Já trabalhou o tema do Estado Novo numa vertente da história política. O que a levou a enveredar pelo quotidiano da população, um olhar de baixo para cima, uma voz diferente?

Sim, é uma voz diferente. Sempre me interessei por estas questões às quais chamamos de uma “história vista de baixo”. Geralmente, a narrativa histórica olha para aqueles a quem chamamos os vencedores, ou aqueles que estão presentes nos grandes acontecimentos, também os grandes homens, os grandes líderes, os grandes momentos históricos. Até há bem pouco tempo, também a história dos que contribuíam para os documentos escritos. E, como sabemos, nem toda a gente tinha capacidade de deixar memória em documentação escrita. Desta forma, a História baseou-se, durante muito tempo, exatamente na análise da narrativa desses acontecimentos. Apesar de o meu percurso se ter iniciado na História Política, sempre tive esta curiosidade, a de um olhar sobre as camadas populares, o povo, as mulheres, de como seria a sua vivência. No fundo, a de todos aqueles que não deixaram tantos vestígios para a narrativa histórica. Julgo que em Portugal também falta fazer esta história. Presentemente, há um interesse crescente por parte da historiografia para fazer este tipo de história. É preciso começar a trabalhar nestas narrativas históricas.

No fundo o que está a fazer é uma micro-história, orientada para questões do quotidiano, de cariz quase pessoal.

Sim, a história pessoal também é uma questão aqui importante. No caso do meu livro, estamos a falar de um tempo que consideramos presente, ou seja, encontramos testemunhos na primeira pessoa, há intervenientes ainda vivos e isso é importante. Temos os testemunhos, seja aqueles que as pessoas deixaram por escrito, seja as memórias que nos chegam nas entrevistas orais. Ou seja, esses testemunhos são fundamentais para se fazer este tipo de trabalho. A história de vida dá-nos uma riqueza muito grande no que toca ao conhecimento sobre determinados momentos históricos e, neste caso, sobre a vida quotidiana. Para responder à pergunta “como viviam as pessoas?”, temos de entrevistar, temos de procurar os depoimentos, temos de ir também àquilo que foi produzido na época e que permite retratar esta história do quotidiano.

De certa forma quis afastar do seu livro o corporativismo ligado às elites salazaristas.

Exatamente. Quis afastar-me das elites, dos partidos políticos, das organizações políticas. Tendo eu anteriormente trabalhado a história, sobretudo a oposição ao Estado Novo, numa vertente política, também numa abordagem às organizações políticas, quis, com este livro, afastar-me dessa narrativa. Como referi, quis trabalhar a perspetiva das pessoas comuns.

Como referiu, o homem e a mulher comum não deixam memória nos meios de comunicação social, não são parlamentares, raramente publicam. Em concreto, como chegou a estas vozes?

Primeiro através da família, através das pessoas que conheço. Procurei, sobretudo, pessoas que tivessem uma idade próxima dos 80 anos ou mais. Por exemplo, perguntei à minha avó que tem 90 anos e, depois, prossegui com outras pessoas da família.

Teve acesso, por exemplo, a diários, cartas ou outro conteúdo escrito?

Não, e com muita pena minha [risos]. Talvez se tivesse mais tempo, ou a oportunidade de entrevistar mais pessoas, eventualmente teria conseguido encontrar as fontes que refere. Para o meu livro, os testemunhos partem das entrevistas que conduzi ou, também, de entrevistas que já tinham sido dadas a outras pessoas, conversas que acabei por utilizar. Por exemplo, recorri a citações retiradas de um livro intitulado Confidências de Mulheres [de Cecília Barreira] que reúne entrevistas, sobretudo no feminino.

Ana sofia ferreira
A historiadora Ana Sofia Ferreira. créditos: Manuscrito

Na introdução que faz ao seu livro fala de “alegrias fugazes” e, logo de seguida, refere “tristezas duradouras”, quando alude à vida sob a ditadura. Onde residiam essas alegrias fugazes?

Embora tenha sido um tempo cinzento, as pessoas arranjavam formas de alimentar a alegria e o escape. Há alegrias que são pessoais, que passam por momentos da vida íntimos, seja em relação ao casal, à maternidade ou a situações diversas. Por vezes, também encontramos uma alegria coletiva como, por exemplo, a associada às festas populares, às romarias, à ida à Feira Popular ou ao cinema, às festas familiares, embora fosse complicado celebrar dada a escassez de dinheiro. Apesar do trabalho duro nos campos, as mulheres cantavam, falavam e conviviam. Ou seja, quis transmitir a imagem de um contexto social duro para uma grande parte das classes populares durante o Estado Novo. Uma dureza extensível ao mundo rural e ao mundo urbano, o que não obstava a momentos de alegria pessoal e coletiva.

