
Depois de ter percorrido a gastronomia dos cinco continentes, a 2.ª edição do Global Kitchen decidiu concentrar todas as suas atenções naquelas que são as receitas tradicionais do Porto. Sob o mote global goes local, o desafio passou por selecionar três pratos emblemáticos da cidade, entregá-los a três chefs internacionais que, de alguma forma, mantivessem uma ligação com o produto do território a trabalhar, e desafiá-los a fazer a sua reinterpretação destes clássicos portuenses. Tripas à moda do Porto, Francesinha e Filetes de polvo com arroz do mesmo foram os pratos selecionados para esta edição e que tiveram como embaixadores locais os chefs Marco Gomes, Rui Paula e Pedro Lemos, respetivamente.
"Nós queremos partilhar com a cidade e com aqueles que trabalham nesta área, a importância de prevalecerem os pratos identitários e as receitas da cidade porque é isso que nos distingue enquanto destino", começa por afirmar Catarina Santos Cunha, Vereadora com o Pelouro do Turismo e da Internacionalização da Câmara Municipal do Porto, sobre esta iniciativa que decorreu entre maio e junho e tem a ambição de "trazer o mundo ao Porto e levar o Porto ao mundo". Para si, "o futuro dos destinos turísticos tem muito a ver com esta preservação da sua identidade e isto também alinha com a estratégia de sustentabilidade para o turismo, porque se o turismo também não traz benefícios ao território, então realmente é uma área da economia que não traz grande expressão".
Depois das Tripas reinterpretadas pelo chef italiano Diego Rossi e da Francesinha reinterpretada pelo chef espanhol Diego Alary, no último fim de semana do Global Kitchen, o evento colocou em destaque a frente de peixe e marisco que a cidade tem e trouxe para cima da mesa aquele que é um dos ícones gastronómicos desta: os Filetes de polvo com arroz do mesmo que foram recriados pela chef brasileira Janaína Torres que, em 2024, foi distinguida como ‘Melhor Chef Feminina do Mundo’ pela lista The World's 50 Best Restaurants.

Para o chef Pedro Lemos, o polvo – especialmente o cozido – é presença obrigatória no menu de muitos restaurantes típicos da cidade e não pode faltar à mesa naqueles que são momentos festivos da vida dos portuenses. "É um prato cultural, de mesa, de família, de convívio e de partilha", disse ao introduzir o momento de showcooking que decorreu na Escola de Hotelaria e Turismo do Porto, onde se cruzam memórias, ingredientes e técnicas que unem Portugal e o Brasil.
Sobre esta matéria-prima, elogia-lhe a versatilidade e as múltiplas funções dadas pelas mães e pelas avós ao longo das gerações. Das sobras cozidas faziam-se filetes, sendo que da água da cozedura e das partes menos nobres surgia um arroz malandro. "Mais de metade da alimentação do polvo é feita de crustáceos e marisco. Come sapateira, santola, camarão… É muito fino", diz, entre risos, sobre este molusco.
A paixão por este clássico da gastronomia levou a que, em outubro de 2009 – ano em que abriu o seu restaurante homónimo galardoado com uma estrela Michelin – o chef incluísse parte daquela que é a sua identidade no menu. A par da salada montanheira, feita com os tentáculos do polvo e tomate picado, criou um arroz de polvo feito com um dos seus fumeiros de eleição: a chouriça de cebola feita com sangue de porco. "Os nortenhos gostam sempre de utilizar o porco para dar corpo, para dar alma ao prato".
Filetes de polvo com arroz do mesmo com um toque à brasileira

A chef Janaína Torres, detentora de projetos como A Casa do Porco, Hot Pork ou a Sorveteria do Centro – viajou até ao Porto, que em 2024 foi distinguido como o melhor destino gastronómico, para apresentar a sua versão autoral deste símbolo da Invicta. "Estar aqui é como estar na minha casa. Porque eu falo português e nós temos uma conexão muito forte", começa por afirmar a chef sobre este momento de partilha de conhecimentos que decorreu na Escola de Hotelaria e Turismo de Porto.
De forma a honrar as suas raízes portuguesas – o seu avô paterno era português – e a ligação que tem unido Portugal e Brasil ao longo dos séculos, o showcooking de Janaína Torres depressa transformou-se numa verdadeira aula de História. "Vou começar a fazer o nosso arroz e a misturar estas duas ligações, que é o Brasil antes da colonização e o Brasil pós-colonização. Aqui vamos usar a banha de porco. Os porcos foram levados para o Brasil com os italianos e os portugueses, assim como a galinha", elucida sobre esta gordura animal que é utilizada para fazer o refogado juntamente com o toucinho, a cebola e o alho-francês. "Começamos com uma cultura pós-colonização onde acabamos por misturar as técnicas dos povos nativos com as técnicas portuguesas".
Esta conexão com o Brasil antes da colonização é celebrada através da introdução do tucupi, um produto ancestral oriundo da ilha de São Gabriel da Cachoeira, localizada no estado do Amazonas. Este "ouro líquido comestível" – que pode surgir numa versão amarela e preta - é extraído de uma planta milenar muito utilizada na culinária do Brasil: a mandioca brava. "Esta mandioca era venenosa. Tem um ácido que não se pode comer. Os animais morriam quando comiam essa mandioca e era uma planta super problemática para os povos indígenas", explica sobre a sua origem que nos leva até à região Norte do Brasil.
Para se consumir este tubérculo milenar nativo brasileiro em segurança, este precisava de passar por um processo de amassadura, de onde obtínhamos o tucupi líquido amarelado que, por sua vez, era submetido a um processo de fervura de 60 minutos para eliminar as suas propriedades venenosas. "Algumas regiões tinham tanto medo deste ácido que eles acabaram por reduzir sempre muito [o líquido] até virar isto", diz, apontado para o tucupi preto, que não é mais do que uma redução do amarelo. Ambas as versões foram utilizadas para aromatizar o caldo que serve de base ao arroz de polvo e que, de certa forma, vêm substituir o vinho que é usado na sua confeção. "Dá aquela acidez que aqui é uma coisa que não tem", que faz questão de dar a provar a todos os presentes nestes desta joia que é utilizada pelas comunidades indígenas em várias confeções de arroz e carne.
Arroz e polvo, dois produtos que aproximam Brasil e Portugal

