Luís Lavrador dedicou substancial parte das suas horas, nos últimos anos, ao estudo e à investigação. Não o fez (e faz) por imposição, mas porque quis, ao fim de mais de três décadas de um quotidiano de prática de cozinha, consubstanciar com a vertente teórica aquilo que tornou operacional numa carreira de topo, com passagem em inúmeros restaurantes, como docente na Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra e até mesmo no trabalho que desenvolve com a Seleção Portuguesa de Futebol.
Fê-lo porque é um homem curioso, um espírito inquieto e porque sabe que o ato de comer, universal, essencial, foi tornado pelo Homem em cultura, história e, também, religião. Esta última, uma abordagem que surge no caminho de Luís Lavrador, não por uma determinante à partida, mas porque a partir de um certo momento, conjurou o destino para lhe apresentar, um curso na Universidade de Coimbra, sobre Alimentação.
E com este primeiro passo, uma licenciatura e, depois, uma dissertação de Mestrado intitulada “Ao Sabor da Bíblia”. Não ficou Luís Lavrador por aqui. Aprofundou, para apresentar Doutoramento robusto, mais de 400 páginas com a tese “A Mesa Entre os Homens - Comensalidade e gastronomia nos textos bíblicos, um discurso para os nossos tempos”. Trabalho singular e original.
Evidentemente, pela matéria exposta, está dado o mote para esta conversa. Uma entrevista acrescida de tempero, sabendo que Luís Lavrador publicou recentemente o livro “Ao Sabor da Bíblia” (Aletheia Editores). Obra que decorre de todo o seu trabalho de campo e de investigação, numa linguagem aberta ao público em geral.
Uma conversa com um investigador que dispensa os títulos honoríficos, preferindo que o tratem por Luís e que deixa o escrutínio sobre a sua fé aos olhos de Deus. Luís Lavrador sabe, sim, que tem “uma grande força interior”. A mesma que trouxe até este ponto em que procura tornar num objeto do quotidiano um livro que partindo da mensagem Bíblica, aporta ao século XXI.
“Ao Sabor da Bíblia” é uma obra alimentar de aplicação prática, com sugestões de ementas e apontando à sustentabilidade alimentar, ao respeito pelo meio, pela origem dos produtos e também por uma atitude muito mediterrânica, a da comensalidade e da partilha.
Por isso mesmo, para este cozinheiro (não chef como nos diz, pois isso seria mote para outra conversa) temos entre mãos uma obra que é “ferramenta para a avaliação dos povos que nos precederam, cujas práticas ancestrais de preparação e organização nos ajudam a ler o presente”.
Fica, desta forma, esta conversa ao sabor da Bíblia, com um zunzum de fundo, o burburinho da seleção nacional concentrada num hotel do Estoril poucos dias antes da partida para jogos amigáveis na Suíça. Ossos do ofício, o deste distinguido cozinheiro de fé com a responsabilidade de dar boa mesa aos intérpretes de um desporto, o Futebol, prática de muitas crenças.
Luís Lavrador, todo o percurso desde a Licenciatura até ao Doutoramento e ao livro que temos agora entre mãos, “Ao Sabor da Bíblia”, é um trabalho de fé de um homem de fé?
Julgo que tenho essa fé, mas deixo a Deus como a pode avaliar. O que sei e acredito é numa força que todos os dias me impele e me anima. Aliás, há uma frase muito bonita no Livro de Jó que nos diz exatamente isso. Como se a alma estourasse, no bom sentido, naturalmente. Por vezes tenho essa sensação, de força, de alegria.
Mas também há algo muito importante, nunca pedi à vida nada que ela não me pudesse dar.
Como prefere que lhe chamem, Chef ou Doutor? Ou haverá uma relação causal e de permuta entre ambos os títulos?
Aquilo que mais adoro é que me chamem simplesmente Luís. Este é o meu nome. Títulos não me dizem nada. Tenho-os, decorrendo de realidades óbvias, porque sou cozinheiro e porque concluí um doutoramento. Há quem me chame Mestre, quer por ser cozinheiro, quer por ter o Mestrado. Entretanto, fiz o Doutoramento e há quem me chame Doutor. E eu não faço questão.
Sim, mas há uma relação entre ser cozinheiro e ter concluído o Doutoramento. Não nos quer explicar?
Naturalmente, há uma relação construída entre aquilo que é o meu percurso enquanto cozinheiro, no sentido total da palavra, tirando-lhe a carga de ser chef. Não tendo esgotado a profissão, há um momento da minha vida em que achei que seria importante revestir todo este conhecimento prático com uma componente teórica. Então, acabo por ir estudar e investigar.