Uma alegria sempre sob o controlo do Estado.

Sim, claro. O Estado controlava as pessoas desde que elas nasciam até à sua morte, em todos os aspetos das suas vidas.  Isto, através da legislação, através de censura, através dos mecanismos de implicação ideológica, através da escola. Estamos a falar de uma ditadura com todos os mecanismos de controlo social, de controlo sobre as pessoas, de uma violência que era imposta no quotidiano. Vivíamos sob o medo de falar, de dizer alguma coisa contra o Estado, ou contra o Governo, ou contra Salazar. O medo que em qualquer momento estivesse alguém a escutar e que fizesse uma denuncia à polícia. O de se saber que, caso se usasse uma roupa que não estivesse de acordo com determinados padrões, poderia gerar conversa e desconfiança dentro daquela sociedade extremamente conservadora, tradicional e católica.

“Acho importante resgatar para as gerações mais novas o conhecimento do que foi o sofrimento da ditadura” – Paula Lobato de Faria
“Acho importante resgatar para as gerações mais novas o conhecimento do que foi o sofrimento da ditadura” – Paula Lobato de Faria
Ver artigo

Havia uma pressão enorme na esfera mental, aquela que não é discernível.

Exatamente, aquela esfera que mais nos castiga. É importante falar também de uma violência que era punitiva. Aqueles que faziam parte da oposição, que organizavam manifestações, greves, iam presos, eram torturados, mortos. É importante relembrar tudo isto. Repare, a maior parte da população também vivia uma situação de violência, aquela que designo como a violência do quotidiano.

Ao regime interessava-lhe perpetuar a desigualdade social? Era um equilíbrio social que trazia benefícios às elites? Retenho, do seu livro, as palavras que cita de Rómulo de Carvalho sobre a forma como o regime olhava para a literacia do povo: por via da leitura teria “conhecimento de doutrinas corrosivas e de facécias mal-cheirosas”.

Exatamente. Ao Estado convinha manter as diferenças sociais e a sua perpetuação, uma classe popular ignorante, também submissa, que não questionasse a importância da escola e da escolaridade. Não nos podemos esquecer do enorme controlo do Estado sobre a escola. Nunca o Estado Novo pretendeu ser um regime igualitário ou que acabasse com as diferenças sociais ou com as classes sociais. Ao povo competia, sobretudo, trabalhar, produzir, manter-se dentro da moral vigente, da ordem vigente, não questionar, não pensar, não criticar, não colocar em causa o próprio Estado.

Ao Estado convinha manter as diferenças sociais e a sua perpetuação, uma classe popular ignorante, também submissa, que não questionasse a importância da escola e da escolaridade.

A Ana Sofia Ferreira leva-nos neste seu livro das cidades, mas também ao mundo rural. Atualmente, são dois espaços que se aproximam, interpenetram. Na época olhávamos para dois mundos diferentes. Como se caracterizavam?

Esse mundo rural também vai mudando, tal como as cidades também mudam. Trata-se de um período que abarca 40 anos e é óbvio que encontremos mudanças significativas. O mundo rural dos anos de 1940 e dos anos de 1950 é muito mais fechado, feito de muitas dificuldades e miséria. Um mundo com muita morte e que era retratado, na época, como sendo quase medieval. Também uma sociedade povoada de ignorância, de superstição. Desse mundo fechado as pessoas, em particular os homens, saiam para emigrarem. Desta forma, é um contexto muito marcado pelas mulheres, por serem as que ficam. Até aos anos 50 do século XX a emigração visava, sobretudo, o Brasil. A situação do campo português começa a mudar nos anos de 1960, tal como a das cidades, quando há uma modernização do país, um certo desenvolvimento. Nessa época dá-se uma grande vaga migratória para a Europa, em especial rumo a França, mas também movimentos internos, rumo às cidades. Além disso, a própria industrialização significa que, próximo das aldeias, nas zonas rurais, comecem a aparecer fábricas. As pessoas vão começar a combinar estes dois mundos, por exemplo, com o trabalho na fábrica e o trabalho no campo. Dá-se um maior encontro entre a cidade e o campo.

Um mundo onde, antes desse encontro, as duas grandes cidades, Lisboa e o Porto, ficavam muito distantes do Portugal rural.

