anos, conhece demasiado bem. Após o divórcio dos pais, passou a viver com a mãe, Maria*, ex-professora, com quem teve, ao ínicio, uma relação aparentemente saudável. “Na infância a nossa dinâmica era boa. Nunca notei nada de diferente. Ia às festas de anos dos meus amigos, íamos de férias as duas, íamos jantar fora, brincava comigo.” Foi no início da adolescência, por volta dos 12 anos, que começou a notar uma mudança no comportamento da progenitora sempre que se ausentava. “A minha mãe ficava sempre doente quando eu ia a qualquer lado. Costumava dizer ‘ai vai-me deixar aqui sozinha e abandonada’. Na maior parte das vezes ia mas sempre com um sentimento de culpa.” As retaliações devido à sua ausência aconteciam no regresso a casa e chegavam quase sempre numa de três formas: agressões verbais, tratamento silencioso ou não ter nada para jantar. Outra estratégia usada eram as ameaças à sua própria vida. “Era comum dizer-me que se chegasse a casa e a porta estivesse encostada era porque se tinha matado. Muitas vezes ia para a escola com o coração nas mãos porque ela me dizia mesmo como é que o ia fazer.”
O controlo e a manipulação são traços comuns nas mães tóxicas e devem ser vistos como sinais de alerta. “Estamos a falar de mulheres, regra geral, muito controladoras, que tentam dirigir todas as decisões dos seus filhos, substituindo-se a eles e fazendo-os sentir que não têm a mínima competência para fazerem o que quer que seja sozinhos, ou que têm obrigação de obedecer a estas mães. O modo como conseguem este tipo de poder sobre as relações assenta quase sempre na manipulação. Elas vitimizam-se, culpabilizam os filhos, criticam-nos constantemente fazendo com que se sintam diminuídos e ridicularizados”, refere a psicóloga clínica.

O desemprego da ex-professora acabou por desencadear um episódio depressivo grave. Sem consciência da sua condição e sem apoio médico, a doença agravou ainda mais a dinâmica familiar e revelou outro traço comum em relações tóxicas: a inversão de papéis. Ana passou a ser, na prática, mãe da própria mãe, assumindo tarefas como fazer compras, pagar contas e levantar dinheiro. “Havia dias em que nem a via. Só passava por mim para tomar mais comprimidos.”
Como explica Diana Cruz, este comportamento deve-se a uma personalidade de base narcisista que é comum nestas progenitoras. “Podemos identificar uma enorme autocentração, expectativa de que sejam os outros a cuidar delas, a corresponder às suas necessidades e a tomarem as relações, mesmo as que têm com os filhos, como instrumentos das suas vontades e necessidades”, adianta.
Isso fez com que, desde cedo, deixasse de se sentir bem dentro de casa, passando a encarar este espaço como um lugar onde estudava, dormia e permanecia ocasionalmente. “Eu queria estar fora de casa o máximo tempo possível.” Durante a adolescência procurava passar a maior parte do seu tempo na escola com os amigos e, após a maioridade, refugiava-se em casa do namorado aos fins de semana sempre que podia. Manter-se ocupada sempre foi uma forma de se proteger desta dinâmica familiar que, desde sempre, foi feita de altos e baixos. “Eu gostava muito da minha mãe, mas havia dias melhores e outros piores. E tivemos momentos muito felizes as duas.” Por exemplo, das longas temporadas que, todos os anos, passavam juntas na casa que tinham junto à praia só guarda boas memórias. “Nessa altura de férias corria tudo lindamente. Ela parecia que se transformava e não era a mesma pessoa.”
Através das conversas com os amigos, Ana cedo percebeu que a sua realidade era muito diferente da dos outros. Por volta dos 14 anos, decidiu contar aos familiares mais próximos o que se passava em casa, mas a resposta não foi a que esperava. A desvalorização por parte da família materna e a recusa de ajuda do pai mantiveram intacta, durante anos, a imagem da mãe perfeita. Foi uma batalha solitária e silenciosa. “Sentia-me sozinha. Ninguém do meu círculo de amigos sabia o que se passava. Percebi que tinha de ser eu, sozinha, a arranjar uma forma de me libertar disto no futuro.” Como acontece em muitas relações tóxicas, o terrorismo emocional agravou-se com o tempo. As histórias mirabolantes inventadas pela mãe tornaram-se cada vez mais graves sempre que Ana não estava em casa ou deixava de lhe telefonar quando estava com outras pessoas.
“Inventava doenças, que lhe tinham tentado fazer mal com o carro e tinha ido à polícia, que tinha estado no hospital. Mas quando ia verificar o nome do médico ou do polícia que a tinha atendido, percebia que era tudo mentira. Não tinha acontecido nada”, conta. Ana depressa percebeu que as histórias que a atormentavam, mesmo à distância, e que chegavam pelo telemóvel — transformado numa arma de manipulação — não passavam de invenções. Para proteger os seus momentos de felicidade e evitar as crises de agressividade da mãe, começou a esconder e a mentir sobre o que fazia fora de casa.
