Chamaram-lhe Salomão, por alusão ao mítico rei, chegou desde o Oriente ao afã ribeirinho da Lisboa quinhentista para pasmo e curiosidade. José Saramago trouxe para as letras do século XXI, o relato deste encontro entre Ásia e Europa e titulou o seu conto em formato romance, “A Viagem do Elefante”. Narrativa de um périplo, o do elefante indiano Salomão, oferta de D. João III ao primo Maximiliano II da Áustria. O nosso Nobel da literatura recuperou em 2008 para este nosso século XXI a chama de descoberta e maravilha que flamejou na velhinha Europa por séculos. O Mundo reencontrava-se e em Lisboa desembarcava o produto da viagem global.
Décadas antes do paquiderme Salomão respirar a maresia à beira Tejo, uma outra criatura proveniente da Índia, havia agitado o porto lisboeta. Coriáceo, potente, saído das lendas, o primeiro rinoceronte indiano que a Europa conhecia, desde o Império Romano, desembarcou em Lisboa em 1515. Cento e vinte dias de viagem para Hanno, desde as margens do Índico e a expetativa de uma oferta do nosso D. Manuel I ao Papa Leão X. A ciência europeia efervesceu e o relato da criatura chegou aos ouvidos do Alemão Albrecht Dürer que o retratou em xilogravura.
Mais do que a reprodução fiel de um rinoceronte indiano, a gravura de Dürer é a mitificação do animal. Um couraçado eternizado para os séculos vindouros. Portento agora estampado em formato XXL numa das paredes de um novo restaurante lisboeta e que encontrou no mastodonte Ulisses a síntese para aquilo que o mundo português fez (e faz) nos últimos séculos, miscigenar e intercambiar nas diferentes geografias.
E é na grafia antiga, nascida do grego, que esta casa de comeres de influências diversas, sempre em português, vai cunhar o nome. Geographia, assim mesmo escrito, com o ph, é casa paredes meias com o Museu de Arte Antiga, de carta eclética, “sem pretensões a cozinha de autor, antes a servir uma cozinha de sabor, criativa e que pega em clássicos das muitas culinárias que falam português, traduzindo-as na nossa mesa”. É Ruben Obadia, antigo jornalista que connosco se senta para uma refeição de partilha. Ruben iniciou esta nova aventura com outros dois sócios, Miguel Júdice, empresário (restaurantes Eleven, Naked) e Lucyna Szymanska, responsável por uma das maiores agências de modelos na Polónia.
Sustenta Ruben, “quisemos assumir a nossa história e as relações comerciais, económicas, culturais, políticas que estabelecemos mundo fora. Estamos focados no sabor, nos intercâmbios à mesa, mas sem saudosismos”.
Angola, Brasil, Cabo Verde, Goa, Macau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste e Portugal cabem na carta deste Geographia e nascem numa cozinha (de cozinheiros de boa mão, não de chef, porque não é essa a intenção), de casa de feição ambiente que não lhe desmente o objetivo.
Cinquenta e cinco comensais acomodam-se em duas salas, num espaço pleno de Mundo, cartografado, feito de música acolhedora, desenvolvida por uma empresa de marketing sensorial, mapas, alusões tropicais e onde não falta, para além do omnipresente Hanno, a escultura de uma cabeça de rinoceronte. Um alerta ecológico. A peça tem origem no Quénia, é produzida a partir de chinelos de praia encontrados nas praias daquele país africano. Chinelos prensados e, depois, esculpidos pela fundação Ocean Sole.
Uma mensagem que este Geographia procura passar, o da atenção neste mundo global, para a sustentabilidade local. Por isso mesmo, a carta de vinhos assenta em referência de pequenos produtores locais. No caso vertente, provamos um néctar branco com a chancela Santos da Casa. Um duriense que vem casar com a mesa eclética onde assenta uma “sapateira que queria ser casquinha de siri” (8,00 euros), um Pastel de bacalhau onde cabe a mandioca e uma Sopa de peixe com maionese de garam masala (7,00 euros). Três exemplos daquilo que este Geographia é, compromisso com os comeres que nos estão próximos, mas sem os apegar às convenções.
Faça-se acompanhar estes petiscos por um dos três cocktails de assinatura do Geographia. Um exemplo, a caipirinha “Gabriela Cravo e Canela” (6,00 euros). Quem não se recorda da telenovela, baseada na obra do escritor Jorge Amado, que abria o pequeno ecrã português, nos idos dos anos de 1970, à voluptuosidade tropical?
Nos pratos de resistência, atreva-se o leitor (nós fizemo-lo) por um Caril de camarão à goesa com arroz de coco (14,00 euros), ou por um Escondidinho de puré de mandioca e leite de coco com bacalhau à Bulhão Pato (13,00 euros). Dos peixes, em cinco opões na carta, para as carnes, também em quinteto, o Escondidinho de puré de mandioca e leite de coco com carne de sol (14,00 euros) merece bis, assim como a gulosa Galinha do campo ao caril de amendoim (14,00 euros). De sublinhar que “procuramos recuperar receitas que arriscam a extinção entre nós como o Arroz Gordo, de Macau”, sublinha o nosso anfitrião. Um prato que encontra acolhimento nesta carta do Geographia.
No que respeita às guloseimas, há que findar a refeição com uma Mousse de chocolate de São Tomé com o seu salame (5,00 euros), “a melhor do mundo”, sublinha Ruben; um Leite creme com abacaxi caramelizado (6,00 euros) ou o “Melhor pão de ló do universo com coulis de frutos vermelhos” (5,00 euros).
Para além desta carta disponível ao almoço e jantar, “temos uma carta de almoço, que muda todos os dias”, sublinha Rubem Obadia. Entrada, principal, bebida e café a orçar os 14,00 euros neste menu executivo. Ainda nas novidades: “tínhamos uma tradição na hotelaria portuguesa da feijoada ao fim de semana. Queremos recuperar essa prática e servir a ´Feijoada de Lá e de Cá`, em modo buffet”.
Uma dinâmica que os três sócios deste Geographia querem estender a outras iniciativas no espaço do restaurante, como tertúlias sustentadas num “Clube de Grandes Viajantes”, para aqueles que fazem da viagem e, naturalmente, dos comeres, paixão. “A partir de janeiro de 2019 teremos semanas temáticas, com chefs provenientes de diferentes países a darem-nos mostra de outras latitudes culinárias, como a Tailândia, o Japão ou a China”, consubstancia o nosso interlocutor.
Para encerrar a refeição um café que com assinatura Geographia. “Quisemos produzir o nosso próprio lote de café, um blend de Robusta e Arábica. Tem o nome do restaurante e é selecionado com grãos, torrados a lenha, de pequenos produtores de Timor Leste, São Tomé, Cabo Verde, Brasil e Robusta”, refere Ruben. Já o chá “Boa Esperança” é um blend de rooibos da Cidade do Cabo, erva-mate do Brasil e erva-príncipe.
Finda esta viagem pela Lisboa deste 2018, quererá saber o leitor da sorte do Ulisses do século XVI. Não completou a viagem. Morreu na sua travessia mediterrânica ao encontro do Papa Leão X. Isto não obstante ter encontrado a imortalidade para a posteridade. E, agora, a homenagem numa parede e nas intenções de um restaurante na capital.
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