Claro, era uma outra galáxia. Muitas pessoas nunca tinham ido a Lisboa ou ao Porto, não saiam da sua aldeia, da sua vila. Aliás, todos nós temos presente os relatos de pessoas que nunca tinham visto o mar. Nunca tinham ido ver o mar porque não havia as estradas ou as autoestradas que temos hoje. Uma viagem de Trás-os-Montes a Lisboa implicava, pelo menos, um dia inteiro de caminho por estradas péssimas.

Sobre a autora

Ana Sofia Ferreira é professora auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e investigadora integrada do Instituto de Sociologia da mesma universidade. É doutorada em História, na especialidade em História Contemporânea, pela Universidade Nova de Lisboa, com a tese Luta Armada em Portugal (1970-1974). Tem desenvolvido trabalhos em torno dos temas da violência política, da oposição à ditadura, da esquerda radical e do papel das mulheres no processo revolucionário português. Entre os trabalhos publicados estão As Esquerdas Radicais Ibéricas entre a Ditadura e a Democracia. Percursos Cruzados (Edições Colibri, 2020); Violência Política no Século XX - Um balanço (IHC/FCSH, 2018).

Os inquéritos à população a que teve acesso deram-lhe um espelho da miséria em que vivia a população. O que a chocou mais?

A miséria chocou-me porque, aquilo que se percebe é, obviamente, uma pobreza total que se reflete em todos os aspetos da vida. As pessoas não tinham em casa um local com condições para dormir. Os pais dormiam com os filhos, muitas vezes no chão. Estas condições provocavam um conjunto de doenças nas crianças que podiam conduzir à morte, por exemplo provocada por uma diarreia. Acresce que não havia acesso ao médico porque este estava longe, principalmente nas aldeias, e porque era preciso pagar a consulta. No livro de Maria Lamas [As Mulheres do Meu País] lemos que algumas mães, quando os filhos estavam muito doentes, afirmavam preferir que eles morressem porque eram anjinhos no céu. Aquelas famílias viviam com muitas bocas para alimentar, sem que houvesse meios para o fazer. As crianças passavam fome. Isto chocou-me. A mortalidade infantil era muito elevada. A morte das crianças era algo normal, algo do quotidiano.

Quando se refere ao papel da mulher no período a que nos referimos há uma frase que nos choca: “Na casa manda ela, mas nela mando eu”. De certa forma resume a estrutura da família tradicional, profundamente influenciada pelo regime. Era uma realidade transversal a todo o país e a todas as classes sociais?

Era transversal a todo o país e a todas as classes sociais. Quem mandava era o homem, o chefe de família, e as mulheres e os filhos deviam-lhe obediência, estavam-lhe subordinados. Era o homem que determinava tudo, que mandava, que decidia, que dispunha e, obviamente, quer a mulher, quer os filhos, não tinham uma voz ativa. Isto, não só nas classes populares, como também nas outras classes sociais. É a estrutura do Estado Novo que está ali determinada.

Dentro das classes mais abastadas, eram os maridos quem dispunha dos bens das mulheres que recebiam heranças ou que contavam com património.

Também era muito difícil aos casais obterem o divórcio, pois foi proibido a partir de 1940. No período do Estado Novo as taxas de divórcio eram muito baixas. Mesmo em situações de grande violência era muito difícil que o casal se divorciasse.

A vida quotidiana no estado novo
Fotografia da capa de Artur Pastor/Arquivo Municipal de Lisboa. créditos: Manuscrito

Aliás, os níveis de violência doméstica na época eram avassaladores.

Sim, claro, e temos de ter em conta que não havia denúncias. As denúncias que existiam de violência eram raras, porque a violência doméstica era considerada como algo normal, que ocorria em todas as famílias, de todos os estratos sociais. O homem podia bater na mulher e nos filhos. Aliás, cabia-lhe essa função, entendida como disciplinadora. A mulher também precisava de uma autorização para viajar. O homem podia abrir a correspondência da mulher, podia denunciar um contrato de trabalho da esposa, se assim quisesse. Ou seja, a residência da mulher era a residência do marido. Por isso, se a mulher saísse de casa, o marido poderia denunciá-la à polícia, independentemente do que pudesse ter acontecido dentro daquela casa.

Era o homem que determinava tudo, que mandava, que decidia, que dispunha e, obviamente, quer a mulher, quer os filhos, não tinham uma voz ativa.

Podemos afirmar que havia por parte do Estado Novo um controlo sobre o corpo da mulher?

