Peguemos num dicionário para percebermos o que nos devolve a entrada Infundice. Lemos: “barrela feita de urina em que se demolhava a roupa muito suja para depois se lavar mais facilmente”. Face ao exposto, sabendo que à especialidade culinária da Ericeira, a caneja, lhe é colado o termo Infundice, temos de nos preparar para uma “refeição fora da caixa”.
É no decorrer de um almoço na sua propriedade que um filho da Ericeira, Artur Gama, produtor vinícola da casa Quinta da Boa Esperança, próxima de Torres Vedras, nos explica a singular forma de cura da caneja, peixe da família do cação, que a restauração evita e que ao palato mais sensível de alguns comensais pode afigurar-se repelente.
Artur é membro de uma peculiar Confraria, a da Caneja de Infundice, criada em 2016. O mesmo é dizer que na Ericeira este prato singular continua a ter quem lhe preserve a memória. “Todos os anos, pelo outono, fazemos um almoço que chega a reunir 200 pessoas”, sublinha o produtor vinícola.
Um almoço que não é preparado nem confecionado em nenhum restaurante da localidade da Região Oeste. Há uma razão de base: o odor. A caneja depois de capturada nos mares próximos à Ericeira, de março a outubro, é “embrulhada durante duas semanas num pano e assim fica, em local escuro e fresco, por exemplo uma arca ou gaveta. Há mesmo quem a enterre”, diz ao SAPO Lifestyle o nosso interlocutor.
“O cheiro da caneja depois deste processo é horrível, pode manter-se semanas. Contudo, depois de cozido o peixe adquire uma cor branca e um odor mais suave
Volvido este tempo de maturação, o peixe, então com um forte odor amoniacal, é preparado para ser cozido. “O cheiro da caneja depois deste processo é horrível, pode manter-se semanas. Contudo, depois de cozido o peixe adquire uma cor branca e um odor mais suave. Acompanhamo-lo com batata cozida com pele, uma cebola crua e um fio de azeite - que em contacto com o peixe perde o tom dourado, ficando esbranquiçado - e a textura e macieza desta carne é estupenda”, adianta Artur Gama. Manda a tradição que à caneja se lhe junte o vinho tinto, o que eleva a experiência gastronómica. “Os mais velhos dizem que, a acompanhar a caneja, se pode ingerir cinco litros de vinhos sem nos embebedarmos”, é-nos afiançado. Não pode, também, faltar um bom naco de pão de Mafra.
É claro que este sabor intenso tem de ser cultivado. Gosto e odor trabalham em conjunto e há que superar o impacto primeiro de uma sala de tachos fumegantes de cheiro amoniacal. Artur recorda os tempos em que petiscava, ainda menino, a Caneja de Infundice. “Comíamos a caneja à beira-mar. E garanto-lhe, não havia constipação que nos pegasse”.
Hoje em dia, ainda de acordo com Artur Gama “só três pescadores confecionam regularmente a Caneja de Infundice”, um prato que reza a lenda, nasceu precisamente na comunidade piscatória. Certo dia, um marítimo esqueceu-se de uma posta de caneja, depois de lavá-la em água do mar, embrulhando-a em papel de jornal. Volvidos 15 dias dá-se conta do peixe e do seu forte odor a amoníaco.
Não obstante, o pescador cozinha a caneja por não lhe encontrar aspeto estragado. Depois da confeção, percebe que o peixe adquire elevação de sabor. Está criado o prato e nasce a história.
“Depois de amanhada a caneja é-lhe feita uma salga e, posteriormente, o peixe é embrulhado em panos brancos (de preferência de linho). Isolam-se as postas umas das outras. Nenhuma posta deve permanecer em contacto físico direto com as postas adjacentes”.
“Embrulha-se ou acondiciona-se num saco de serapilheira e reserva-se num sítio escuro e fresco. Outra alternativa é colocar na parte inferior do frigorífico, previamente fechada num saco de plástico. Deixa-se em repouso cerca de 8 a 15 dias. Quanto mais tempo estiver a curar ou curtir mais infundice ganha a caneja”.
Os mais afoitos podem testar esta especialidade gourmet nas suas cozinhas. Mas, atenção, que se preparem, para duas semanas de queixas da vizinhança.
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