Quando, aos 23 anos, Ana saiu de casa para viver com o atual marido, os padrões tóxicos de Maria agravaram-se. Além das dezenas de chamadas habituais, começaram a chegar-lhe blocos intermináveis de mensagens, principalmente durante as férias, e ameaças constantes de suicídio. “O meu coração disparava cada vez que recebia uma mensagem, porque nunca sabia o que ia encontrar.” Para Ana, essas mensagens tinham um único objetivo: fazê-la sentir-se mal e culpada, onde quer que estivesse. A falta de limites e respeito é outra característica comum nesse tipo de dinâmica entre mãe e filho. “Elas não só desrespeitam as necessidades dos filhos, como invadem os seus espaços e a sua privacidade”, menciona Diana Cruz. Ela acrescenta que inveja, ciúmes e a incapacidade de se alegrar pelas conquistas dos filhos — especialmente das filhas — são outros sinais alarmantes.

Mas o que pode estar na origem desses padrões de comportamento tóxicos? Como se chega a ser uma mãe tóxica? Estas perguntas nunca saíram da cabeça de Ana, deixando-a com um forte sentimento de incompreensão. A resposta está, muitas vezes, em padrões familiares tóxicos que se repetem ao longo das gerações. “As mães tóxicas muitas vezes têm elas mesmas um passado de relações problemáticas com os seus cuidadores, marcado por violência psicológica ou física, desqualificação, negligência ou abandono. Muitas cresceram em ambientes de abuso, com pais violentos ou com problemas de saúde mental e alcoolismo. Esses padrões disfuncionais acabam por contribuir para o desenvolvimento de traços de personalidade, como o narcisismo, e são frequentemente passados de geração em geração.”
Das poucas vezes em que tentou falar com a mãe sobre o que se passava, o resultado era sempre o mesmo: ou Maria dava a volta à situação, ou reagia mal. “Quando era mais nova, com 12 anos, dizia-me que eu podia fazer as malas e ir viver com o meu pai. Quando já não vivíamos juntas, se eu a confrontasse, ela desligava-me o telefone e deixava-o desligado durante dias, para que eu não conseguisse falar com ela.”
Diana Cruz refere que, geralmente, mães tóxicas não têm noção do impacto dos seus comportamentos devido à sua personalidade autocentrada, egocêntrica e narcisista. “Elas não têm a capacidade de se questionar ou de refletir sobre os seus comportamentos, nem de perceber o efeito que causam nos outros. Como resultado, os filhos acabam por anular completamente a sua própria identidade. Eles não podem ser quem realmente são. Só há espaço para a grandiosidade e o ego da mãe tóxica. Toda a dinâmica familiar gira em torno dela.”
Questionada sobre os impactos dessa dinâmica familiar negativa, a psicóloga diz que os efeitos se sentem em várias áreas. Em primeiro lugar, na forma como os filhos veem a si mesmos, criando, quase sempre, crianças, adolescentes e adultos com baixa autoestima, fragilidade, falta de amor próprio e um medo intenso de abandono e rejeição. Esses efeitos também afetam a maneira como as vítimas se relacionam com os outros, tendo dificuldade em confiar e estabelecer relações saudáveis. Em alguns casos, isso pode prejudicar a autonomia, a vida académica, o sucesso profissional e a estabilidade nas relações amorosas.
Essa experiência, no entanto, nunca foi a realidade de Ana. Além de sempre ter tido muita facilidade em se relacionar com os outros, outro aspeto que a diferencia é o facto de ter tido plena consciência do seu valor e das suas capacidades. “Sempre fui muito focada e otimista. Sabia que não queria viver assim para sempre e que dependia de mim para essa alavanca.” Ana percebeu desde cedo que a independência financeira seria a chave para alcançar a vida que desejava. Por isso, sempre foi aplicada nos estudos, começou a fazer baby-sitting no 12º ano e arranjou um part-time no primeiro ano da faculdade. “Quis sempre mais para poder-me libertar o mais rapidamente possível desta situação.” Embora soubesse separar bem as diferentes versões de si mesma — a mulher, a estudante e a trabalhadora —, restava a dúvida: como se sentia como filha? “Parecia que nunca fazia o suficiente, nunca estava em casa o suficiente, nunca dava atenção suficiente. Havia momentos em que me sentia má filha apesar de não ser. Era como se estivesse a falhar em qualquer coisa. Sentia-me pequena.”
Romper com os padrões disfuncionais de uma relação tóxica é um processo complexo que exige coragem, consciência e força emocional, especialmente quando se trata de uma relação tóxica com a mãe. “A mãe não é alguém com quem possamos, ou queiramos, entrar em rutura. É um elemento familiar importante, que não nos foi dado a escolher. Estabelecer limites relacionais neste caso, pode ser mais difícil porque desafia a criar limites emocionais muito bem definidos e saudáveis para nós, mantendo em certa medida, ligação física e social com esta pessoa que sente ter sido abusiva e claramente nefasta para a sua vida”, afirma a terapeuta. Além disso, o julgamento social por se distanciar emocional, psicológica e fisicamente da mãe é outro obstáculo que as vítimas enfrentam, tornando todo o processo ainda mais doloroso. “Fazer um processo de mudança, sobretudo ao nível dos padrões de relação, construir limites saudáveis para si mesmo, aprender a reconhecer e assumir os seus sentimentos e validar as suas experiências, é um processo de reconstrução da sua identidade e de re-significação de toda a sua narrativa de vida. É um processo profundo, difícil.”