Sim. O aborto, obviamente, era proibido. Por exemplo, quando a pílula aparece começa a ser comercializada, não como método anticoncecional, mas como medicamento para determinadas doenças ginecológicas. Os padres, nas suas homilias ao domingo, ditavam que as mulheres não podiam tomar a pílula porque aquilo ia-lhes provocar cancro, doenças muito graves, ficariam inférteis. À mulher era-lhe consentido tomar a pílula quando prescrita por um médico, mas com autorização do marido para a tomar. Isto mesmo foi-me relatado nas entrevistas. Disse-me uma entrevistada que a irmã começara a tomar a pílula devido a um problema físico o que implicava não poder engravidar. Desta forma, a minha entrevistada teve conhecimento da pílula através da irmã. Uma informação que começou a passar entre as mulheres. Outra questão prendia-se com a virgindade. Uma mulher tinha de ir virgem para o casamento. Ao homem, isso não era exigido, nem sequer era esperado. O homem devia ter experiência sexual antes de casar, mas a mulher não. Uma mulher não podia demonstrar que tinha prazer nas relações sexuais, mesmo com o marido.
O Estado também controlava a forma de vestir. À mulher competia-lhe vestir-se com modéstia. Uma mulher honesta não devia usar roupa garrida e minissaias.

Aliás, a mulher perfeita era a dona de casa.

Sim [risos], a mulher era a dona de casa, modesta, tradicional, e que cumpria com aquelas normas estipuladas pelo Estado. Mas muitas mulheres não cumpriam, obviamente.

Leva para o seu livro uma história interessantíssima, quando a atriz sueca Ingrid Bergman vai à praia de Monte Gordo e é multada.

Sim, porque havia multas para quem usava biquíni. O biquíni começa, precisamente, a ser introduzido em Portugal com as estrangeiras. Foi um choque na época. Inclusivamente, as pessoas iam à praia para ver as estrangeiras a vestir o biquíni. Mais tarde, as mulheres portuguesas, particularmente as mais jovens, também começaram a utilizar biquíni. Algumas entrevistadas relataram-me que a utilização daquela peça de roupa deu-se em praias não vigiadas para se evitar a multa. Isto já nos anos de 1960. Obviamente, o nosso mundo também começava a mudar, as raparigas começam a usar calças, a usar minissaias, a usar decotes. No início dos anos 60 do século XX, a juventude começa a pôr em causa a moral católica, conservadora, tradicional da ditadura. Nascem ventos de mudança, aspiramos à mudança.

a vida quotidiana no estado novo
Corpo Santo, em Lisboa, na década de 1930. créditos: Wikimedia Commons/Horácio Novais

Também encontramos mulheres na clandestinidade. Era uma decisão difícil.

Sim, exatamente, era uma decisão muito difícil. Ir para a clandestinidade significava cortar com todos os laços familiares e de amizade, sair do sítio que se conhecia e onde se vivia. Significava, no caso de se ser mãe, de deixar os filhos. Algumas mulheres iam por iniciativa própria, porque já estavam envolvidas politicamente, geralmente vinham de famílias ligadas ao Partido Comunista Português. Em muitos casos o companheiro estava preso e era necessário passar à clandestinidade.

Encontrou na sua investigação outras formas de estrutura familiar?  

Sim, há outras formas de estrutura familiar, para além da tradicional. Por exemplo, no Alentejo, os assalariados rurais alentejanos e muitos operários de zonas urbanas não casavam oficialmente. O casal juntava-se e vivia sob todas as convenções tradicionais associadas ao matrimónio. Na prática, não tinham dinheiro para casar. Há também, obviamente, muitas famílias monoparentais, sobretudo de mulheres solteiras que engravidavam, tinham as crianças, embora os pais não assumissem a prole. Havia também casais, sobretudo de mulheres lésbicas, que viviam juntas, mas sempre publicamente assumindo a união com base na amizade.

Há pouco referiu o trabalho de Maria Lamas. Esta, traz-nos uma perspetiva global da mulher portuguesa na década de 1940. De certa forma as regiões rurais abrem à mulher outras áreas profissionais.

