O debate, que se arrasta há muito tempo, em torno da aplicação do factor de bonificação de 1.5 no contexto de avaliação de incapacidade por acidente de trabalho em que o recurso à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho (TNI) é fundamental, ilustra um velho diferendo entre quem realiza uma avaliação médica pericial de dano corporal (avaliação do dano na pessoa) legal, isenta e independente focada na pessoa do Sinistrado, e quem se presta a executar actos ao serviço de entidades pagadoras, neste domínio, frequentemente, companhias de seguros. Este tem sido um tema de particular interesse para as seguradoras que há muito procuram alterar o paradigma em seu benefício.

Enquanto a Associação Portuguesa de Avaliação do Dano Corporal (APADAC), num parecer crítico, defendeu a eliminação do factor 1.5 na bonificação da incapacidade, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), através de um acórdão uniformizador, veio reforçar a sua aplicação, protegendo os trabalhadores Sinistrados e clarificando a lei.

O parecer da APADAC, solicitado pela Associação Portuguesa de Seguradores (APS), apresenta argumentos aparentemente técnicos e científicos para sustentar a sua posição. A principal tese é de que a Tabela Nacional de Incapacidades é obsoleta e que o factor 1.5, em particular a sua aplicação com base na idade de 50 anos do Sinistrado, carece de fundamento científico face ao aumento da esperança de vida e ao envelhecimento activo da população.

Esta opinião, no entanto, não pode ser lida de forma isolada, como um documento puramente técnico. A sua credibilidade e isenção ganham um novo e problemático contexto quando se sabe que o seu signatário, em representação da APADAC, vem há muito colaborando, directa ou indirectamente, com uma das maiores companhias de seguros do mercado nacional, da qual é, aliás, igualmente representante em diversas juntas médicas que vai integrando no dia-a-dia entre outros ofícios.

É uma coincidência notável que a opinião, encomendada pela associação que representa as seguradoras (a APS), defenda uma posição que beneficia directamente o sector segurador, ao sugerir a eliminação de um factor que aumenta a compensação a ser paga aos Sinistrados no contexto de um acidente de trabalho de que resultam sequelas valorizáveis. A ciência por trás desta avaliação é apresentada como a única verdade, mas, ironicamente, essa “verdade” alinha-se de forma conveniente com os interesses financeiros de quem terá de pagar. O que é apresentado como uma questão de índole científica, o envelhecimento aos 50 anos, resolve-se de forma “mágica” ao propor uma solução que poupa milhões em indemnizações. Uma isenção que se revela, no mínimo, peculiar.

Em total contraste com a visão particular e tendenciosa da APADAC, o Acórdão n.º 16/2024 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República, 1ª série, N.º 244, de 17 de Dezembro de 2024, actua como o árbitro final e imparcial. A sua função não é dar uma opinião científica, mas sim uniformizar a jurisprudência e garantir a aplicação consistente e justa da lei.

O acórdão estabeleceu, de forma clara, que a bonificação de 1.5 se aplica a qualquer Sinistrado que atinja os 50 anos de idade, independentemente de quando tal ocorra, e que o trabalhador pode recorrer ao incidente de revisão da incapacidade por esse motivo.

Esta decisão representa uma vitória da justiça social. O factor de bonificação, independentemente da sua base científica, é um instrumento de protecção ao trabalhador. Reconhece o dito acórdão que, após os 50 anos, a reintegração no mercado de trabalho é substancialmente mais difícil, justificando uma “reparação” adicional.

O STJ, ao uniformizar a aplicação da lei, reitera que o direito do trabalho em Portugal visa proteger a parte mais fraca da relação laboral. A lei não é uma mera fórmula matemática, mas um reflexo de princípios de equidade e humanidade que o nosso sistema judicial deve preservar.

Todo este debate sobre o factor de bonificação é apenas a ponta do icebergue de uma discussão muito maior: a da própria revisão da TNI. As seguradoras em geral, na sua incansável missão de optimizar custos, há muito que vislumbram uma alteração do paradigma. Afinal, uma nova tabela que reflicta um “novo consenso científico” e elimine factores de correcção como o 1.5 seria uma vitória esmagadora para o sector.

É fascinante observar o coro de vozes que se levanta para defender a “modernização” da tabela, o “rigor científico” e a “justiça”, quando, no fundo, a verdadeira preocupação parece ser a de garantir que as indemnizações sejam tão baixas quanto possível. A retórica pode ser nobre, mas os interesses por detrás são, no mínimo, prosaicos.

O grande desafio reside em saber, em cada momento, quem lidera a revisão da(s) tabela(s) e em representação de que entidades, e, do mesmo modo, quem faz parte da respectiva comissão. É imperativo que os interesses dos Cidadãos, e não os de quem tem a pagar, sejam o foco principal, algo que, pelo histórico da pressão sobre este tema, levanta sérias dúvidas.

A polémica em torno do factor 1.5 é um lembrete do quão essencial é a independência do poder judicial face a pressões de grupos de interesse. O parecer da APADAC, ainda que aparente ser bem-intencionado, é minado por uma gigantesca fragilidade. Em oposição, o acórdão uniformizador do STJ é a prova de que a lei, quando correctamente aplicada, se sobrepõe a opiniões parciais, garantindo uma reparação justa. No entanto, o negócio das seguradoras assenta na gestão do risco e na aplicação de metodologias que optimizem os seus lucros. Tendo em conta esta realidade, e a luta que se arrasta há anos, não será de estranhar que esta não seja a última tentativa de alteração das regras do jogo em seu benefício.

A ironia, contudo, é que uma decisão que se esperava ser o ponto final nesta discussão, acaba por ser apenas mais um capítulo. Apesar do veredicto claro do Supremo Tribunal de Justiça, as divergências técnicas em torno do factor 1.5 continuam a gerar conflitos nos processos de acidente de trabalho. Afinal, para o sector segurador, a Tabela Nacional de Incapacidades não é um instrumento de justiça, mas sim uma variável de custo, e as variáveis de custo estão sempre sujeitas a “ajustes”, por muito que a lei diga o contrário. A defesa dos direitos dos Sinistrados é uma batalha contínua, e o que hoje é uma vitória, pode ser amanhã um novo ponto de ataque.*

* artigo escrito ao abrigo do anterior acordo ortográfico.