Em artigo exclusivo publicado pelo Healthnews, António Alvim, médico de família e um dos pioneiros nos novos modelos de contratualização para os cuidados de saúde primários, em que a remuneração é sensível ao desempenho, destaca as mudanças propostas pelo Governo para o Modelo B das Unidades de Saúde Familiar (USF). O Modelo A será extinto, e as unidades que não atingirem um Índice de Desempenho Global de 75% passam para Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP). O Modelo C ainda está previsto, embora o Ministro da Saúde tenha manifestado dúvidas quanto à sua implementação. A carga horária será de 35 horas, com acréscimos proporcionais para as Unidades de Consulta de Lista. A remuneração base dos médicos será de Dedicação Plena MGF (35hs+ Incrementos), abrindo perspetivas positivas para quem está no Modelo A e nas UCSP, permitindo mais que duplicar o vencimento ao alcançar o Modelo B. O artigo discute também detalhes sobre remuneração, limites e incompatibilidades. Em entrevista exclusiva, o médico, hoje aposentado, explica com pormenor o que vai mudar.

Healthnews (HN) – Qual o impacto previsível da proposta de extinguir todas as USF com um Indíce de Desempenho Global inferior a 75% que assim regridem para UCSP?

António Alvim (AA) – Nota: estamos a discorrer sobre um projeto de DL que verdadeiramente só agora irá começar a ser negociado, e não sobre uma solução final.

Segundo os dados que um colega disponibilizou, 146 USF A passariam a modelo B de imediato e 27 UCSP transitariam diretamente para B. 122 Modelos A regrediriam para USCP.

Devemos nos interrogar porque o Governo interrompe o processo de evolução de 122 USFs A e as faz regredir para UCSP. A única explicação que encontro é que o Governo não está interessado na sua evolução e sim em arranjar mão de obra para os utentes sem médico de família. Repare-se : Nas USFs A e B não podem existem utentes sem Médico de Família, todos os utentes sem MF estão nas UCSPs. Acabando com as USFs A, o Governo ganha mais de 700 médicos que além de terem de garantir a resposta às suas listas de utentes, passarão a ter que responder também aos utentes sem Médico de Família dos seus ACES. Acaba aqui o discurso de empatia com os médicos do Ministro da Saúde e do seu Diretor Executivo

Existem 15 USF de modelo B que poderiam regredir. Mas a regressão não é automática e como o que conta são os 3 últimos anos e 2021 ainda foi ano de pandemia…

HN – O Modelo C continua a ser uma miragem. Como se explica esta teimosia em não avançar com o modelo, previsto na Lei?

AA – A meu ver apenas por razões práticas, mais políticas e economicistas que ideológicas.
Políticas: o governo não quer ser atacado à sua esquerda pois quer absorver o eleitorado desta. O governo não quer afrontar a USF-AN que por motivos corporativistas se tem oposto (é muito bom não haver com quem comparar). Não deixa de ser curioso que o seu Presidente, o Dr. André Biscaia, argumente com os maus resultados da “privatização do NHS inglês” esquecendo que os cuidados de saúde primários em Inglaterra, embora pagos pelo estado inglês, sempre foram prestados de forma privada pelos Médicos de Família; primeiro de forma individual e depois organizados em “Practices” que correspondem exatamente ao Modelo C.
Mesmo o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) e a Associação Portuguesa de Medicina Familiar (APMGF), que em tempos defenderam em conjunto, cooperativas médicas, estão hoje empenhados apenas no modelo público. Não havendo parceiros que a reclamem e a quem agradar, porquê preocupar-se com isso? Tanto mais que cumpre o objetivo economicista das contas certas. Não havendo Modelos C não é preciso pagá-los. Nem eles nem os exames e medicamentos que os seus médicos prescreveriam. Quem se trama são as pessoas que , sem médico de família, ficam sem assistência; mas como são afetadas de forma individual… E ao coletivo a resposta fica dada com o anúncio da generalização do Modelo B para todos até ao final do ano (a qual, afinal, como se percebe no documento, não vai acontecer tão cedo).
Nota: em breve irá aparecer um parceiro para ocupar o vazio nesta área. Está a ser criada a Associação de Médicos de Proximidade que vai representar os médicos que exercem a sua atividade de forma autónoma.

HN – Nas novas regras, o que pode levar à extinção de uma USF Modelo B?

AA – As regras para a extinção de uma USF são praticamente as mesmas: basicamente um IDG inferior a 75% em 3 anos consecutivos ou inferior a 70% em dois anos consecutivos…até se retirou o incumprimento do Tempo Máximo de Resposta Garantido que tinha sido introduzido na reforma de 2017.
Tirando a implosão de uma USF, não acredito que alguma vez uma extinção aconteça, até porque não só a Administração é complacente como depois teria que lidar com a complicação que seria uma USF em que os seus profissionais veem o seu vencimento reduzido a mais de metade de um dia para o outro.

HN – Qual a carga horária prevista no projeto de Lei apresentado aos sindicatos em sede de negociação coletiva? Terá impacto em termos de remuneração?

