Quem se acerca dos areais do Guincho, no concelho de Cascais, pode tomar como certo três factos. A omnipresente nortada acirrando mar e areal; um horizonte colossal, sem margens, oferecendo-nos a serra de Sintra e o Atlântico. Terceira evidência: a cozinha de um cultor da matéria-prima portuguesa e que lhe dá forma e expressão em pratos de autor numa casa de carácter bem talhado.
O protagonista, o chefe de cozinha Miguel Rocha Vieira, a casa, a Fortaleza do Guincho, mais concretamente o restaurante de nome homónimo onde desde 2015 este homem de 40 anos, garante a estrela Michelin, numa casa onde se faz obra há 14 anos com o dito galardão. Miguel sucedeu ao chefe francês Vincent Farges e mudou o paradigma da cozinha do lugar.
Uma rotação do ponteiro da bússola gastronómica, tirando-a do quadrante parisiense e apontando-a para sul, para a cozinha e produto portugueses. Isto com a segurança de quem trazia no passaporte profissional, quase duas décadas de mundo, em Inglaterra, França e na Hungria. Neste último país, na capital, Budapeste, Rocha Vieira iria conquistar a sua primeira estrela Michelin, no restaurante Costes (onde atualmente ainda lidera a cozinha). O filho de Cascais, para quem até aos 20 anos a cozinha era uma entidade desconhecida, conquistava o palato crítico dos inspetores do tão ambicionado guia.
Visitamos a Fortaleza do Guincho a propósito da nova carta de esplanada. Comida de verão, degustada num julho fresco, com a descontração que pede mesa posta ao ar livre, brisa marítima a incitar os folhos do guarda-sol e a tão nossa luz lusa, meridional, a predispor-nos para a refeição.
Uma mesa que arranca sob o céu do Guincho com a promessa de uma conversa com Miguel Rocha Vieira e que se concretizará duas horas depois, dentro de portas, entre a mobília acolhedora do bar da Fortaleza do Guincho. Já lá iremos, à conversa.
Por hora concentramo-nos na prova daquilo que é parte do elenco desta carta de esplanada desenhada para o estio de 2018. Da cozinha chega-nos, em jeito de entretém de boca, uma manteiga marinha tradicional a pedir casamento com o pãozinho de alfarroba e sementes de girassol que nos é proposto. Isto para se lhe seguirem umas ostras da Ria Formosa, no Algarve (3,50 euros a unidade), com aquela frescura marítima que pede ingestão pronta, sem molhos e outras delongas alimentares. Quanto muito, uma pincelada de sumo de limão. Do mar para terra, uma tábua de enchidos do Alentejo, queijo de Castelo Branco, outro de São Jorge com cura de 36 meses, queijo de Azeitão com a sua macieza amanteigada.
Isto em velocidade de cruzeiro para um trio onde não há que enganar a paternidade lusitana. Da cozinha Miguel Rocha Vieira endereça-nos para a mesa, umas bolinhas de choco frito de polme perfeita, leve, estaladiça, sequinha, a pedir um mergulho na Maionese de “Sriracha” (16,00 euros). Ainda do mar, umas amêijoas à Bulhão Pato (18,00 euros) como pede a cartilha e uma salada de polvo grelhado (16,00 euros), tenrinho, acompanhada de um, tão caro ao gosto português, puré de batata-doce. Esta de Algezur, no Algarve.
Antes das duas sobremesas, um sorvete artesanal de Cereja de Fundão (8,50 euros) e uma mousse de chocolate de leite de coco, com gelado do mesmo e raspas deste fruto (8,50 euros), uma incursão a um dos principais da carta. O “Peixe do Dia” (28,00 euros), neste caso um peixe-galo – bem tratado na grelha - com salteado de legumes da época – saborosos - e esparregado de espinafres. Este último, um veludo verde de sabor deleitoso. A emparelhar, um familiar molho à espanhola.
Mote dado para a conversa descontraída com um Miguel Rocha Vieira que sai diretamente da cozinha para estes dois dedos de prosa. Jaleca vestida, discurso informal, dinâmico e empático.
