Comecemos esta viagem de sabores algarvios quando o fogo já leva meia hora de labor. Sobre o calor brando, descansa a cataplana. Estamos no território desta peça inseparável da nossa cozinha de feição meridional. Um artefacto que é herança milenar, mourisca, da tajine, tão comum nas cozinhas do norte de África. Séculos de engenhosos afinamentos fizeram-na, em terras algarvias, numa prima adaptada aos labores da nossa cozinha, a cataplana.
Dentro das duas metades desta concha, laborada em cobre martelado, dá-se a química dos alimentos. Um âmago fumegante e vaporoso de vegetais que, em breve irão receber as carnes, as que a terra dá, corporizadas no porco, e aquelas outras, delicadas, nascidas nos baixios à beira-mar, no caso vertente um bivalve, a amêijoa.
Margarida Vargues, formadora em cozinha pertencente à Tertúlia Algarvia, espaço de divulgação da gastronomia, história e tradições da região, é a obreira desta demonstração de labor culinário. O tema: a cataplana de carne de porco e amêijoas à algarvia. O cenário, o barrocal, a faixa de território algarvio que medeia entre o Atlântico, a sul, e a serra, a norte. O palco, a Herdade da Corte, no interior do concelho de Tavira. O pretexto: a demonstração de como um traço, no caso vertente culinário, deste modo de vida a sul pode ser pretexto de atração, de convivialidade e de descoberta de um território. Um dos objetivos do projeto MEDFEST, que une oito países da bacia do Mediterrâneo. Em Portugal tem como entidade agregadora a Associação In loco. A Herdade da Corte é um dos parceiros desta iniciativa. João Bago d'Uva, um dos proprietários da unidade de turismo rural com 120 hectares é, hoje, nosso anfitrião.
É na cozinha que agora nos juntamos. Espaço que é elemento natural ao convívio mediterrânico. Margarida tratou de nos providenciar todos os ingredientes necessários à produção desta peça saborosa dos comeres do Algarve. “Um prato que no passado era uma exceção. Só se comia pontualmente, o que é natural num contexto de populações humildes”, sublinha a nossa orientadora desta sessão de cozinha. Julga-se que, no passado, a cataplana era acomodada num buraco cavado na terra, posteriormente tapado. Um forno natural que aconchegava pedras quentes favorecendo a cozedura dos alimentos no interior do recipiente.
Sobre a bancada já descansa um naco de carne de porco, peça do lombo. A apurá-lo estão quatro dentes de alho, duas colheradas (de sopa) de pimentão doce, uma boa colherada de sal grosso, um pezinho de alecrim e outro tanto de tomilho. “Há que dar sabor à carne, respeitar os tempos dos ingredientes”, substancia Margarida. Queremos que a carne absorva todos os ingredientes, permitindo-lhe descansar ao encosto do tempero. Para isso, deixe-se o naco de porco a marinar uma noite no frio do frigorífico.
“Noutros tempos, quando se praticava a matança do porco, as carnes perecíveis iam alimentar a cataplana. O tempo urgia para elas, pois degradavam-se mais rapidamente. As carnes mais resistentes tinham caminho aberto para os enchidos, perdurando ano fora”, refere Artur Gregório, um dos anfitriões deste momento de cozinha e o responsável em Portugal pelo programa Medfest.
É Artur que, antes de avançarmos para os restantes ingredientes que aguardam por mãos laboriosas, nos explica o que significa ter os pés aqui assentes neste território denominado barrocal. “É terra de solos calcários o que define uma vegetação específica, onde encontramos, por exemplo, a alfarrobeira, mas também os laranjais e amendoeiras. Um pouco para norte temos a serra, com o xisto na feição e o sobreiro a imperar na flora. Para sul, os terrenos arenosos do litoral, atreitos à vinha. O barrocal, por ser uma zona de transição, serviu durante séculos como entreposto comercial entre as duas regiões vizinhas e fixação de importantes centros populacionais como Loulé, Silves ou São Brás de Alportel”.
Não se estranhe, então, esta ligação dentro da cataplana entre aquilo que a terra e o mar nos dá. No caso vertente, dentro do alguidar descansa um quilo de amêijoas passadas por várias águas correntes. “Certifique-se de que no fundo do alguidar não ficam grãos de areia, desmereça todas as amêijoas que boiam, assim como as abertas”, orienta Margarida.
Não no esqueçamos. Começámos por referir que na “nossa” cataplana fumegavam os vegetais. Para assim os termos, plenos de sucos, houve que cortar às rodelas uma cebola de proporções generosas, três dentes de alho picadinhos, picar um naco de chouriço de carne, e arrumar tudo no âmago da cataplana onde fazemos um refogado. Juntamos uma pitada de sal grosso, acrescentamos uma golpada de azeite e, se for a gosto, uma vagem de pimenta picada (pode desmerecer as sementes para subtrair picante à pimenta). Deixamos apurar, até a cebola dar mostras de maciez.
“Vamos, agora, juntar três tomates médios picados, um raminho de tomilho e alecrim, refrescar com vinho branco e somar a tudo três meios pimentos, cortados às tiras (amarelo, verde e encarnado, queremos cor nesta cataplana)”, sublinha Margarida Vargues. Há uma nova emanação de vapores odoríferos, uma lufada que arrebanha a doçura da cebola refogada, a vivacidade dos pimentos e o espicaçar campestre das ervas aromáticas.
É chegado o momento de entregar à cataplana a carne de porco cortada aos cubinhos. Fazemo-lo sobre a cama de vegetais ferventes que impregnam com os seus sucos a chicha acabada de chegar. No mesmo ato, entregamos ao calor as amêijoas, ajeitamos tudo com a colher de pau e fechamos a cataplana.
“Há a ideia de que este modo de confeção dos alimentos é muito moroso. É uma ideia falsa, a cataplana produz-se muito rapidamente”, alerta Margarida. É importante, contudo, manter o recipiente fechado, sacudindo-o sem rudeza, de quando em vez. O produto final, aquele que nos é entregue com a abertura da cataplana, selada com os seus dois fechos laterais. A perfeita conjugação de todos os elementos, embora continuemos a traçar a feição de cada um. As amêijoas abertas, expondo a carne branca do hospedeiro, a carne de porco de maciez mimada pelos vegetais. Estes, tenros e de cor desperta. E um molho de tonalidade viva, espesso, a espicaçar-nos o mergulho de um bom naco de pão. Daquele nascido com tempo, de fermentação demorada, bom cereal e forno atiçado a lenha.
Para acompanhar esta cataplana de porco com amêijoas, umas batatinhas novas cortadas em quartos e que se demoraram no forno em casamento com uma pitada de sal grosso, tomilho e alecrim, quatro dentes de alho esmagados e uma boa pincelada de azeite. Tudo para maridar à mesa e servir acompanhado com uma boa dose de comensalidade.
Artigo originalmente publicado em maio de 2019
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