
Quem diria que, usando a imaginação, quase conseguimos reviver o universo de "Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll, ao visitar aquele que foi um dos espaços mais badalados de Lisboa quando abriu no verão de 2014? Só os frequentadores saberão que, num edifício em frente ao Miradouro de São Pedro de Alcântara, entre o Príncipe Real e o Chiado, encontramos aquele que dizem ser o elevador mais antigo de Lisboa (com 145 anos) em edifícios de habitação ainda em funcionamento. Assim, como no clássico da literatura, o convite a entrar no minúsculo espaço é irrecusável. Afinal, faz parte da experiência.
Só cabe uma pessoa, e a porta parece um armário, mas por fim, a recompensa: uma vista sobre Lisboa num local despretensioso, que mistura referências diferentes — sofás de tipologias diferentes, candeeiros desirmanados, mobiliário heterogéneo — mas que, curiosamente, criam consonância e identidade própria. É como se estivéssemos na Lisboa de 2014, ainda sem sombra do turismo de massas e da gentrificação, quando eram os lisboetas os principais frequentadores da zona. A ideia, dizem-nos ao jantar, é precisamente essa: resgatar a clientela portuguesa.

Revelando o mistério, o espaço onde nos encontramos foi palco de outros dois projetos que marcaram a vida noturna e cultural da cidade há 10 anos: o The Decadente, inaugurado em 2013, e o The Insólito, ambos ligados ao universo do Independente, aquele que foi um dos primeiros hostels de Lisboa. O Independente tornou-se inclusive a espinha dorsal de um grupo de hotelaria maior, mantendo sempre uma aura de autenticidade e experimentação, onde o segredo, a exclusividade e a cumplicidade entre frequentadores eram parte da experiência. O The Decadente trouxe sabores fortes e encontros íntimos, enquanto o The Insólito consolidou-se como um espaço inesperado e surpreendente, preparando o terreno para o que hoje conhecemos como Gandaia Club, cujo próprio nome nos remete a vadiagem ou ociosidade.
Assim, o espaço evoluiu e deu lugar ao The Hidden Rooftop, parte do novo projeto do grupo Paradigma, aberto de terça a domingo, das 18h00 às 00h00. Aqui encontramos cocktails e uma carta de bar da responsabilidade da Isco, padaria que pertence ao grupo. Começamos com um Not Port Tonic (10€) ou um Fake News (6€), cocktail sem álcool. Durante a tarde, focaccias e sandes leves, responsabilidade da padaria Isco, acompanham a luz da cidade. À noite, a experiência transforma-se, mantendo o espírito de segredo e intimidade que caracterizou o antecessor. A programação promete ser variada, com eventos que vão desde festas privadas a aulas de cycling.

Autêntico, divertido e boémio, descemos ao piso térreo, onde o Gandaia se divide ainda no The Decadent Restaurant, onde a cumplicidade em torno de sabores fortes torna o secretismo ainda mais apetecível, num ambiente intimista, decorado à luz das velas e pratos que nos faz lembrar a casa das nossas avós, comprados na Feira da Ladra. A ideia é manter o espírito original do projeto anterior, mas adaptando-o aos tempos atuais. Asseguram-nos que é um convite a partilhar momentos, mas apenas com quem realmente importa, num espaço dividido entre interior e esplanada, com duas cozinhas: uma interior e uma exterior onde acontece a magia do lume.

David Vieira, é o chef responsável, e aquele que teve a missão de resgatar algum ADN do passado, mas sem desvirtuar o presente. “Aquilo que nos foi passado é que o grupo Paradigma queria voltar um bocadinho à origem daquilo que existia anteriormente quando o Independente abriu, ou seja, aproximarmo-nos um pouco mais das nossas raízes”, explica, acrescentado que parte desse trabalho passou por analisar cartas anteriores. “Há duas coisas que vamos fazer aqui: trabalhar com vegetais e com o fogo”, garante, pois acredita que “é muito mais interessante surpreender alguém com um legume do que com uma proteína”.
O chef está no espaço há quatro anos e trabalha sempre com o fogo, um elemento central da sua cozinha, fruto das suas memórias de infância e da lenha a crepitar na lareira no inverno, em casa dos avós.

