“Certo dia, uma cliente chinesa visitou-nos e pediu-nos já à sobremesa um prato a que chamo ´num ovo e o seu ninho de caramelo`. Ficámos curiosos quanto à reação da senhora. Ao partir o ovo não escondeu o seu espanto. Dentro, não encontrou um coração de gema, antes um creme de citrinos. Quisemos brincar com a tradição do ovo em Portugal”. Um episódio que Vera Silva, chefe de cozinha no restaurante Ânfora, no Hotel Palácio do Governador, em Lisboa, traz para esta nossa conversa e que é síntese do entusiasmo, descoberta e felicidade que esta mulher, alentejana de nascimento, 37 anos e mãe de três crianças, entrega a todas as palavras.
Terá o leitor atentado, nesta pequena narrativa de Vera, no uso da primeira pessoa do plural. Um “nós” que a comandante da cozinha do restaurante lisboeta, sublinha amiúde ao longo da conversa. Para lá da sala, dentro da cozinha, mas sempre de olhos postos nas mesas, Vera só pensa em equipa. Levou tempo a construí-la, “hoje, já tenho a equipa mais madura e estável. Num primeiro momento, houve que ter a máquina a andar; numa segunda fase trabalhei a técnica e, agora, trabalho com a síntese de tudo”. Um trabalho que para Vera tem perto de três anos à frente do Ânfora.
Esta natural da aldeia de São Marcos do Campo, no concelho de Reguengos de Monsaraz quer, à beira Tejo, longe da planície da sua meninice, homenagear a matriz da cozinha da sua região. Vera recorda os avós e a cozinha rústica com os produtos que dava o território. Uma cozinha de contingência, parca na diversidade, mas rica na inventiva. “Costumo dizer que os alentejanos são carismáticos. Há uma aura positiva e transmitimos isso”, acrescenta a chefe de cozinha.
Na capital, Vera propõe-nos um exercício de degustação que, sem perder o norte à matriz da cozinha alentejana, lhe junta outros horizontes portugueses e concede espaço a alguns sabores internacionais.
“Dou preferência aos nossos produtos. Não escondo que tenho, por exemplo um foie gras na carta, ou mesmo o carabineiro, que são produtos bons em si mesmos e que agradam a um cliente internacional. Contudo, nós, chefes de cozinha, temos alguma responsabilidade sobre produtos que são nossos e menos conhecidos”. A este propósito a nossa interlocutora cita os cuscos transmontanos, uma reminiscência nortenha da presença árabe no nosso território. “Vou-os mantendo de carta para carta. Sinto que tenho essa responsabilidade. Estes cuscos chegam a Lisboa vindos de um pequeno produtor. Só há duas senhoras que ainda mantém a tradição em Trás-os-Montes”.
“Gosto de introduzir nas minhas cartas produtos diferentes, que tragam originalidade, menos trabalhados na restauração. Por exemplo, no verão de 2018, tivemos o tremoço. Dava-nos muito trabalho a preparar, mas o estrangeiro gostava”.
Vera que traz no currículo académico um curso de Gestão e Produção de Cozinha, Gestão de Food and Beverage, e algumas especializações, gosta que quando olhemos para uma ementa facilmente a identifiquemos: “`Isto é da Vera, na confeção e no empratamento´. Gosto que assim o digam”. Ainda a propósito do empratamento conta-nos a chefe de cozinha que “uma mulher quando o faz introduz-lhe um toque feminino, elegante. Aliás, tudo o que eu faço é com carinho e paixão”.
E com garra, a mesma que seduziu Vera para as cozinhas: “A adrenalina, os odores, a intensidade. Uma cozinha é como um barco pirata, só quem está lá dentro é que entende. Mesmo com as cozinhas abertas, quem está na sala não vai entender toda aquela dinâmica. A primeira vez que cheguei a uma cozinha e percebi essa magia, de concebermos e, depois, chegar ao cliente e resultar”.
“Mesmo na escola não gostava de ser igual. Primava por ter o meu apontamento, se lhe quiser chamar, uma assinatura. Por exemplo, hoje, se toda a gente está a usar robalo, não o vou utilizar”.
Se por um lado dispensa o robalo, por outro, Vera não desmerece a cavala e junta-lhe o mexilhão. Faz um Garum, recriando um preparado de peixe que há dois mil anos era exportado desde a nossa latitude para todo o Império Romano. Uma preparação que entronca na própria história do lugar. O hotel que acolhe o restaurante Ânfora ergue-se onde foi em tempos a Casa do Governador da Torre de Belém e, onde, os séculos pretéritos assistiram ao afã da salga romana do garum. Uma exportação feita, precisamente, em ânforas. Escusado será, partindo deste termo, explicar onde cunha o restaurante o nome.
“Naturalmente adapto o prato que apresento ao gosto atual. Para mais nem há a certeza de como se preparava aquele tempero de peixe”, assevera a chefe.
Uma conversa onde a dimensão de mãe de Vera está presente, “os meus três filhos adoram a cozinha da ´mamã´. Gostam de vegetais e das histórias que teço, por exemplo, com as florestas de brócolos e cenouras. Já em relação aos doces são mais críticos [risos]. Lá em casa, quando as coisas não correm tão bem na cozinha, as condições não são iguais às de um restaurante, criticam, mas também me mimam quando lhes preparo a minha sopa de ovos escalfados”.
A propósito do olhar para a alta cozinha no feminino, de acordo com Vera, “Faltam mulheres em quase tudo. Isto não quer dizer que os chefes de cozinha não recebam muito bem as mulheres. Julgo que não termos mais mulheres em posições cimeiras na cozinha portuguesa, não terá tanto a ver com o género, mas antes com oportunidades. Se aparecer uma mulher capaz de uma estrela Michelin irá ter essa oportunidade e, com isso, o investimento”.
Comentários