Se a fermentação e destila acontecem nos meses de inverno, a apanha do medronho começa invariavelmente no outono quando a serra se enche de arbustos pintalgados de medronhos vermelho-alaranjados. Ricardo Gonçalves, que destila na Quinta Gonçalves, no Sítio de Vale de Lobo, em Monchique explica que “a apanha começa no final de setembro, em poucas quantidades; o outubro e novembro são fortes e apanha-se até final de dezembro”.
Apesar dos incêndios do verão de 2018 que dizimaram muitos medronheiros na Serra de Monchique, ao calcorrear os terrenos a pé consegue-se, na mesma, escolher aqueles que farão as caldeiradas.
Pisco como é conhecido, de 35 anos, aprendeu a destilar com o seu irmão que sempre utilizou os rituais e preceitos antigos. Uma das dicas que nos deixa é de escolher os arbustos soalheiros que são abençoados com o medronho mais doce. Uma vez que os medronheiros apresentam frutos com diversos pontos de maturação, deve-se apanhar apenas os frutos já maduros para uma aguardente mais macia e rentável: “Consigo apanhar até cinco vezes de um arbusto (…) de oito em oito dias volto ao mesmo sítio para recolher as bagas restantes”.
O medronho segue para a destilaria onde fica cerca de dois meses a fermentar em potes de 200 litros, dando-se a magia da transformação dos açúcares em álcool. Esta não é só uma altura de esperar é também de atenção, perícia e sabedoria, para manter a fruta húmida, evitando que azede. Ricardo menciona que “este ano apanhamos o medronho à chuva, por isso, não precisou de tanta água como no ano passado. (…) O medronho é que pede a água necessária”.
O rigor de procedimentos antigos dita como se deve cobrir as barricas, pois tudo tem uma razão de ser: “fazemos a cara ao medronho, ou seja, esmago medronhos por cima da massa fermentada; aliso tudo e coloco sal por cima. Essa camada grossa de medronho com o sal retém a humidade, senão pode azedar”.
Os tempos não alteram nem o material, nem a forma da destila em alambique de cobre. O ritual de lavagem do alambique é a condição essencial para dar início à destila da massa de medronho fermentado, impedindo que o “zinabre” contamine o sabor da bebida. “A limpeza está sempre em primeiro lugar, pois como o alambique é de cobre ganha zinabre e é toxico.”
Assim começa o processo ancestral da destila, numa receita de massa de medronho, água e aguardente frouxa obtida na caldeirada anterior. Numa temperatura precisa, a fornalha cria uma atmosfera de vapores adocicados que só é possível com a experiência dos aguardenteiros. É pelo calor do lume que os vapores do preparado passam da cabeça do alambique e seguem caminho até ao pilão (tanque de água fria), onde se liquefazem nas primeiras gotas da preciosa aguardente! Pisco explica que todo o processo leva cerca de três a quatro horas: “No princípio o fogo pode ser mais forte para aquecer todo o material. Após cerca de 1h30 temos de reduzir o fogo para que o medronho não saia rijo”, ou seja, para que o medronho não queime ao ser bebido.
“Levo 40 minutos a mexer a massa enquanto o tacho aquece. De seguida ponho a cabeça do alambique e em dez minutos começa a correr a primeira aguardente que não é aproveitada, pois pode ter zinabre. A destila boa começa a correr de fio, altura em que coloco o cântaro de barro. Depois de cerca de duas horas começa a sair a aguardente frouxa” de baixo teor alcoólico.
Mas como é que os aguardenteiros sabem distinguir entre a aguardente boa e a frouxa? Ricardo tem um teste infalível que chama de “fazer as contas”! Se o copo ficar raso de bolinhas de ar é porque tem a graduação ideal (correspondente a 50% de teor de álcool); “quando está frouxa, não faz contas. Parece água”, afirma.
Esta é uma arte que leva a tradição muito a sério, mas que conta com análises modernas de especialistas para atestar se o produto final está perfeito. Para termos noção, os potes de 200 litros rendem cerca de 11 a 13 litros de aguardente de medronho, que não pode ser engarrafada sem ser analisada pela Universidade do Algarve.
Tudo para que o líquido macio e adocicado seja partilhado com amigos e familiares. Um pirolito ou dois de medronho que alegra as conversas, aquece o corpo e certamente é testemunho de muitas histórias para contar.
Texto: Filipa Glória
Foto: João Mariano
Texto originalmente publicado em fevereiro de 2019.
Este artigo é transposto da página do projeto MEMORIAMEDIA. Uma iniciativa que arrancou em 2006, tendo como objetivos o estudo, a inventariação e divulgação de manifestações do património cultural imaterial: expressões orais; práticas performativas; celebrações; o saber-fazer de artes e ofícios e as práticas e conhecimentos relacionados com a natureza e o universo.
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