Ao longo dos últimos anos, a ocorrência de situações que comprometeram a dignidade e a autonomia das mulheres durante o parto facilitaram que a sociedade iniciasse o diálogo sobre a violência obstétrica e, por conseguinte, começasse a quebrar o silêncio que atravessa este fenómeno, não raras vezes, com uma carga emocional traumática.
Esta é uma forma de violência de género contra as mulheres perpetrada por profissionais do contexto de saúde que corresponde a uma violação dos direitos humanos e, por isso, tem vindo a ser reconhecida como um problema de saúde pública. Aliás, é considerada uma das causas das elevadas taxas de mortalidade das mulheres e/ou dos seus bebés durante o parto, o que torna (ainda) mais clara a pertinência deste tema – não somente para as mulheres, mas para o mundo.
Apesar das diferentes designações identificadas na literatura (como por exemplo, "maus-tratos e abuso" ou "cuidados desumanizados"), o termo “violência obstétrica” tem assinalado a existência de práticas violentas desnecessárias e prejudiciais à saúde física e mental da mulher, as quais desumanizam as grávidas e violam os seus direitos dentro do sistema de saúde. Daí que “violência obstétrica”, enquanto conceito, sublinhe, exatamente, as dimensões estruturais deste fenómeno: a violência de género (violência contra as mulheres, o género feminino) e violência institucional (nas instalações de saúde).
Outra característica da violência obstétrica é que esta se organiza em diferentes tipos, concretamente:
a) Violência verbal: por exemplo, gritar com a mulher ou tratá-la de forma infantil ou condescendente; adotar um discurso autoritário e hostil que alimenta sentimentos de vergonha, humilhação e culpa pelas complicações no parto (“Não dói assim tanto, cala-te!"; “Quando foi para o fazer, não te queixaste”; "Não chores, para o ano estás cá outra vez"; "Se não fizeres força, o batimento cardíaco do bebé vai baixar"; "Se gritares, eu paro o que estou a fazer e depois quero ver. Queres que ele morra?”).
b) Violência física: por exemplo, a ausência de um controlo rigoroso e adequado da dor da mulher; palmadas e beliscões; um conjunto de procedimentos que causam dor e que tendem a ser realizados em benefício da equipa médica (como a manobra de Kristeller, que consiste em colocar pressão manual no fundo do útero no período expulsivo).
c) Violência sexual: por exemplo, exames vaginais sem utilização de lubrificante e outros comportamentos que envolvam a interferência rude e desrespeitosa nos órgãos genitais femininos; realização de um exame rectal sem consentimento da mesma.
d) Discriminação social: por exemplo, comportamentos de desrespeito, preconceito ou tratamento diferenciado das mulheres em razão da sua raça, etnia, condição social, económica, conjugal; orientação sexual, religião ou nível de escolaridade.
e) Negligência de cuidados: por exemplo, uma gestão pouco rápida e eficaz de emergências obstétricas, como uma hemorragia pós-parto ou um descolamento da placenta.
f) Utilização de procedimento e tecnologias inapropriadas: por exemplo, a imobilização da mulher na cama para intervenções não consentidas durante o trabalho de parto e/ou forçar a mulher a dar à luz numa posição que é do conforto da equipa; jejum prolongado durante o trabalho de parto sem indicação; aplicação de medidas de planeamento familiar, como a inserção de dispositivos contracetivos.
Perante o exposto, sucede que o desconhecimento das mulheres sobre os seus direitos, a falta de recursos da instalação hospitalar e as crenças e atitudes dos profissionais de saúde que participam no parto constituem fatores de risco acrescido.
As contingências atuais nas maternidades, na sua maioria, decorrentes de decisões políticas, como é exemplo o número reduzido de maternidades e urgências obstétricas a funcionar em pleno (o que exige que as grávidas tenham que deslocar-se a outros hospitais, a inúmeros quilómetros de distância da área de residência) também podem ser consideradas uma forma de violência obstétrica macro/estrutural, dado os potenciais riscos para a segurança e bem-estar (físico e psicológico) da mãe e bebé.
No que diz respeito às consequências para a saúde física e mental, as investigações apontam para resultados preocupantes.
Na esfera da saúde física, as intervenções violentas, como pode ser exemplo a episiotomia (procedimento cirúrgico que consiste em uma incisão no períneo — a região entre a vagina e o ânus) na ausência de risco fetal e/ou sem o consentimento materno, tem sido associada a um risco elevado de dor crónica (para toda a vida destas mulheres).
No que remete para a saúde mental, existe uma relação entre a violência obstétrica e um risco elevado de comportamentos auto-lesivos, ideação suicida, ansiedade, perturbação de stress pós-traumático e depressão – particularmente, depressão pós-parto. O risco de depressão relaciona-se com os sentimentos de solidão, insegurança e vergonha, assim como pela sensação de perda de liberdade e de controlo em relação ao próprio corpo, com impacto na autoimagem e perceção corporal das mulheres.
Neste sentido, é imperativo enaltecer que a violência obstétrica não tem somente impacto na mulher, mas também no bebé e no companheiro. De forma clara, ciência psicológica destaca uma associação entre a depressão pós-parto e fragilidades na construção da relação mãe-bebé, assim como são identificados desafios na relação e na satisfação conjugal.
Naturalmente que existe uma consequente associação entre a violência obstétrica e uma redução da satisfação e da confiança das mulheres nas unidades de saúde, assim como a motivação e planos para (voltar a) dar à luz.
Se vivenciou esta experiência traumática na primeira pessoa ou no seio familiar, peça ajuda. Não se encontra sozinho(a)! Na dúvida, pondere sinalizar o sucedido junto das respetivas entidades profissionais ou organizacionais para se quebrar os silêncios.
As explicações são de Sofia Gabriel e de Mauro Paulino, da MIND | Instituto de Psicologia Clínica e Forense.
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