A antropóloga médica Theresa MacPhail, ela própria uma pessoa que sofre de alergias e cujo pai morreu devido a uma picada de abelha, dedicou-se a compreender o porquê desta morte. O livro Alérgico (edição Casa das Letras) faz uma análise global do fenómeno das alergias, desde a sua primeira descrição médica, em 1819, até ao desenvolvimento recente e alucinante de produtos biológicos e imunoterapias que estão a dar esperança aos doentes mais afetados.
Para conseguir fazer este livro, Theresa passou algum tempo com centenas de especialistas, doentes e ativistas: subiu a um telhado com um controlador da qualidade do ar que conta manual e diligentemente o pólen, durante horas, todos os dias; conheceu uma mãe que lutou para utilizar o programa de apoio alimentar para a sua filha com alergias alimentares graves; falou com médicos de algumas das melhores clínicas de alergias do mundo; e discutiu os problemas interligados das alterações climáticas, poluição e pólen com biólogos que estudam as alergias respiratórias sazonais, salientando como os nossos corpos são porosos e estão em sintonia com as alterações climáticas - por exemplo, as emissões de camiões a gasóleo podem ajudar a levar o pólen até aos pulmões, o que pode explicar parcialmente porque é que as pessoas que vivem junto a autoestradas têm muito mais probabilidades de desenvolver asma.
Alérgico é uma viagem pelo mundo das alergias, desde a sua primeira descrição médica em 1819 até à ciência de ponta que esclarece que as mudanças no nosso ambiente e estilos de vida estão a contribuir para um aumento espantoso de casos de alergias - e a fazer com que muitos de nós adoeçam.
Do livro, publicamos o excerto abaixo:
Uma epidemia que se agrava
Embora os investigadores possam discordar quanto às definições, aos sintomas e à metodologia, todos concordam numa coisa: as alergias agravaram‑se nas últimas décadas e é provável que o número de pessoas que sofrem de alergias em todo o mundo continue a crescer a um ritmo acelerado. Olhando para os dados que temos do século passado, há um consenso de que as taxas de febre dos fenos nos Estados Unidos aumentaram em meados do século XX. Os dados sugerem que a incidência de asma aumentou a partir da década de 1960 e atingiu o seu pico algures na década de 1990. Desde então, as taxas de asma têm‑se mantido relativamente constantes. No caso das doenças alérgicas respiratórias e da sensibilização atópica (alergia cutânea), é provável que os níveis tenham aumentado nas últimas décadas, à medida que as diferenças geográficas nas taxas de prevalência diminuíram.
A título de exemplo, as taxas de doença atópica duplicaram no Gana entre 1993 e 2003.11 No que diz respeito às alergias alimentares, o aumento das taxas de incidência global tem sido o mais dramático e visível, tendo começado a sério na década de 1990 e crescendo de forma constante desde então.
O Dr. Scott Sicherer, diretor do Elliot and Roslyn Jaffe Food Allergy Institute e professor de Alergia Pediátrica no Mount Sinai Hospital, em Nova Iorque, viu de perto o aumento das alergias alimentares. Quando começou a trabalhar no Jaffe Institute, em 1997, a sua equipa realizou um estudo em colaboração com a Food Allergy and Anaphylaxis Network que mostrou que uma em cada 250 crianças relatava uma alergia alimentar a amendoins ou frutos de casca rija. Em 2008, o trabalho de Sicherer mostrou que essa taxa tinha mais do que triplicado para uma em cada 70. «Não acreditei no estudo de 2008 no início», disse‑me ele.
Sicherer pensou inicialmente que a taxa refletia um problema com a metodologia do estudo – isto é, até ver números semelhantes provenientes do Canadá, Austrália e Reino Unido, todos mostrando que cerca de 1% ou mais das crianças tinham alergia ao amendoim. Atualmente, Sicherer não tem dúvidas de que as alergias aumentaram nas últimas décadas.
«Também estamos a assistir a um menor número de alergias alimentares a serem ultrapassadas e a um maior número de alergias emergentes», afirmou Sicherer. «A gravidade pode não ser intrinsecamente diferente do que era há vinte anos, mas, com mais pessoas afetadas, é um grande problema.»
Embora todos estes dados sejam convincentes, talvez a prova mais evidente que temos do aumento das alergias nos últimos trinta anos sejam as admissões hospitalares. A cada duas horas, alguém com uma alergia grave vai parar às urgências. Estes números parecem ser uma prova incontestável de que o problema das doenças alérgicas está a aumentar.
De acordo com investigadores do Imperial College de Londres, que analisaram os dados disponíveis nas últimas duas décadas, as admissões hospitalares por anafilaxia alimentar aumentaram 5,7% (de 1998 a 2018), enquanto as mortes diminuíram de 0,70 para 0,19%.13 Durante o mesmo período, as prescrições de autoinjetores de adrenalina, ou EpiPens, aumentaram 336%.
Os investigadores controlaram as alterações às definições e critérios para anafilaxia alimentar e pensam que a melhoria do diagnóstico e da gestão da alergia alimentar levou à diminuição das mortes, mesmo que as taxas gerais de incidentes tenham aumentado. As admissões hospitalares por asma triplicaram em apenas duas décadas, entre os anos 1970 e 1990, antes de estabilizarem para uma taxa constante nos dias de hoje.14 E embora as taxas de asma nos países desenvolvidos tenham vindo a abrandar, continuam a subir nas partes subdesenvolvidas do mundo, fazendo com que a taxa global continue a aumentar a nível mundial, mesmo quando se mantém constante em locais como os Estados Unidos.