Quando enceto a parte teórica, em contexto universitário, queria aprender a investigar. Precisava de saber coisas. E pensei na Sociologia. No mesmo ano abre na Universidade de Coimbra, um curso em Alimentação. Acabei por fazer esse curso. Mais tarde, quando terminei, havia que aprofundar. Aí já fui um pouco empurrado. No júri do meu mestrado, estava um professor muito especial, o Dr. José Ramos, um biblista de renome, tradutor de parte da Bíblia. No dia em que me faz a arguência de tese sobre Alimentação – Fontes, Cultura Sociedade, diz-me para não deixar o tema por ali. O tema era precisamente a dimensão alimentar na Bíblia. E eu agarro a temática.
Segue-se o Doutoramento, agora numa linha com mais profundidade, certo?
Faço o Doutoramento em Turismo por ser uma área a que estava habituado, pois trabalho para o turismo de Portugal há 30 anos. Penso, então, a comensalidade expressa na Bíblia é um património extraordinariamente rico. Decorre que faço uma proposta de produto turístico. O meu trabalho de Doutoramento é exatamente isto. O que havia feito no Mestrado era mais estatístico. Faltava a outra parte, ou seja, como se cozinhava e chegavam à mesa os alimentos apontados na Bíblia. Ou seja, temos aqui a comensalidade. Faltava, então, levar as pessoas a fruir isto. Não queria uma tese que ficasse no arquivo da Universidade. Antes, um trabalho de fruição da comunidade.
Como alguém disse, fazer com que a cultura suba ao povo. As pessoas usufruírem deste património à mesa, comendo-o num dia de festa, de casamento, de lazer, ligando-o a uma tradição bíblica. Na prática, com o livro, podemos atualizar quadros bíblicos maravilhosos da mesma forma que são feitos na pintura ou na escultura.
No fundo quer que o leitor olhe para a Bíblia numa outra perspetiva?
Sim. Lendo um livro que pode ser `comido`, assimilado. A cultura assimila-se, através dos sentidos e, aqui, fazemo-la nossa ingerindo-a através da leitura alimentar. Houve, por vezes, uma certa relutância nos meios académicos e religiosos em usar os termos comer, beber, como se fossem atividades de somenos no exercício da relação humana. Na realidade estão na base de tudo.
Aliás a Bíblia não fala apenas de refeições frugais, encontramos banquetes…
A Bíblia refere os banquetes, apesar de não encontrarmos alimentos fora do vulgar. Só há um momento no Livro, no capítulo cinco no primeiro dos Livros dos Reis, em que na mesa de Salomão há a exploração do exótico, com, por exemplo, as carnes de pavão, faisão, boi. Tirando isto, a linha alimentar é sempre muito simples.
Repare, o que dá a nobreza à refeição é a nobreza da função. Muitas vezes a refeição nem é descrita. No Antigo Testamento a ceia, ou o banquete são momentos reais. No Novo Testamento torna-se uma alusão mais simbólica.
A Bíblia é toda ela um convite para a mesa, para a abundância. Há autores sagrados que se inclinam para uma explicação: a linguagem alimentar é utilizada porque é simples e facilmente apreendida. Chega às pessoas.
Em boa verdade o leitor médio da Bíblia não conseguirá eleger mais do que dois ou três momentos gastronómicos inscritos no Livro. Mas há muitos? Pelo que percebemos da leitura do seu “Ao Sabor da Bíblia”.
Sim. Eu entrei na história bíblica um pouco por acaso. Conhecia algumas passagens que ouvimos aquando da Eucaristia ou em certos rituais litúrgicos. Aprofundando a abordagem com a minha investigação e sabendo agora mais, percebo o quanto há por explorar. Mesmo estudando-a todos os dias. A Bíblia é toda ela um convite para a mesa, para a abundância. Há investigadores dos livros sagrados que se inclinam para uma explicação: a linguagem alimentar é utilizada porque é simples e facilmente apreendida. Chega às pessoas.
Por exemplo, abrimos o Livro de Génesis e logo na abertura temos a criação do Mundo. Que não é mais do que a criação da comida. Temos o Caos, tudo é escuridão e a partir da água, Deus começa a criar o Mundo. O que é que Deus cria? A diversidade. Só no final cria o Homem. Fez-lhe a mesa com tudo à disposição e depois dá-lha e pede-lhe que cuide e cultive.
Outro exemplo, o episódio de Adão e Eva é uma tramóia alimentar. Deus dá tudo aos homens mas não lhes dá o fruto do conhecimento. “Não podes comer ali”. Ou seja, lá está a dimensão alimentar. Considero que esta chamada de atenção é um pouco de, “cada um no seu lugar”. Há quase uma regra de etiqueta.
