Perto de 18 quilómetros de asfalto na velhinha M1109 ligam Sines a Porto Covo. Pouco mais de 15 minutos de caminho de estrada que se fazem de vistas desimpedidas para mar e céu e com aquela atmosfera etérea que o estio no litoral alentejano nos oferece, envolvendo luz solar e vapor de água, saltitante na rebentação oceânica.  Entrados em Porto Covo, onde o verão reverbera na cal do casario e no omnipresente guincho das gaivotas, tomamos como rumo o destino que aqui nos traz.

Talvez nem precisássemos de mais nenhum ingrediente para nos prendermos a este apelo de praia e de evasão. Mas, hoje, trocamos o clássico rol de apetrechos estivais – toalhas, protetores solares, guarda-sóis – por um elenco a apontar aos prazeres da mesa.

alma nómada
alma nómada

Aguarda-nos o chefe de cozinha Ricardo Leite, anfitrião de histórias, suas e do restaurante Alma Nómada, instalado no espaço Yelloh! Village Costa do Vizir. Eis duas palavras saborosas: “Alma” e toda a natureza de possibilidades intangíveis que guarda; “Nómada”, sinónimo de errância, travo a aventura e a deambulações. A isso mesmo nos prestamos ao franquearmos as portas do restaurante aberto desde 2019. Uma errância pela sala, misto de conforto sob a forma de madeiras várias, poltronas (onde se aconchega um cantinho para leituras com livros a pedirem-nos “leiam-nos"), mas também a vincada presença dos elementos marítimos: tetos decorados com têxteis que nos recordam toldos adejantes a que se junta uma mostra de escultura de um artista local. José Bastos trilha os caminhos do litoral alentejano à cata de madeiras e desperdícios. “Nobre” lixo que se transforma em toda uma fauna marinha a povoar paredes, mesas e outra mobília no Alma Nómada.

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ricardo leite Chefe de cozinha Ricardo Leite. Restaurante Alma Nómada/Jorge Simão

Um saber olhar para aquilo que outros têm como desperdício que também baila nas palavras de Ricardo Leite. A sua cozinha, onde opera uma equipa de cinco elementos, é campo para experiências, técnica, criatividade e valorização dos ingredientes que a terra próxima oferece. Mas também espaço onde não se desmerece umas espinhas de peixe ou uns pezinhos de leitão, como veremos adiante.

Cresci com uma família transmontana que tirava da terra aquilo que levava à mesa, fossem vegetais ou carnes.

Por agora, fiquemo-nos com um pouco de história, a do Ricardo que connosco se senta à mesa que, há uns meses, serviu para o desmanche de um atum de 300 quilos. O chefe de cozinha junta-se-nos a espaços, entre o afã da copa e o desfile de pratos que prepara em jeito de apresentação da ementa (robusta por sinal) do Alma Nómada. Lisboeta de nascença, Ricardo resgata à infância e juventude as memórias de férias em Trás-os-Montes: “Cresci com uma família transmontana que tirava da terra aquilo que levava à mesa, fossem vegetais ou carnes. Uma das rotinas que me dava mais satisfação era ir colher batatas. Tínhamos de subir um terreno íngreme. Depois, tinha a minha avó que me preparava um doce com amoras esmagadas e muito açúcar. Fazíamos a matança do porco. São terras de fumeiro e enchidos”. Palavras que bailam com comoção nos lábios e olhos de Ricardo. As memórias e apelos são, por vezes, mais fortes do que as decisões que tomamos na vida. No caso de Ricardo Leite, a vida telúrica transmontana, a cozinha familiar e o gosto pela liberdade impuseram-se a um início de carreira como engenheiro informático.

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alma nómada Camarões selvagens com caril Thai verde. Restaurante Alma Nómada/Jorge Simão

 

“Certo dia, quando estava a programar pensei, ‘o que faço eu aqui?’”, relata-nos Ricardo.  A pergunta teve resposta a dois mil quilómetros de distância: Londres e um curso “duríssimo e exigente” de cozinha na escola Le Cordon Bleu. Um ano e meio de vida de Ricardo que o encaminhou para as cozinhas de restaurantes como o londrino Viajante e os portugueses Feitoria e Bica do Sapato.

Carta de vinhos com amplitude

Contas feitas, a carta de vinhos do Alma Nómada apresenta-nos mais de 200 referências, transversais a todo o país, com a prevalência de pequenos produtores. Carta com perto de 70 opções a copo e que mereceu a seleção do próprio Ricardo Leite. Na presente refeição degustámos os seguintes néctares: Cuvée de Noirs, espumante da Bairrada; Quinta dos Três Maninhos - Centenariae Vineae, branco; Casal Figueira Vindima Tardia 2012.

A empatia com o colega de profissão Alexandre Silva (Loco, uma estrela Michelin) tratou de tecer o destino de Ricardo: “O ‘Alex’ desafiou-me para com ele inaugurar um restaurante de fine dining em Lisboa. Também o ajudei a catapultar o espaço que detém no Mercado da Ribeira. Foram tempos de muito trabalho, deu-me muita tarimba”.

