Assunto romântico aos olhos do mundo, a cozinha de raízes e proximidade esconde em si os primórdios da vida civilizada e na verdade é a principal responsável por existirmos ainda enquanto espécie. E se é verdade que para a maioria não passa de chavão para descrever qualquer coisa que não se chega nunca a perceber, felizmente a bem povoada comunidade de gastrónomos lúcidos a que pertencemos tem prazer em viajar devagar no tempo, olhando com calma para o imenso património que a cada movimento se vai revelando. Temos muitas gastronomias locais, que interagem entre si e constroem um perfil nacional, até hoje temos felizmente resistido a distinguir umas das outras, antes integrando-as todas.
A imensa linha de costa portuguesa define por si só uma influência marítima forte que quase nos explica inteiramente, tendo sido em cima dela que cresceu a que conhecemos, celebramos e veneramos como cozinha de pescador. Receituário desenvolvido a bordo, na praia, ou nas cozinhas mais modestas, partes menos nobres, peixes normalmente utilizados como isco, vísceras diversas no fundo de caldos inefáveis, consolidaram ao longo dos anos um legado único no mundo.
Outro grande pilar da cozinha portuguesa está escondido em pratos simples, nascidos no campo, com o que o campo dá e que o processamento mais cândido de simples fixou como cozinha de pastor. Proximidade geográfica é a chave para a entender e praticar e é dela que nasce a utilização de ervas aromáticas e medicinais, tanto por estarem disponíveis pelos campos fora como pelo gosto e prática de mezinhas curativas com base em plantas específicas. São de pastor por isso também as infusões, tantas vezes utilizadas em pratos da grande tradição.
E chegamos à figura do hortelão, não fora a horta quase tão importante como a criação, e como se não lhe devêssemos em grande parte o facto de crescer de forma nutritiva nos núcleos familiares. Batata, cenoura, couves, alfaces, frutos, tomate, pepino, o desfile é infindável e muitos deles são indispensáveis para a produção culinária quotidiana.
Cozinha de pescador, o hino dos hinos
O conhecimento íntimo dos peixes e as descobertas acidentais formam grande parte do património culinário a que chamamos cozinha de pescador. O bacalhau, não sendo embora pescado nas nossas águas, é assunto bem português, ai de quem diga o contrário.
O fiel amigo conviveu connosco por muitas e boas gerações, na forma seca, o mesmo tipo de preparação que se dava outrora à raia, lampreia, polvo e outros, para conservar e guardar, a regeneração acontecia pela demolha. A primeira intervenção, contudo, era o corte da cabeça e a desvisceração, o que dava acesso a partes moles que são concentrados de proteína e colagénio.
A lógica de produto inteiro é plenamente cumprida no tratamento do bacalhau, das línguas, e da bexiga natatória, ou sames - espécie de canal exterior que existe logo a seguir à boca e que serve para a orientação do peixe pelo mar fora - fazia-se um caldo ainda a bordo que era de comer e chorar por mais, por isso chamado chora. Na Figueira da Foz encontramos ainda a chora de línguas e feijoada de sames, e nos restaurantes de Lisboa e Porto esses pratos vão marcando presença.
A mesma ideia da cozinha a bordo está subjacente nas caldeiradas monoproteína e sem água, em que é o suado da cebola que produz o caldo maravilhoso que legumes e peixe vão produzindo. As caldeiradas multiproteína, historicamente baseadas no safio ou congro, ligado com pata roxa ou caneja e tamboril ou xarroco, são tão gloriosas quanto copiosas, repletas de sabor e valor.
A cozinha de pescador tem mil recursos e tudo o que dela sai tem sabores intensos e únicos. Massas secas e arroz são componentes vezeiros nas suas preparações, pimento, tomate e batata menos, mas mesmo assim vai-se encontrando, aqui e ali.
Feijoada de sames: O prato e os vinhos
A riqueza do prato em colagénios, de que os sames de bacalhau são copiosos, mereceu a interpretação do chef Vítor Sobral, da Peixaria da Esquina, em Lisboa, semelhante à de uma feijoada tradicional. Extração no bom ponto, ligação com a leguminosa impecável, é um hino à arte de bem comer e aos antigos, que no tempo da míngua nela se apoiaram. São bem vindos os brancos com acidez pronunciada, para o corte do prato que é contundente, assim como os tintos da proximidade atlântica, pela aparente salinidade e parceria feliz.
Pequenos Rebentos Loureiro Escolha Vinho Verde branco 2018 (Márcio Lopes) - Trabalho eficaz da frescura do vinho sobre o caldo compacto e sápido do prato, recondicionamento exemplar do palato para continuação do prazer à mesa.
Herdade da Arcebispa Reserva Península de Setúbal tinto 2016 (Soc. Agr. Arcebispa) - Servido a 16ºC, consegue penetrar no caldo e no feijão sem problemas, oferecendo-se à transformação no palato pelos sames, exacerbando-lhes o lado salino.
Cozinha de pastor, o processamento mais cândido
Se quisermos ser literalistas, é a pastorícia que dá origem a esta cozinha, mas trata-se de uma cozinha bem mais abrangente, que quase remonta ao tempo dos antigos gregos e romanos, a coroar a sedentarização.