A saída do povo Hebreu do Egipto é uma história de procura de uma terra de Leite e de Mel, de abundância e de comida. O que Deus dá aquele povo? Uma terra mais fértil. Os textos falam no Leite e no Mel, isto porque quando Deus dá, fá-lo na abundância e na gratuitidade. Isto porque não são alimentos que se adquiram através do trabalho, são-nos dados pela natureza.
Poderíamos continuar, pois as cenas alimentares estão nos grandes momentos bíblicos. Todas elas são mensagens feitas a partir da alimentação.
Onde cabe a narrativa da maçã dada por Eva a Adão?
Ao contrário do que se fala não há referência à maçã no Génesis. Só uma vez aparece este fruto, no Cântico dos Cânticos, associado a uma cena de amor. Esta associação da maçã ao Paraíso talvez venha do facto de ser um fruto doce, apetecível que as pessoas gostariam de comer.
No seu livro diz-nos uma coisa interessante: Os grandes momentos de Jesus prendem-se com a comensalidade. Inclusivamente fundamenta que Jesus procurou a mesa como centro estratégico para toda a sua ação. Quer explicar-nos?
O judaísmo fazia um grande culto da mesa. Tinha na mesa o centro da sua identidade. Só iam à mesa os alimentos que coubessem no crivo da Lei. O acesso à mesa faz-se com regras, com uma ética. Nem toda a gente se senta à mesa. É um escândalo quando Jesus se senta, por exemplo, à mesa dos Fariseus ou da mulher de má vida. Os judeus nem acreditavam no que se passava. Acresce que curava ao sábado, um dia sagrado.
Jesus faz a toda a sua revolução quebrando com a Lei, criando Ele a própria Lei, comendo de tudo e com todos. Já não há restrições e a mesa torna-se um centro estratégico, pois a partir daí cria a sua mensagem de acolhimento, de inclusão.
Jesus faz a toda a sua revolução quebrando com a Lei, criando Ele a própria Lei, comendo de tudo e com todos. Já não há restrições e a mesa torna-se um centro estratégico
Inclusivamente depois de Ressuscitado.
Sim, a estratégia doutrinal vai além da vida. O episódio da Ceia em Émaus, quando Cristo aparece aos discípulos já Ressuscitado e partilha o pão é disso exemplo. É um gesto singelo e forte. Já no capítulo XXI de São João, Jesus cozinha para os seus discípulos que tinham ido à pesca e não trazem nada. Pede-lhes que voltem ao mar. Regressam carregados de peixe. Vamos encontrar Jesus na margem do lago de Tiberíades, ao fogareiro, a assar peixe.
Sabemos, inclusivamente, que Jesus é uma pessoa que gosta de comer, de estar à mesa. Há a célebre frase em que diz: “ansiei ardentemente comer a Páscoa convosco”. O facto de ele trazer tantos episódios para a mesa também nos indica isso.
Aliás, um dos momentos charneira do cristianismo tem lugar à mesa, com a Última Ceia…
Não precisamos ir à Última Ceia para justificarmos a posição de Jesus. O que ali temos é uma tradicional ceia judaica, o Seder de Pessach. Ou seja, um ritual, espaçado por cenas, como o lavar das mãos, a bênção, comer os primeiros aperitivos, muito simples, o pão e a inclusão de quatro taças de vinho. O momento alto era, de facto, quando se comia o cordeiro assado no forno. Tal como o Livro do Êxodo o explicita, com ervas amargas e pão ázimo. Não era uma refeição para além disto. Tinha momentos de leitura em que se recordava a passagem dos Israelitas do Egipto para a Liberdade.
O que Jesus ali faz é, depois de tudo servido, pegar no pão e no vinho e institui-os. Estes alimentos ganham uma nova carga. Isto, pese embora, os antigos gregos já fazerem do vinho uma bebida de partilha no âmbito dos Simpósios [encontros intelectuais após banquetes]. O vinho tinha, então, uma carga simbólica. Era usado como um elemento de espiritualidade, de elevação.
A Bíblia é um apelo ao natural, ao biológico, a tudo aquilo que está próximo da origem. Isto numa época em que encontramos, de novo, essa tendência.
Inclusivamente no Novo Testamento o peixe torna-se em símbolo de Cristo. Mas nem sempre o peixe foi assim olhado…
O simbolismo é importante. O peixe, em toda a Bíblia, nunca é nomeado. Quando um ser não tem identidade é porque ninguém o valoriza. O Antigo Testamento desvaloriza-o. O Novo Testamento não o nomeia. O peixe é uma criatura que se dá abaixo das águas. Os antigos consideravam o peixe como um monstro, que devorava os homens. Temos o Livro de Jonas em que o peixe devora o profeta e ao fim de três dias o liberta. Há quem veja nessa narrativa os três dias que mais tarde mediarão entre a morte e a Ressureição de Cristo. O valor simbólico do peixe neste episódio, que simboliza a morte mas que não vence.
