A falta de continuidade nos cuidados, a baixa adesão ao tratamento e a insuficiência de programas de reabilitação cardiovascular são, para o médico António Miguel Ferreira, as principais deficiências no acompanhamento pós-evento. O especialista em Cardiologia do Hospital de Santa Cruz e também no Hospital da Luz, em Lisboa, defende que para alterar o atual cenário é necessário implementar sistemas integrados que garantam um seguimento adequado; aumentar a disponibilidade de programas de reabilitação e melhorar a adesão terapêutica. E também, preconiza, uma melhor integração dos sistemas de saúde, onde as unidades de tratamento de doentes agudos trabalhem em estreita colaboração com os cuidados primários e os programas de reabilitação. Além disso, aponta, são necessárias políticas de saúde que incentivem uma prevenção secundária eficaz e efetiva
Healthnews (HN) – Apesar dos avanços significativos na inovação, diagnóstico e intervenções em cardiologia, a mortalidade por doenças cardiovasculares não tem diminuído. Na sua opinião, quais são os principais obstáculos que impedem uma maior eficácia desses avanços em termos de redução da mortalidade?
António Ferreira (AF) – É verdade que parece ter existido alguma estagnação nos últimos anos, comparativamente à redução consistente que vínhamos observando nas últimas décadas. Existem vários obstáculos à obtenção de melhores resultados. Desde logo, há atualmente alguma dificuldade e desigualdade no acesso aos cuidados de saúde, o que impede muitos doentes de beneficiarem dessas inovações. A atual escassez de especialistas em Medicina Geral e Familiar é um problema grave, que deixa muitos dos nossos doentes sem o seguimento que seria necessário. Há muito trabalho de prevenção primária que fica inevitavelmente por fazer. Fizemos progressos notáveis, sobretudo nas redes de intervenção aguda, mas penso que há ainda um longo caminho a percorrer, sobretudo no seguimento do doente após evento.
HN – Como melhorar o equilíbrio entre o investimento em intervenções agudas (como a “via verde” para AVC e enfarte) e o acompanhamento do paciente após o evento?
AF – É crucial investir tanto na fase aguda quanto no acompanhamento a longo prazo. Embora ainda haja bastante espaço para melhoria no tratamento agudo do enfarte e do AVC (sobretudo na melhoria dos tempos até à intervenção, crucial nestas situações), eu diria que provavelmente onde o sistema mais falha atualmente é no acompanhamento após o evento. E sabemos como esse acompanhamento é fundamental para evitar eventos subsequentes. Precisamos de uma melhor integração dos sistemas de saúde, onde as unidades de tratamento de doentes agudos trabalhem em estreita colaboração com os cuidados primários e os programas de reabilitação. Além disso, políticas de saúde que incentivem uma prevenção secundária eficaz e efetiva são essenciais para melhorarmos os resultados.
HN – Quais são as principais deficiências no acompanhamento pós-evento e como podem ser abordadas?
AF – Penso que as principais deficiências incluem a falta de continuidade nos cuidados, a baixa adesão ao tratamento e a insuficiência de programas de reabilitação cardiovascular. Para abordar essas questões, é necessário implementar sistemas integrados que garantam um seguimento adequado, aumentar a disponibilidade de programas de reabilitação e melhorar a adesão terapêutica. Neste último capítulo, há medidas relativamente simples que poderiam ter um efeito transformador. Para além de melhorar a educação dos doentes sobre a importância da adesão terapêutica, poderíamos por exemplo ter alertas nos nossos sistemas informáticos quando um doente que estamos a ver em consulta não tenha adquirido medicação em quantidade suficiente para cobrir o período desde a consulta antecedente. Isso deveria naturalmente espoletar uma conversa sobre a importância da adesão terapêutica e os obstáculos sentidos pelo doente, algo que nem sempre acontece nas nossas consultas.
HN – Que medidas podem ser tomadas para otimizar o acompanhamento nos cuidados primários e reduzir o risco de um segundo evento?
AF – Diria que essas medidas incluem uma maior capacitação dos profissionais de saúde nos cuidados primários para o manejo de pacientes pós-evento cardiovascular, a implementação de protocolos de seguimento padronizados e a realização de consultas regulares de seguimento. Em termos de políticas de saúde, penso que não temos dado à hipercolesterolemia a importância que ela tem no tratamento destes doentes. Por exemplo, seria importante incluir métricas de atingimento de valores alvo de colesterol LDL na contratualização dos cuidados de saúde primários, à semelhança do que acontece na diabetes. Penso também que seria benéfico aumentar a comparticipação dos fármacos para dislipidemia, essenciais no doente após evento, e aumentar a acessibilidade a medicação inovadora nesta área.
HN – Que esforços podem ser feitos para educar os doentes sobre a cronicidade das doenças cardiovasculares e o risco aumentado após um primeiro evento? E como podemos combater a perceção errónea de que sobreviver a um AVC ou enfarte significa estar livre de risco?
AF – Penso que essa educação deve começar logo no Hospital durante o tratamento do evento agudo, muitas vezes ainda com o doente deitado na sala de Hemodinâmica. Em vez de dizer apenas que tinha uma artéria obstruída que foi tratada, devíamos acrescentar que tem ali uma doença para a vida inteira, que não tem cura mas tem tratamento. Pode não ser muito simpático de ouvir, mas é a verdade. E que, com o seu empenho e a nossa ajuda, podemos reduzir muito a probabilidade de novos problemas semelhantes. Durante o restante internamento, no momento da alta hospitalar e posteriormente no seguimento, a mensagem deve ser consistente: esta é uma doença crónica. Mas de facto, o risco de novo evento é maior nos primeiros meses. Isso é particularmente relevante em termos de adesão terapêutica e de controlo da hipercolesterolemia. A prática corrente de iniciar estatina em monoterapia no internamento e só posteriormente reavaliar em ambulatório é uma das causas dos maus resultados que temos quanto ao atingimento dos valores alvo de colesterol LDL. Sabemos que esse ajuste terapêutico muitas vezes não chega a acontecer ou, se acontece, apenas coloca o doente no seu valor alvo muitos meses após o evento, deixando-o “desprotegido” durante o período mais crítico. Cada vez mais se defende que o doente tenha alta do evento já com terapêutica dupla com estatina de alta intensidade e inibidor da absorção do colesterol. Nalguns casos mais graves poderá mesmo ser benéfico iniciar inibidores da PCSK9 ainda durante o internamento.
HN – Como é que a sociedade pode ser mobilizada para a promoção e preservação da saúde, especialmente em relação aos fatores de risco cardiovasculares?
AF – Embora não seja um especialista na matéria, penso que há algum consenso de que esse trabalho deve começar cedo, nas escolas, com uma efetiva educação para a saúde e promoção de estilos de vida saudáveis. Penso também que precisamos de mais campanhas públicas que abordem os riscos do tabagismo, do sedentarismo e de uma alimentação desequilibrada. As redes sociais podem ter aqui um papel importante. Quanto ao tabagismo, o acesso às consultas especializadas de cessação tabágica pode ser muito melhorado. E penso que deveríamos iniciar um debate público sobre medidas que dificultem o acesso dos jovens ao tabaco. Por exemplo, a Nova Zelândia aprovou em 2022 legislação que basicamente impede que os seus cidadãos nascidos depois de 2009 comprem tabaco legalmente. Parte dessa legislação foi entretanto revogada, mas outros países têm planos semelhantes para que ao longo das próximas décadas haja um “phase-out” do tabagismo nas suas populações. Devíamos pensar seriamente nisso.
Entrevista de Miguel Múrias Mauritti
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