A relação entre o Brasil e Portugal continua com a introdução do arroz. Este cereal, que é um dos ingredientes principais deste prato típico, tem um lugar especial no coração e no menu do restaurante detido por Janaína Torres. Se viajar até ao centro de São Paulo e se sentar à mesa do Bar da Dona Onça vai encontrar uma carta inteiramente dedicada a arrozes. Foi precisamente devido a esta ligação que a chef foi escolhida para confecionar esta receita tão típica da cidade.
Apesar de Portugal ser o país que mais compra arroz per capita do mundo, este é um alimento básico de grande relevância na cultura brasileira. Já o polvo, curiosamente, também é bastante consumido no Brasil. Na região do litoral Norte de São Paulo, este molusco é muito popular na forma de vinagrete de polvo, o equivalente à nossa salada de polvo, que é feito com tomate, cebola, cheiro verde e azeite, e servido frio nos churrascos de praia. Esta é uma receita que desperta memórias em Janaína Torres que a leva até à sua adolescência. "Eu tinha um amigo e ele mergulhava. Sem nada, ele pegava o polvo, trazia e eu cozinhava esse polvo, sem água, sem nada. Abria uma latinha de azeite, cebola, tomate e cozinhava durante mais ou menos 15 minutos na pressão. Tirava, picava… E isso eu tinha 15 anos, tá?", conta.
Foi em Portugal que provou, pela primeira vez, arroz de polvo. "Eu achei o máximo porque eu não tinha essa coisa de comer esta especialidade", diz sobre a experiência que teve, em 2011, no Gambrinus. Apesar de ainda não ter tido tempo para provar o polvo frito que faz parte da receita que a trouxe até ao Norte de Portugal, a versão apresentada no Global Kitchen foi feita com base na sua experiência e intuição de como seria se tivesse de a recriar à moda brasileira.

A ideia inicial era fazer um sushi de polvo, com alga crocante, recheado com um arroz compacto feito com o caldo do polvo e os tentáculos cozidos. Esta bolinha ia ser finalizada com lâminas de polvo panado, topping de tucupi e o vinagrete de polvo da sua adolescência, mas a falta de tempo trocou-lhe as voltas. "Eu ia servir como sendo português e japonês, porque a gente tem uma imigração muito forte aqui, mas eu ia precisava de ter um dia para criar isso. Então, fiz o arroz. Achei que é legal porque não é o mesmo. Fi-lo mais quadradinho, como se fosse empanadinho. Consegui também entender, mais ou menos, como é que é o prato. Agora, não me vou embora sem provar esse prato de jeito nenhum”, confessa, entre risos.
Depois de o arroz estar pronto e de introduzir as pernas de polvo cozidas, a Janaína Torres finaliza a receita ao adicionar uma textura crocante: o polvo panado. Tal como explica durante o evento, a introdução de um elemento frito e crocante foi uma forma de celebrar a sua identidade e uma tentativa de resgatar o hábito de comer milho, que acabou por se perder com a Revolução Industrial que, no século XVI, trouxe o arroz para o Brasil e que se impôs na sua alimentação em detrimento deste grão de cor amarela. Este surge na forma de farinha que, juntamente com o ovo e a farinha de trigo, serve para panar o polvo que, posteriormente, é cortado aos pedaços e colocado em cima do arroz.
"A cozinha tradicional pode ser reinterpretada sem perder a sua originalidade. O mais importante da cozinha é saber e dar crédito à origem das coisas", refere durante este momento onde pretende, acima de tudo, inspirar a nova geração de jovens cozinheiros a olhar com outros olhos para os pratos que existem nas suas casas e a arriscar em versões autorais e criativas.
As suas influências também se fazem sentir nas pimentas tradicionais do Norte do Brasil que utiliza para finalizar e dar mais tempero ao arroz, como é o caso do olho de peixe, jiquitaia e murupi, e, ainda a malagueta. "Esse arroz, tal como muitas comidas do mundo, pode unir e contar histórias. Através de um prato de um restaurante podemos entender quais são os países que fizeram parte de nós, como é o nosso país, e nós podemos contar essas histórias às pessoas. Então o restaurante, hoje em dia, não serve só para matar a fome. Também é um lugar educativo e é lá que a gente pode aprender muita coisa", conclui.
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