Pode dar-nos mais exemplos desta relação simbólica com os alimentos expressa na Bíblia?
Sim, olhemos para o vitelo gordo que tem um significado extraordinário na Bíblia. Não aparece muitas vezes, mas quando nos é dado é nos momentos certos. No Génesis, Abraão o primeiro grande patriarca queria ter um filho da sua mulher Sara, mas não tem pois ela é estéril. O vitelo gordo cabe nesta história e é servido num contexto muito especial. Abraão recebe a visita de três anjos que lhe anunciam que Sara irá engravidar. Abraão, grato, convida os anjos para comer e manda a mulher fazer pão. Ele próprio vai buscar um vitelo gordo para cozinhar às visitas.
O Jejum é o momento que nos retira os alimentos que nos ligam à terra, ao cosmos, ao natural. O não comer liga-nos a uma outra realidade, à espiritualidade, à transcendência
O Luís Lavrador transmite-nos no seu livro um princípio, o da comensalidade e pureza inscritos na Bíblia. Um aspeto que liga a esta nossa procura de alimentos libertos de substâncias lesivas. Concorda?
Um dos propósitos do livro que publiquei é exatamente esse. Não estou a ver ninguém desenvolver uma receita bíblica usando produtos processados [risos]. É um apelo ao natural, ao biológico, a tudo aquilo que está próximo da origem. Isto numa época em que encontramos, de novo, essa tendência. As pessoas cansaram-se daquilo que é igual em todo o lado. As pessoas procuram a autenticidade e podemos encontrá-la nestas propostas que enquadro no meu livro.
No fundo, faço também um apelo à sustentabilidade, ao equilíbrio ecológico. Temos dois Papas que escreveram duas encíclicas referentes a estas matérias e que no fundo nos dizem, ou nos viramos para a terra e a cuidamos e aos seus produtos, ou destruímo-nos.
A comensalidade, enquanto partilha, convívio, é transversal a todo o seu livro. Esta é uma obra de partilha?
A Bíblia convida as pessoas para a mesa, do Antigo Testamento ao Novo Testamento. Comer é mesmo isso, ingerir alimentos com outrem Também convida, naturalmente, para o Jejum, a antítese do comer. Sabemos quão importante é jejuar.
O Jejum é o momento que nos retira os alimentos que nos ligam à terra, ao cosmos, ao natural. O não comer liga-nos a uma outra realidade, à espiritualidade, à transcendência, algo que as pessoas também procuram, embora não fazendo nada para lá chegar.
Hoje abandonamos essas práticas nas religiões cristãs. Considero isso mau, até por uma questão física. Há um momento em que devemos fazer uma pausa, limpar.
Gosto particularmente do episódio em que os Hebreus vão a caminho da terra prometida, sentem fome e reclamam com Moisés. Murmuraram muito e até dizem, “quem nos dera ter a fartura de melões e pepinos que tínhamos no Egipto”. Deus diz a Moisés para lhes dar carne. Aquele povo acaba por comer com tanta avidez que ficam com a carne pendente nos dentes. Aqui está também a perda da humanidade e uma carga animal. Isso mesmo aplica-se à nossa vida quotidiana. Estes seres ávidos.
Vamos encontrar muito daquilo que aqui narra, tratado como episódios alimentares no seu livro. Quer explicar-nos?
O livro que veio a público verte da minha tese de doutoramento, mas uma versão mais leve, sucinta. Todas as propostas de confeção culinária que o leitor encontra são fundamentadas, direta ou indiretamente. Dou-lhe um exemplo: como é que sei o que Jesus comeu na casa de Marta e Maria? Há uma belíssima pintura do século XVII de Diego Velázquez com esta cena. Vamos encontrar a cozinha desarrumada. Jesus como convidado de honra. Vemos uma travessa com peixe.
O autor da pintura terá imaginado esta cena. Eu não lhe associei esse alimento. Quando fiz o levantamento para o meu Doutoramento discuti durante quase um ano este episódio com a Dra. Maria Helena Coelho e a Dra. Paula Barata Dias. O que teria Marta cozinhado? Eu dizia, só pode ter sido o resto de uma refeição anterior. Fui contrariado pelas minhas orientadoras que me diziam que não lhes parecia. Apontavam antes para um belíssimo prato. Até chegarmos a um prato de consenso, relativamente sofisticado.
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