Miguel, acabámos de fazer um périplo por alguns dos pratos da carta do bar-esplanada da Fortaleza do Guincho. Vamos encontrar alguns pontos de encontro com a carta do restaurante?
Sim, naturalmente. A qualidade e o produto são os mesmos, a equipa é a mesma, o saber fazer é o mesmo. Agora, o que encontram na esplanada é uma comida mais descontraída, que apetece comer, por exemplo, depois da praia. De resto, o que encontra é a mesma filosofia que temos no restaurante.
E qual é essa forma de encarar a cozinha?
Até há três anos [com o chefe Vincent Farges] uma casa com uma pauta francesa muito acentuada. Quando cheguei quis mudar essa pauta, com muito mar, muito produto português. Tendo chegado em 2015 em agosto, época alta, tive pouca margem para grandes alterações. Fiz apenas retoques na carta. Depois, pude marcar a minha identidade. Estamos num hotel, gosto de mostrar aos estrangeiros a gastronomia portuguesa. Atualmente, 95% dos produtos da carta são nacionais.
Esta é uma casa que recebe há muitos anos a estrela Michelin. Acarreta responsabilidade. Miguel, como se reinventa um chefe para manter, ano após ano, o galardão?
Gosto de dizer que temos de olhar para a cozinha como uma maratona e não um sprint. O peso da responsabilidade foi maior no ano em que cheguei. Quando mantivemos a estrela nesse ano, ficámos mais tranquilos e fizemos aí a grande mudança. Este não tem sido um trabalho apenas meu, é um trabalho de equipa, conversado entre todos. A satisfação do cliente é primordial antes de qualquer prémio. Claro que não nego que a expetativa é sempre maior quando trabalhamos numa casa que tem, ou quer vir a ter, a estrela Michelin.
Os chefes de cozinha acabam por puxar pelos produtores nacionais. O próprio cliente é conhecedor, compara, sabe como se confeciona.
O Miguel dá um acentuado destaque ao produto português. Parece que, finalmente, tratámos de redescobrir o que é nosso. Concorda?
Finalmente começamos a ter orgulho nas nossas raízes gastronómicas. De onde vimos e o que somos. Durante anos andámos a olhar para fora de portas. Foi preciso estar na boca do mundo e acolher esta multidão de visitantes para percebermos o que somos e tudo o que temos de bom. Acresce que esta nova geração de cozinheiros também traz mundo na bagagem e que tem orgulho naquilo que somos. Hoje, podemos dizer que somos mais do que a sardinha assada. E, mesmo aqui, numa simples sardinha, saber-lhe pegar e dar-lhe um entorno diferente não é fácil. Temos de saber ligar a inovação às nossas memórias.
Em suma estamos a reinventar o produto português.
Esta geração que esteve lá fora, que aprendeu técnicas e novas formas de trabalhar, percebeu que o produto estrangeiro não é melhor do que o nosso.
Os chefes de cozinha acabam por puxar pelos produtores nacionais. O próprio cliente é conhecedor, compara, sabe como se confeciona.
Miguel, entremos no seu percurso profissional. Nem sempre foi um apaixonado pela cozinha, certo?
Sim. Não posso afirmar que tenha grandes memórias de infância associadas à cozinha e aos comeres. Na juventude, em termos académicos, andava um pouco perdido, não sabia exatamente o que fazer. Acabei por rumar a Londres para tirar um curso de gestão hoteleira. Isto na expetativa de voltar mais tarde a Portugal. No segundo ano do curso, durante uma aula de cozinha, faz-se o clique. Talvez pela liberdade de criar, pelo apelo às memórias. Acabei por estudar no Le Cordon Bleu. Em França aprendi muito, a cultura está muito virada para a gastronomia. Não obstante, identifico-me muito com a cultura espanhola, a ligação à família, ao convívio ao orgulho pelo que é deles.
Voltando um pouco atrás, a cozinha para mim é, ainda hoje, uma descoberta constante. Por exemplo, agora estou entusiasmado com a simplicidade da cozinha alentejana.
Quando descobre que tem uma assinatura própria?