Para que a transformação seja possível, é essencial que as vítimas reconheçam os padrões do ciclo de abuso e as táticas de coação, manipulação e controlo usadas pelas mães tóxicas. Só assim poderão ficar “mais livres e autónomos, vivendo conforme as suas próprias necessidades emocionais, sem se sentirem aprisionados por essa mãe agressiva e narcisista.” Outro passo fundamental é o afastamento e a ausência de contacto, o que exige a imposição de limites claros. No entanto, essa transformação não pode — nem deve — ser feita sem apoio. Por isso, o acompanhamento psicológico é essencial. “Não é realista nem sensato esperar que alguém consiga quebrar sozinho o padrão tóxico. Isso não é humanamente possível.”
Sair de casa foi o primeiro passo para a sua libertação, mas Ana reconhece que a verdadeira mudança aconteceu quando, aos 28 anos, percebeu que precisava de apoio terapêutico para lidar com a ansiedade e o stress constantes. Tem bem presente na memória o episódio que marcou um ponto de viragem na sua vida. “Estava no registo civil quando a minha mãe me ligou aos gritos a dizer que se ia matar e que eu não lhe ligava nenhuma. Tive um ataque de choro tão grande que uma senhora que lá estava até achou que eu me estava a divorciar. Fiquei a hiperventilar. Queria falar e não conseguia.”
A psicoterapia, aliada à literatura especializada sobre o tema, foi fundamental para Ana organizar os seus pensamentos, sarar feridas antigas e fazer uma regeneração emocional do trauma. “Ajudou-me imenso porque desconstruiu algumas ideias, como perceber que a minha mãe nos fez inverter os papéis, e me ajudou a aceitar isso de forma racional. A psicóloga disse-me mesmo para fazer o luto da figura da mãe.” Este processo terapêutico deu-lhe também estratégias para lidar melhor com a toxicidade materna. Uma das aprendizagens mais importantes foi a de definir limites saudáveis, para preservar não só o seu bem-estar emocional, mas também o do marido e dos filhos. “Tirar as notificações e o som das mensagens foi uma delas, e consegui cumprir. Foi difícil no início, mas depois ajudava-me.”
Embora não exista uma idade ideal para pedir ajuda, Diana Cruz aconselha que o acompanhamento psicológico deve ser iniciado "o quanto antes", especialmente em situações extremas em que as vítimas mostram sinais de doença mental, têm “perceções extremamente destrutivas de si mesmas e dos seus percursos de vida” e se sentem paralisadas, incapazes de funcionar plenamente como seres humanos. Nunca é tarde para pedir ajuda, e a terapeuta sublinha que a vergonha nunca deve ser um obstáculo no caminho da recuperação. “Não há nada de que se deva envergonhar. Foi vítima de um ciclo de toxicidade que não tinha como compreender ou travar, não tem culpa. Quando compreende que está a viver um ciclo como este, pode e merece sair dele.”
Ana conseguiu quebrar o ciclo de toxicidade e abuso e, apesar do ambiente familiar destrutivo onde cresceu, esforçou-se em contruir uma relação saudável com os seus dois filhos. Tudo o que viveu influenciou de forma decisiva o tipo de mãe que escolheu ser e os valores que transmite aos filhos, como elogio, empatia, diálogo e respeito. “Agora que sou mãe, quero que os meus filhos tenham sempre o melhor. Quero que tenham a sua própria vida e nunca lhes vou cobrar por isso, nem lhes dar preocupações desnecessárias.”
O diagnóstico de uma doença respiratória, em 2018, marcou o fim de quase duas décadas de abuso perpetuado por Maria. Esta fase delicada da vida da mãe, que exigia deslocações diárias ao hospital para receber oxigénio, forçou Ana a restabelecer uma ligação física e social mais próxima do que aquela que tinha construído nos últimos anos. “Tudo o que me corria bem na vida ela tentava transformar em algo negativo, e isso deixou de acontecer a partir de 2020. A morte da minha mãe libertou-me dessas cobranças, embora isso não invalide o afeto que sentia por ela.” Cinco anos depois da morte da progenitora, Ana admite que os efeitos da relação tóxica ainda se fazem sentir. “Muitas vezes sonho que está viva e que, no sonho, a minha principal preocupação é não lhe ter telefonado. Fico em pânico com o que ela poderá dizer e qual será a sua reação.”
Questionada sobre os conselhos que daria a quem se encontra preso num ciclo de toxicidade, Diana Cruz destaca que é possível sair dessa situação.“Não ter sido amado ou amada pela sua mãe, não é um defeito ou problema seu; é certamente uma limitação dela, da qual se precisa de libertar. Uma criança, que precisa de ser amada e protegida, nunca pode ser culpabilizada de ter nascido neste contexto tóxico”, conclui.
* nome fictício.
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