É por isso que os especialistas preveem que as taxas de alergia continuarão a aumentar durante as próximas décadas. A doença alérgica é menos prevalecente nas zonas rurais dos países com baixos rendimentos, mas a sensibilização alérgica está ao mesmo nível (lembrete rápido: pode‑se ter uma sensibilidade sem desenvolver uma alergia). Por outras palavras, as pessoas em todo o lado têm a mesma sensibilização, mas há menos sintomas ativos e menos casos de doença ativa nas zonas rurais dos países pobres.
À medida que os países se começam a desenvolver, as taxas de alergia tendem a aumentar. Porquê? Quando me sento para escrever esta conclusão, é verão em Brooklyn, onde vivo perto de um grande e belo parque urbano. Faço lá longas caminhadas quase todos os dias, se não estiver demasiado chuvoso ou sufocante ou se o ar não estiver demasiado poluído. Nalguns dias, não tenho quaisquer sintomas relacionados com a minha rinite alérgica localizada e desfruto do parque tranquilamente. Outros dias são quase insuportáveis. Quando regresso a casa, os meus olhos ardem e fazem comichão e, se me atrevo a tentar tocar‑lhes ou esfregá‑los suavemente, desencadeio um ataque de espirros que pode durar até trinta minutos. Por vezes, a superfície dos meus globos oculares arde tanto que as minhas pálpebras se fecham por reflexo, as minhas conjuntivas produzem tantas lágrimas involuntárias que parece que estou a meio de um choro emocional terrível.
Nos dias maus, abro uma aplicação meteorológica no meu telemóvel e verifico as contagens de pólen, fazendo uma investigação quase científica para ver o que pode estar a causar o meu sofrimento intermitente. Diz sempre a mesma coisa: níveis muito elevados de gramíneas. Presumo que devo ser alérgica a uma das espécies de gramíneas da minha zona, mas quem sabe qual.
Quando escrevo isto, estamos também mergulhados numa pandemia global. A COVID‑19 está a fazer com que a maioria das alergias pareçam inconsequentes em comparação. Sempre que espirro mais do que uma vez ou sinto a garganta a arranhar, ambos sintomas extremamente normais das alergias respiratórias sazonais, sinto uma pequena pontada de pânico a apoderar‑se de mim. Serão as alergias? Ou será um sinal de que tenho o mais temido SARS‑CoV‑2?
Os sintomas normais das alergias não me parecem nada «normais» neste momento. Mas, por outro lado, nunca foram realmente normais. Os sintomas de alergia sempre foram um sinal de que algo estava errado. Os nossos sintomas coletivos de alergia – todos os nossos narizes a pingar, olhos irritados, pele vermelha, estômagos perturbados, intestinos revoltos, esófago inchado, pulmões irritados e dificuldade em respirar – estão a tentar dizer‑nos algo importante sobre a saúde geral dos nossos sistemas imunitários no século XXI, sobre a forma como vivemos as nossas vidas, sobre a forma como as nossas células são frequentemente sobrecarregadas pelo nosso ambiente. E embora seja verdade que a definição científica de alergia tenha mudado mais do que uma vez desde a sua criação há cem anos, como vimos, o que não mudou foi a queda na qualidade de vida que todos esses sintomas causaram a milhões de pessoas que sofrem de alergias em todo o mundo. À medida que a nossa compreensão da função imunitária evolui, também evolui a forma como falamos, categorizamos e tratamos as doenças alérgicas. Sabemos mais sobre a alergia e o nosso sistema imunitário do que alguma vez soubemos, mas há muito sobre o funcionamento básico do nosso sistema imunitário que ainda nos escapa.
Utilizamos as mesmas ferramentas básicas de diagnóstico para a alergia – mais ou menos – que utilizamos há mais de um século e fazemos o melhor que podemos com elas. Os cientistas de todo o mundo estão a trabalhar arduamente, mesmo quando escrevo isto, durante uma pandemia, para compreender melhor como é que as nossas células aprendem a tolerar os milhares de milhões de coisas visíveis e invisíveis que nos rodeiam todos os dias. Cada avanço nesse conhecimento irá alterar os limites daquilo que consideramos ser uma alergia e poderá dar origem a novas doenças alérgicas em que ainda nem sequer pensámos. Todos esses novos conhecimentos ajudarão também os engenheiros biomédicos a inventar novos testes de diagnóstico ou a inovar versões mais antigas para obter resultados mais precisos e exatos. No mínimo, podemos esperar que o futuro da medicina da alergia seja muito diferente do seu passado e do seu presente. (Analisaremos mais aprofundadamente estes possíveis futuros no final do livro.) Apesar de toda a confusão e dificuldade em torno da definição de alergias e do seu diagnóstico, sabemos uma coisa com absoluta certeza: as alergias, independentemente do nome que lhes dermos e da forma como as definirmos, têm vindo a agravar‑se de forma consistente nos últimos duzentos anos e não mostram sinais de abrandamento. Também sabemos que as pessoas estão a ter sintomas piores e épocas de alergia mais longas. Estamos no meio de uma epidemia global crescente de doenças alérgicas.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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