A vaca deixa de ser força motriz apenas, nos campos e terras lavradas e no transporte pela via terrestre, para se tornar ela própria alimento central, incluindo o maravilhoso leite de que ainda hoje fazemos mais alimento direto do que transformamos em queijo. Queijo que é, diga-se, pedra de toque para revolução grande sentir quase universal de um povo que é queijeiro, mas de leite de ovelha, a maior transumância portuguesa, os rebanhos em excursão de longa duração, assistidos pelo venerável pastor, este por sua vez a recolher o que de imediato vai tendo à sua volta.
Nascem do talento e do momento os ensopados, que no tempo das favas e das ervilhas orlam vitela, borrego, cabrito e leitão. A beldroega rasteira, folha insubstituível na que pode bem ser a melhor sopa do mundo, aqui a pontificar, com a adição de um quejinho de ovelha que leva dentro e coze no caldo.
É um dos muitos pratos nacionais que transforma água em ouro, e merece conferência sempre que surge numa carta do Portugal profundo. Tudo o que é à pastor tanto pode ser feito em tacho em casa, como em lume de chão ao ar livre. E quando é feito em casa, o espírito autêntico do prato é conseguido apenas quando a manipulação é mínima e quando leva cogumelos, ervas, leguminosas ou hortícolas da estação.
Jardineira de vitela: O prato e os vinhos
A cozinha do Bem-Haja, em Lisboa, é de inspiração da Beira Alta e tem o condão de atrair tanto os locais das terras altas do granito e da geada como os gourmets mais urbanos, orientados para os sabores simples. Prato de base muito simples, no processamento e na apresentação, é dos mais consensuais em toda a cozinha portuguesa.
Pasmados Península de Setúbal branco 2014 (José Maria da Fonseca) - Um vinho com uma evolução graciosa, tonalidades verdes que ligam bem com o património hortícola do prato, e ao mesmo tempo acidez e taninos firmes que ajudam na leitura da proteína animal.
Herdade do Rocim regional alentejano rosé 2018 (Rocim Vinhos) - Rosé que foge à regra, apresentando-se com frescura e equilíbrio de forma a casar bem com o caldo, aligeirando-o. Ervilhas, favas e batatas reagem bem ao vinho, deixando-o interagir com a componente sólida e avivando-lhe as nuances.
Cozinha de hortelão, a chave do futuro
Sabemos hoje que é quase inevitável o regresso aos primórdios da alimentação, quando a proteína animal era rara ou inexistente, frutos, legumes e sopas, normalmente ponteadas por grão de bico ou feijão, foram a base da mantença da espécie humana.
Passaram milhares de anos sem que a dieta fosse sequer beliscada e sem dúvida por isso, a horta, quadradinho dourado adjacente à casa do português da província, é ainda hoje a garantia de que a fome não vai levar a melhor.
Pastinaca, tomate, abóbora, cenoura, pepino e tantos outros formam a base da alquimia que vai abençoar a sopa que a fervura ligeira vai aprimorar. O gaspacho é uma preparação a frio, sem lume, que é profilático da desidratação a que na canícula estamos expostos e queremos que fique à porta. O gaspacho andaluz, de base de tomate triturado, é muito utilizado em Portugal, mas o alentejano, com os legumes migados em brunesa média e condimentados com orégãos secos, é genuinamente nosso.
As sopas de legumes caem nesta categoria e por serem acompanhadas normalmente por pão são refeição completa, por isso as devemos ter a um tempo como chave do futuro e regresso ao passado.
Ao contrário do que se pensa, a sopa não tem temperatura ideal de consumo e foi pensada pelos nossos antepassados para estar pronta na cozinha à nossa espera, e tanto a podemos comer gelada como a escaldar, o conforto pretendido é que dita o modo de usar.
Por uma questão de pureza e salubridade, não devemos utilizar batata, pois o amido é um açúcar e altera sabor e composição em tudo o que compõe.
Gaspacho: O prato e os vinhos
Batemos à porta do Galito, em Lisboa, onde pontifica Henrique Galito, que aprendeu com sua mãe, a nossa Dona Gertrudes, que já não está entre nós, praticante indefectível da simplicidade desarmante dos sabores e processamentos directos. Estamos na época do tomate, o hortícola que tem a duplicidade vocacional de ser o fruto com mais água e o legume com mais açúcar e que tem o dom da saciedade plena no tempo do Verão. Tomate, pimento verde, pepino, alho e cebola em brunesa média, depois azeite vinagre e orégãos secos, está o gaspacho feito.
Dona Matilde Douro branco 2018 (Quinta D. Matilde) - Surpreendente a reacção deste branco com o tomate, a promover todos os ingredientes do gaspacho ao mesmo tempo que os isola e permite a degustação quase avulsa de cada pedaço.
Falua Unoaked Reserva Tejo tinto 2015 (Falua) - Estreme de Touriga Nacional que como o nome diz não teve qualquer contacto com madeira. Penetra sem problema na selva aromática do gaspacho e abraça o fundo do caldo frio com vigor, tornando-o mais uno.
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