É gradual. Só após dez anos a trabalhar em cozinhas me senti com segurança para assinar menus e vou para a Hungria, para o restaurante Costes. Se corresse mal metia-me no carro, vinha-me embora e ninguém sabia [Risos].
Hoje em dia consigo abstrair-me da estrela. No início nem dormia [risos]. Agora, são 20 anos disto. O que sei é que se não tivesse rumado a Budapeste não estaria aqui a falar consigo
O que trouxe da sua experiência húngara?
Saber como abrir um restaurante do zero, gerir equipas. Ai comecei a perceber que não somos nada sem uma equipa em torno. Se correr mal eu dou a cara, se correr bem estamos cá todos. E isso é um princípio. É muito difícil manter a equipa motivada sem abdicarmos da nossa exigência. Pensar que são pessoas com família, que trabalham 15 horas por dia. Não se pode exigir sem dar. Repare, a oferta é cada vez é maior, não param de abrir casas, há muito poucos cozinheiros, qualificados ainda menos. Corremos o risco de vê-los crescer ao nosso lado e, depois, voarem. Os putos saem da escola, temos a primeira entrevista e dizem quais os dias em que querem trabalhar, quantas horas. Esta é uma profissão sem atalhos. Não se pode ter tudo ao princípio. Há que alicerçar as bases.
Há uma febre pelo estrelato neste mundo da cozinha?
Chegar ao topo do estrelato é muito difícil. Chefes com restaurantes em quatro cantos do mundo, que viajam em primeira classe e que ficam nos melhores hotéis são pouquíssimos.
A estrela Michelin mudou alguma coisa na forma como olha para si e para a sua cozinha?
Hoje em dia consigo abstrair-me da estrela. No início nem dormia [risos]. Agora, são 20 anos disto. O que sei é que se não tivesse rumado a Budapeste não estaria aqui a falar consigo sobre isto, não teria passado por programas de televisão.
Miguel, esteve fora do país, foi de certa forma um emigrante. Sentiu aquele estar tão português a que chamamos saudade?
No início não. Tinha 18 anos e a possibilidade de ir para Londres era entusiasmante. Depois senti falta da família, dos amigos. Estive lá fora durante quase 15 anos. Quando comecei a fazer o Master Chef e a gravar programas em Portugal ´caiu-me a ficha`. Como se costuma dizer, coração que não vê, coração que não sente [risos].
Pode indicar-nos, na sua perspetiva, um aspeto positivo e outro negativo do facto de Portugal estar na moda?
O negativo passa por estamos a criar uma bolha que não sei onde vai parar. Tem de haver num futuro próximo uma triagem entre os bons e os maus. Não pode ser só abrir, tem de haver um planeamento. Uma forma de controlar o mercado para que o selo de qualidade esteja lá sempre.
Por exemplo, em Londres ou Barcelona não encontramos praticamente ingleses e espanhóis nas cozinhas. Teríamos de atrair chefes estrangeiros.
Um aspeto positivo, a nossa gastronomia diversificou-se, já não somos só a sardinha e o bacalhau.
Chegou a altura em que os espanhóis não tiveram hipótese e não nos puderam ignorar. O mundo olhou para nós e o processo natural das coisas foi passar a Gala para este lado da fronteira.
Soubemos recentemente que a Gala Ibérica do Guia Michelin será este ano em Lisboa. É uma conquista?
O guia é ibérico, mas na realidade tem orbitado Espanha. Chegou a altura em que os espanhóis não tiveram hipótese e não nos puderam ignorar. O mundo olhou para nós e o processo natural das coisas foi passar a Gala para este lado da fronteira. Vai ser uma oportunidade, mostrar, por exemplo, aos jornalistas estrangeiros o que temos cá dentro. Dar prova de que somos um povo que sabe receber, a massa de que somos feitos, os produtos excelentes que temos.
Neste caso, os chefes têm de trazer para os pratos uma mostra da diversidade alimentar portuguesa. Que temos identidades culinárias e produtos muito bem marcadas de região para região.
Miguel, para fecharmos, de todas essas identidades que refere há algum prato que o marque?
Uma caldeirada ou um polvo à lagareiro.
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