Ricardo procurava novos horizontes. Em 2019, encontrou-os 200 quilómetros a sul, em Porto Covo, para onde se mudou há um ano com a namorada, Inês Gomes, atualmente chefe de sala no Alma Nómada. José Costa, empresário e proprietário do empreendimento, também encontrou, a par da mulher, Ivone Machado, novo pouso na localidade alentejana. Ali, a empatia com Ricardo Leite foi imediata. O chefe de cozinha interpretou a ambição de José Costa, o de “querer elevar o panorama da restauração no Alentejo litoral”.

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alma nómada Cavala da costa de Sines. Restaurante Alma Nómada/Jorge Simão

Ricardo que iniciou o seu percurso no Alma Nómada como consultor para, mais tarde, assumir por inteiro a cozinha, não destitui a sua mesa do local que a acolhe, sinónimo de afirmar que as manteigas de cabra (fumada no restaurante) e ovelha que nos são apresentadas têm origens com nomes próprios: “O sr. Francisco ainda bate esta manteiga de cabra à mão. O mesmo acontece com a manteiga da Dª Sílvia. São ambos de localidades aqui próximas”, sublinha o chefe de cozinha que também não deixa de comentar, ainda no couvert (6,50 euros), o “pão, de fermentação lenta ao longo de dois dias, cozido no restaurante”.

Certo dia, quando estava a programar pensei, ‘o que faço eu aqui?’, relata-nos Ricardo.  A pergunta teve resposta a dois mil quilómetros de distância

Condutos que nos servem de antecâmara para as entradas, com as cavalas da costa de Sines (9,50 euros) a merecerem destaque. “São muito gordas, levam uma salga agressiva durante uma hora”, explica-nos Ricardo. Peixinho que se prova numa dentada sobre um crocante negro de tapioca, ao qual não escapa uma maionese de miso, óleo de lúcia-lima e dashi (caldo asiático) avinagrado, este último preparado com as espinhas da cavala.

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Alma Nómada Pastéis de massa tenra de leitão. Restaurante Alma Nómada/Jorge Simão

Ainda nas entradas, faz-se a mesa com os Pastéis de massa tenra de leitão, a fazerem-se acompanhar de um molho de pezinhos de coentrada (11 euros). “O leitão vem de uma produção a 200 metros do restaurante. É uma pequena criação, muito sustentável”, adianta Ricardo.

Antes da incursão no prato principal, fechamos o capítulo entradas com os Camarões selvagens com caril Thai verde (12,5 euros). “É camarão de Moçambique”, conta-nos Ricardo, adiantando que “apesar de estarmos numa região costeira, temos dificuldade em encontrar bom marisco. Temos percebes muito bons, os mexilhões são pequenos, conquilhas e amêijoa não há”.

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alma nómada Grelhada mista de peixes.

Se ao marisco a mesa de Ricardo Leite não é devedora, já o peixe fresquíssimo da lota de Sines é presença inquestionável, variando de acordo com a época do ano. Disso mesmo nos faz prova o chefe de cozinha ao apresentar-nos a sua interpretação da “mista de carnes”, aqui transmutada numa Mista de peixe da lota, escamas crocantes, bouillabaisse, topinambur, legumes grelhados (19 euros). Prato de apresentação irrepreensível, onde preponderam o robalo, o salmonete e o pregado.

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alma nómada Tartelete merengada de Ananás dos Açores.

A rematar, sobremesa que sintetiza a prática de Ricardo no que toca à utilização por inteiro do ingrediente. A Tartelete merengada de Ananás dos Açores, sorbet do mesmo e poejo fresco em pó (7 euros) “aproveita quase tudo da fruta. A casca é macerada durante dois dias, o excedente da fibra utilizada num outro prato é o ingrediente para a base da tartelete e componho o curd com o sumo do ananás. O sorbet não tem adição de açúcar, a não ser aquele que se encontra no alimento”, sublinha o chefe de cozinha.

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Alma Nómada Da esquerda para a direita, José Costa, Ricardo Leite e Ivone Machado. créditos: Restaurante Alma Nómada

Ementa que se espraia para pratos cárnicos e outras geografias de ingredientes como o Hambúrguer maturado Rubia Minhota 60 dias, compota de couve-roxa, ovo a baixa temperatura, molho hollandaise, ervas de estação e batata rústica (17,5 euros) e o Entrecote Super Premium maturado 60/90 dias, slaw de couve-flor e batata rústica (52 euros).

A não desmerecer, a Terrina de galinha do campo (18 euros), o Polvo da costa fresco (18 euros), o Bacalhau de cura prolongada (25 euros).

Alma Nómada

Costa do Vizir Monte Branco, Porto Covo

Horário: de segunda a domingo, das 12h00 às 15h00 e das 19h00 às 22h00

Contacto:  tel. 965 754 882

Ambição na carta que se apresenta a par com a aspiração que José Costa apresenta para todo o empreendimento onde o Alma Nova se insere: “abrimos em 1995, rapidamente percebemos que estávamos no local privilegiado e queremos contribuir para o seu desenvolvimento”. Uma ambição com espaço físico para crescer nos seis hectares de propriedade. “Num futuro próximo queremos chegar a um outro nível. Também a restauração terá novidades, com dois novos espaços, um deles um restaurante gourmet”, afirma José Costa que não esconde onde quer levar a sua Alma Nómada: “à estrela Michelin”. Ricardo Leite reitera.