Exato, acabam por assumir papéis masculinos. Com a emigração masculina, estas mulheres das aldeias viam-se incumbidas da responsabilidade familiar, também pela própria estrutura económica familiar. Elas tinham de ir trabalhar para o campo para assumir as despesas com a família. Até aos anos de 1950, uma parte significativa da emigração era, sobretudo, para o Brasil. Ali, os homens ficavam 20 ou 30 anos, muitos não regressavam, outros constituíam novas famílias. Mas, aquelas mulheres, a partir do momento em que os homens partiam, vestiam-se de negro, punham um lenço na cabeça e nunca mais iam a festas, nunca mais dançavam, mantinham-se como viúvas, respeitando a memória do marido ausente. Mesmo com a vaga de emigração dos anos de 1960, quando passam a sair mais mulheres, estas e os filhos vão depois dos homens. Desta forma, também as mulheres assumem num primeiro momento as responsabilidades sobre a estrutura familiar.

Havia também casais, sobretudo de mulheres lésbicas, que viviam juntas, mas sempre publicamente assumindo a união com base na amizade.

Choca-nos ler uma passagem do seu livro: “Ainda nos anos 50, era comum, nos meios rurais, manter em currais ou em espaços exíguos sem luz solar, acorrentadas ou atadas com cordas as pessoas que sofriam de doenças físicas ou mentais”.

Sim, era comum as famílias esconderem o facto de os filhos terem nascido com problemas. Havia a vergonha de assumir esta condição face ao julgamento social. Aquelas pessoas não tinham meios ou conhecimento para lidar com estas crianças com doenças físicas ou mentais. Aliás, não encaravam estas questões como doenças. Ou seja, na sua visão do mundo, a criança tinha nascido assim, tinha um problema, parecia quase um animal e, por isso, era colocada no curral. Esta é uma realidade que não é só portuguesa. Sobre o tema há trabalhos desenvolvidos em Espanha a propósito de crianças que viveram em currais, em pocilgas, junto com os animais, sem que soubesse falar ou capazes de se integrar na sociedade.

O seu livro também é uma história de resistência. Há muitas formas de resistir, até aquelas indeléveis no dia a dia. Quer sublinhar algumas?

As pessoas resistiam ao regime e faziam-no na vida quotidiana. A resistência fazia-se quando não se oficializava o casamento, porque se considerava que isso não era importante. A resistência fazia-se quando se optava por não ir à missa ao domingo. A resistência fazia-se quando não se tirava o chapéu ao passar o dono da fábrica ou o capataz. A resistência fazia-se quando as raparigas, independentemente de tudo, começaram a usar calças. E depois, as mulheres, trabalhadoras, algumas mais velhas, também vão começar a usar calças.

“Alimentarmo-nos é um ato de cultura”, cita no seu livro. Podemos fizer que o Portugal do Estado Novo vivia subnutrido?

Era um país subnutrido, com várias carências alimentares, nomeadamente no consumo de vitaminas e de proteínas. A alimentação fazia-se à base da carne de porco, por ser barata, por se tratar de um animal comum nos campos e capaz de comer tudo. Por isso, trata-se de um animal muito fácil de alimentar e de crescimento rápido. Mesmo no campo, a fruta era encarada como algo para os ricos. Acresce um grande consumo de álcool. Aliás, o próprio governo promovia campanhas para incentivar o consumo de vinho que era extremamente barato. Só a partir da década de 1960 é que se começa a consumir mais cerveja. E, claro, lá encontramos a história da sardinha que tinha de dar para alimentar três ou quatro pessoas. Também havia um grande consumo de bacalhau, porque o governo assim o incentivava. Era um peixe muito barato.

O seu livro abarca um período vasto, da década de 1930 à de 1970. É natural, como refere, que se assista a uma evolução. Há alguma, nos costumes, que queira salientar para além das já citadas?

Sim, há mudanças importantes. A década de 1960 é de modernização, de urbanização, de litoralização do país, realidades que se fazem sentir até à atualidade. Ocorre uma migração rural, com a vinda das pessoas para as cidades já a partir de finais dos anos de 1950. Crescem as periferias das grandes cidades, como o Barreira, Almada, Matosinhos e Gondomar. O próprio contexto da guerra colonial promove a circulação das pessoas no país. Os rapazes que iniciam o serviço militar são colocados longe da sua região de origem. É um país que se começa a modernizar mesmo no que toca aos costumes. As mulheres passam a trabalhar fora e o próprio contexto da guerra implica que estas comecem a ganhar novos espaços no domínio público. As mulheres também começam a ir almoçar e jantar fora, a frequentar o café sozinhas ou com amigas. Há uma mudança de mentalidade. Acho que uma das grandes revoluções da liberdade, depois do 25 de Abril, prende-se precisamente com a questão da mulher. Ainda não há igualdade, obviamente, mas há uma revolução importante.