AA – Quer para as USF B quer para o regime de Dedicação Plena manteve-se a indefinida formulação atual: 35 horas mais incrementos ajustados ao aumento ponderado da lista.
Não houve coragem para uma definição mais precisa, para definir qual o valor temporal de um incremento; mais a mais, sabendo da controvérsia sobre a sua interpretação.
Apesar de estarem na categoria de suplementos e terem, cada, uma remuneração superior a uma hora suplementar, provavelmente a prática mais generalizada continuará ser a de considerar 5 minutos por incremento, no total de uma hora. Ou seja : 36 horas. Isto quando no regime não USF e não dedicação plena, é remunerado a menos de metade, e com um aumento de 50 €, continuarão as 40 horas.
Penso que é um erro, pois mais utentes implica mais tempo. Não o oferecendo vai-se trabalhar em condições de stress. O que é mau quer para os profissionais quer para os utentes. E a acessibilidade não será aquela que seria de esperar…

HN – Vai haver, de acordo com a proposta, alteração do valor das UC contratualizadas?

AA – apenas uma alteração. O valor da UC mantém-se dos 130 € mas o fator de 1,8 que se aplicava às seis primeiras vai passar a aplicar-se às 3 primeiras e 3 últimas. Fica a dúvida se quando refere 3 últimas o Governo ser refere à 7ª, 8ª e 9ª de forma a se estimular listas com 9 Ucs (se não for assim, fica tudo na mesma), quando antes o estímulo era até às 6.

HN – O impacto é igual para os três grupos profissionais a trabalharem em USF B?

AA – Não, em termos remuneratórios do vencimento base apenas afeta os médicos. Desconheço se ocorrerão negociações com os sindicatos dos outros setores.
Já em relação às Atividades Específicas, de ora avante apelidadas de “Compensação pelo desempenho e integração de cuidados” a sua forma de avaliar mudará radicalmente para todos. Em vez de “x pessoas com hta com ta medida nos dois semestres”, passará a ser em função da % conseguida nas várias áreas definidas e estas alargar-se-ão a indicadores de acesso, eficiência, integração de cuidados e melhoria contínua. Penso que será muito maís difícil atingir o total do incentivo.

HN – Quais as mudanças ao nível das atividades específicas (AE)? Vão ser introduzidos limites ao valor a atribuir?

AA – Na prática os limites continuarão a ser os mesmos.

HN – Como se reflete este parâmetro nos restantes grupos profissionais?

AA – Da mesma forma que para os médicos. Apenas muda a forma de avaliar/calcular e os indicadores.

HN – Vai haver alterações ao nível dos valores que “contam” para efeitos de aposentação?

AA – nos médicos não, nos enfermeiros e secretários clínicos havia polémica sobre se as UC de Lista e as AE contavam ou não. Quando para os médicos expressamente se diz que sim e para os outros profissionais nada se diz, estou em crer que a opção do legislador foi de que não contassem.

.HN – Qual o novo modelo de Regime de Dedicação Plena proposto?

AA – Para além das incompatibilidades que se reforçam com a necessidade de autorização superior expressa para a prática de atividade privada (subordinada ou autónoma) teremos um regime de horário semelhante ao atual das USF de Modelo B 35 hs + Incrementos ajustados ao aumento das Unidades ponderadas (de 5 minutos por 55 UP mais?).
Em termos remuneratórios a base de 35 horas, quer para USF B quer para os Médicos das UCSP, passa para uma nova tabela.
Em termos de lista nos médicos das USCP a base passa para 1650 utentes (2040 UP) acrescido de um suplemento por cada incremento de 55 UP de (130 € x1,8) até um máximo de 3, se aminha leitura está correta.
No Modelo B mantém-se a base de 1550 utentes (1917 UP)s e a possibilidade de 6 incrementos de 55 UP.

HN – Há diferenças entre os valores propostos para os CSP e para os cuidados secundários?

AA – Sim, embora a base seja a mesma tabela para 35 horas, os suplementos nos CSP são feitos como os incrementos acima descritos que podem atingir os 1740€ (e corresponder apenas a 1 hora por semana?) nos hospitais correspondem a 20% da base e por mais 5 horas de atividade programada obrigatórias.
E os Médicos hospitalares têm que dar uma série de contrapartidas, como 300 horas extra em urgência, 18 horas de urgência por semana, consultas numa manhã de sábado uma vez por mês; e as incompatibilidades serão mais difíceis. A vantagem está claramente no lado dos CSP.
Por outro lado a adesão à dedicação plena é livre e nos CSP não, é limitada por quotas a definir por despacho conjunto do MS e MF (onde já vimos isto?).

HN – Também há mudanças ao nível das incompatibilidades. Quais os que destacaria?

AA – Nos cuidados de saúde primários a necessidade de pedir autorização para o exercício de atividades privadas em regime subordinado ou autónomo.
Para além disto existem incompatibilidades, como ser titular de mais de 10 % de uma quota num empresa que presta serviços convencionados ou exercer funções de chefia no setor privado, que afetam sobretudo os médicos hospitalares. As autorizações acima referidas serão talvez mais difíceis de obter no sector hospitalar.
Finalmente gostaria de destacar as tremendas desigualdades que se criam, quer de condições de trabalho quer nas condições remuneratórias (conforme quadro abaixo). Por muito menos e com menor suporte jurídico o Presidente da República devolveu o diploma das carreiras dos professores.