Em agosto último uma reportagem publicada pela prestigiada BBC Travel correu o mundo. O jornalista britânico David Farley visitou Portugal no rasto do nascimento do Tempura, um clássico da cozinha nipónica inspirado nos nossos Peixinhos da Horta. Tal como o SAPO Lifestyle publicou na altura, Farley assumia no artigo que a cozinha portuguesa pode vir a tornar-se a mais influente à escala global.
Agora é a jornalista Theodora Sutcliffe que para o mesmo órgão de informação enaltece outro produto há muito arreigado aos comeres portugueses, a Alheira. No artigo publicado, já este mês de setembro, intitulado "Portugal´s sneaky sausage that saved jews", Sutcliffe visita o nosso país e tece o rasto da Alheira até ao século XV, mais concretamente a 1496, quando os judeus portugueses se viram forçados à conversão ao cristianismo. Contrariar a ordem, acarretava a expulsão do país. A comunidade judaica viu-se atingida, perseguida, eliminada. Como sublinha Theodora na sua peça, “Disfarçando-se de Cristãos convertidos [Cristãos-novos], os judeus portugueses fizeram grandes esforços para esconder as suas práticas religiosas. Nas montanhas remotas de Trás-os-Montes, no Norte de Portugal, uma comunidade judaica criou um enchido, a Alheira”. A comunidade vivia em Mirandela onde mandava a tradição que os enchidos de porco ficassem em cura durante o inverno, pendendo das vigas dos tetos.
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A tradição da dieta judaica proíbe o consumo de carne de porco. A não existência desta num lar poderia alertar a Inquisição. "Para se refugiarem da Inquisição, os judeus de Mirandela desenvolveram um enchido com pão, frango e condimentos", explicou à articulista inglesa, Paolo Scheffer, especialista na história judaica, a residir em Lisboa. Desta forma, a jornalista, alerta no seu artigo que “numa época em que os judeus foram queimados na Praça do Rossio, a Alheira provavelmente salvou centenas, talvez milhares, de almas”.
Também de acordo com Scheffer "para os judeus Asquenazes, a Alheira de Mirandela é semelhante ao Kishke, um enchido kosher [de acordo com a prática alimentar judaica] recheado de gordura, farinha e elementos que conferem sabor, que muitas vezes é servido no ensopado de feijão sabático judaico, lentamente cozinhado”.
Em Lisboa, Theodora Sutcliffe visitou um dos bastiões dos produtos portugueses, a Manteigaria Silva, a operar desde 1928. “Os presuntos curados pendem do teto, os vinhos do Porto e da Madeira competem pelo espaço na prateleira e pedaços de queijo dourado aguardam a lâmina. Ao lado do lombo (carne de porco curada) e chouriço encontra-se um enchido tão bem português que uma votação pública de 2011 o declarou uma das sete maravilhas gastronómicas da nação: a Alheira de Mirandela”, sublinha a repórter.
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Com o passar dos séculos, a alheira viajou muito para além das montanhas do nordeste português, deixou de ser um alimento Kosher, para incorporar, também, a carne e gordura de porco, também carne de caça, azeite e banha, alho, colorau doce, sal. Diz-nos Theodora: Em Portugal “é um alimento básico de conforto. Não a encontra em restaurantes excelentes, mas é omnipresente nos supermercados e aparece ao lado de bife e ovos em cafés operários ou cantinhos de bairro”.
No Zé dos Cornos, em Lisboa, um tasco de azulejos brancos próximo ao Castelo de São Jorge, a repórter britânica viu-lhe ser servida a Alheira de Mirandela. “Veio brilhante, grelhada e em forma de ferradura, ao lado de um ovo frito, batatas fritas e arroz branco. No enchido fumegante vi pedaços suculentos de carne misturados e amassados com pedaços de pão”.
Concluí Theodora, “Hoje, embora as cidades de todo o país comecem a redescobrir a sua história judaica, a alheira é mais um ingrediente da gastronomia portuguesa do que um símbolo das pessoas que a criaram”.
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