Antes, a carta era alterada quatro vezes por ano. Hoje, as propostas são definidas no início do ano, permitindo estabilidade e equilíbrio, mas mantendo a inovação, num menu curto e essencialmente de partilha. “Uma pessoa criativa, ter o aval de quem gere, é a última linha de liberdade”, afirma, sublinhando a importância de conseguir explorar ideias sem perder consistência. É aqui que os legumes se tornam protagonistas, mais interessantes e versáteis, como parte da filosofia do chef de criar pratos que se reinventam sem se tornarem previsíveis.
Ingredientes portugueses com uma dispensa asiática
Prego, cataplana, e o uso de uma proteína pela primeira vez, o peito de pato, são alguns dos pratos nomeados pelo chef. O toque asiático que vemos mal pegamos na ementa, vem das viagens e do gosto pessoal de David Vieira, que quis incorporar os sabores portugueses com “uma dispensa asiática”. “Não gosto de estar restrito a uma linha”, assegura.
Entre os destaques, surgem pratos como o tártaro de gamba do Algarve com alga nori e frango crocante (9€), assim como a batata-doce acompanhada por xarope de rosas, granola e molho de iogurte Labneh, tradicional do Médio Oriente (9€), trazendo uma combinação de sabores familiar e inesperada ao mesmo tempo.

Alguns clássicos mantêm-se, mas reinterpretados, sendo o caso mais paradigmático, a couve-coração grelhada com caldo de amêndoas e citrinos (13€), um verdadeiro “bebé” do chef, desenvolvida pela primeira vez na embaixada do Brasil e ajustada para passar de vegetariana a vegan. As presas de porco ibérico com shitake fumado e acelga (19€), a tempura de vegetais com caldo de bivalves — apelidada de “peixinhos da horta” (11€) — e o frango frito com dip de coentros (13€) equilibram tradição e experimentação.
Entre as novidades, destacam-se os espargos grelhados com ovo e molho huancaína (11€), o arroz de algas e cogumelos (13€), a lula dos Açores em caldo de galinha fumado (18€), o arroz de cataplana com carabineiro e kombu (27€), e o linguado com grelos e gremolata (65€).
Antes da sobremesa, surge o prego Decadente (11€), preparado no pão lêvedo com molho de mostarda Dijon, natas e mostarda de caroço. David Vieira explica que quis introduzir este prato na linha das sobremesas como uma forma de celebrar a simplicidade e a autenticidade de um clássico português, inspirando-se em algumas marisqueiras tradicionais da cidade, onde o prego é considerado a sobremesa.
As sobremesas mantêm a atenção à identidade local e ao equilíbrio de sabores. Entre elas destacam-se a torta de laranja com creme de alfazema e azeite (6€), a tarte de limão fumado (6€), o chocolate com caramelo salgado e amendoim (8€), e um granizado de pepino com merengue e granita de limão e baunilha (7€), pensado para ser fresco e leve, uma conclusão subtil para a refeição.

O Gandaia nasce da fusão do passado e do presente, reunindo o espírito disruptivo que marcou o The Insólito e o The Decadente. Mantém-se a identidade irreverente e a capacidade de provocar surpresa, mas agora com a maturidade de quem entende que inovar vai muito além de criar pratos inesperados: é também sobre criar experiências consistentes. David Vieira reconhece que surpreender se torna cada vez mais desafiante até porque “está tudo a mudar muito rapidamente. A novidade é cada vez maior e, muitas vezes, aquilo que conta mais é o aspeto e não o sabor”, admite, consciente do equilíbrio delicado entre forma e essência.
No entanto, o chef não se deixa intimidar. Entre a cozinha aberta, o fogo que inspira cada prato e o cuidado na seleção de ingredientes, quer levar adiante projetos como o Chefs on Fire, e elevar este projeto a um estatuto de outros dentro do grupo como o Canalha, de João Rodrigues, ou o Ofício, de Hugo Candeias. É essa mistura de tradição, audácia e liberdade que faz do Gandaia um espaço singular: um local onde a herança do passado se reinventa, sem perder a capacidade de provocar, divertir e desafiar o comum.
O SAPO Lifestye esteve no Gandaia Club a convite.
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