Esta é uma história sobre permutas, mas também sobre comida e de como o que parte, retorna. Pode levar décadas, séculos, mas quando chega, como é o caso, carrega o tempero de novas paragens. O tempo apura e, fazendo a analogia com o que temos aqui em apreço, a cozinha, damos fogo lento aos alimentos e eles recompensam-nos em sabor.
Há séculos a velhinha Europa inventava o Botequim. Não nascia órfão, tinha uma “avó” chamada Botica, a loja que tudo vendia. Tinha também uma bisavó, ainda mais antiga, grega, denominada Apothéke, a "casa de bebidas". Quis o empreendedorismo (chamemos-lhe assim) português do século XVI, criar caminho de mar para o território a que hoje chamamos Brasil. E quis a inventiva brasileira, tornar o avô botequim no Boteco. Termo que dito em português de Portugal sai um tanto ou quanto insípido. Mas, ensaie o leitor um “Boteco” com a doçura cantante do português do Brasil e verá como lhe soa bem e, claro, familiar.
Boteco, era inicialmente a “birosca do português no Brasil, um espaço humilde, e que servia uma comida ótima. Com o tempo virou algo mais refinado, embora mantendo-se sempre como uma casa tradicional”. Uma instituição no Brasil, diremos nós, acrescentando estas palavras às de Renato Castro Santos, 32 anos, Carioca de nascença e de coração, filiado há dois anos a Portugal e que se senta connosco à mesa do espaço lisboeta, à beira rio, que ainda cheira a tinta fresca de abertura.
Chegados aqui, cumpre ligar a prosa ao parágrafo primeiro deste artigo e à justificativa para a permuta e comida apalavradas com o leitor. Permuta porque este Boteco da Dri, na rua Cais Gás 19 (próximo ao Cais do Sodré), onde antes funcionou o restaurante Pescaria, é casa de várias partilhas. Entre os comensais que se sentam à mesa; entre o Mundo e o Brasil para engendrar esta cozinha de quinhão e, entre o nosso irmão sul-americano e Portugal. Fácil de explicar. “Quisemos abrir uma casa que contrariasse a imagem feita de que o Brasil é apenas Sol, Samba e churrasco. O meu país é um mundo em dimensão e que recebeu gente de muitos países”, sublinha Renato.
Há de o leitor atentar no plural expresso no “quisemos” de Renato. O também produtor de espetáculos e ligado a uma empresa de marketing sensorial não está só nesta abertura do Boteco da Dri. Renato associou-se ao libanês Daniel Baz, 26 anos, vindo da Suíça, a residir em Lisboa. Uma dupla que se tornou em trio com o contributo na cozinha do chefe brasileiro, nascido em Goiânia, estado de Goiás, Pedro Hazak. Homem que labora em Portugal há alguns anos e que no currículo escreve no campo experiência profissional em terra lusa trabalho em parceria com os chefes Diogo Noronha (Rio Maravilha), José Avillez (Bairro do Avillez), Herdade do Touril e restaurante Zazah (casa de outro carioca, Moisés Franco).
No Boteco da Dri, Hazak dá-nos com meia dúzia de palavras, mote para mais uma achega a este universo de permutas: “O brasileiro pegou no strogonoff e deu uma estragada legal. Gostamos de strogonoff para caramba”.
Bem, perguntará o leitor, Strogonoff russo num restaurante de sabor brasileiro? Sim e aqui chegados percebemos porquê tanta história de mundo nas linhas anteriores. Uma casa não se constrói sozinha, muito menos uma com a dimensão do Brasil. A História tratou de o enriquecer com vagas de emigração da Polónia, do Médio Oriente, do Japão, de Itália, de tantas outras geografias.
Justificativa para neste Boteco à beira Tejo encontrarmos uma carta eclética que é a dois tempos expressão do que o Brasil leva à mesa e que destrona lugares comuns. Isto, naturalmente, sem desprimor por clássicos como a Picanha ou um reconfortante Pão de Queijo (5,00 euros) e que pode chegar à mesa recheado com chouriço e linguiça (6,00 euros).
Antes de uma primeira incursão pela mesa, impõe-se saber porquê Dri. Renato não arrasta a resposta. “Uma pessoa que teve um peso sentimental grande na minha vida”. Não há que aprofundar mais. O que os mentores deste Boteco fincado em latitudes setentrionais querem homenagear com este espaço é “a mulher brasileira, ´linda e cheia de graça` [apetece trautear a canção de Tom Jobim], apaixonada pelos ritmos e sabores dos botecos do Rio de Janeiro”.
Ritmo não falta a este Boteco em Lisboa, não fosse Renato especialista na matéria. Bom som, sem decibéis incomodativos e com a promessa de noite longas, ritmadas, até às quatro da manhã (a cozinha fecha às três da manhã), com as mesas afastadas e espaço para espairecer. Ambiente também não falta, com personalidade brasileira mas sem nos obrigar ao cliché de fantasia tropical.
Feitas as apresentações, dada a feição e as razões, importa ir ao coração da casa, ou melhor à cozinha, mote para estas linhas. Provamos a máxima do Boteco da Dri, fugir ao registo sempre visitado. A prova de que a cozinha meridional, de sabor tropical, também pode ser de “conforto” como sublinha Renato, chega-nos com o riquíssimo e rústico Caldo de frango (5,00 euros), a provar que ambiente também se faz sem invernia fora de portas e lareira na sala. “Há muitas variações Brasil fora. É um prato de fim de noite, quando o pessoal já bebeu e precisa recuperar”. Galinha, milho doce, curcuma, leite de coco, cebolinho, entre outros ingredientes, convivem harmoniosamente dentro da malga que nos é servida.
Como também é reconfortante uns singelos chips de mandioca, cortada em palitos grossos (4,00 euros), frigida e que aconchegamos numa tacinha de maionese sriracha (picante asiático). A isto acrescentando uns pastelinhos de carne, de queijo e de camarão (três por 5,00 euros). Queimando nos dedos, mas ajeitando-se ao palato.
Segue-se o famoso Strogonoff de vaca (18,00 euros), aqui servido com um arroz branco, batata palha e com um retoque que só podia ser brasileiro. Caminho aberto para outros dois pratos de carne, um Picadinho Carioca (18,00 euros), acompanhado de farofa, petisco de bom porte que para Renato “define o conceito deste restaurante” e a Sanduíche de pernil (10,00 euros), uma sugestão que o nosso anfitrião gaba: “na noite carioca tem sanduiches que são famosas. Aqui trazemos a nossa interpretação desses pratos com este pão folhado, recheado com o pernil de porco que assou em fogo lento por muitas horas”. Um casamento entre duas fatias de pão que mete também queijo e bacon.
Chegados aqui importa abrir um outro capítulo que, naturalmente, todos esperamos. Os docinhos para encerrar mesa. Saiba o leitor que aqui, no Boteco da Dri, Brigadeiro não é igual ao que comemos em Portugal. Ou melhor agora comemos em Portugal, nesta casa de 60 lugares, um substancial e denso Brigadeiro de chocolate com morango (bomba calórica, mas que se perdoa por ser a exceção à regra); assim como uma Goiabada com queijo de minas, e uma Paçoquinha com doce de leite, esta, outra deliciosa incursão pela estratosfera calórica.
Não vai faltar durante a manja o que beber. Não falta a cerveja, como também não está esquecida a cachaça. Para fechar, a Batida de coco (5,00 euros), doce e perigosa.
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