Desconcertada de tanto chorar e ainda com a barriga saliente sob a blusa, Wendy Dulcey faz um relato dos dias terríveis: desde quando chegou grávida de sete meses para uma cesariana de emergência até ver o corpo do seu pequeno Thiago num refrigerador com outras crianças, que de tão cheio não fechava.
"Ele não podia lutar sozinho", diz a mulher de 39 anos com traços indígenas, que denunciou a negligência no tratamento do seu bebé, que nasceu em uma das muitas salas de parto na Venezuela, que não escapam do colapso do país com sete anos de recessão.
A infraestrutura está abandonada, há falta de material médico e o pessoal capacitado é cada vez menos.
Wendy ainda tem dificuldade em acreditar que as enfermeiras reutilizaram a seringa com a qual alimentavam Thiago por uma sonda, que também não trocaram. No final, a criança contraiu uma bactéria que o matou, apesar dos antibióticos. A mãe também quase perdeu a vida e recorda com clareza quando ouviu "interrupção da gravidez" ao entrar no pronto-socorro do Hospital das Clínicas Universitário, que um dia foi referência no país.
"Achava que não sairia de dá. Nem eu, nem ele, nem o bebé", diz com voz firme.
Antes do início da provação de Thiago, Wendy sofreu uma hemorragia uterina porque a sua placenta foi deixada no seu interior. "Tiraram com a mão" dois dias depois, afirma.
Ela consentiu em laquear as trompas após advertências dos médicos de que não suportaria outra gravidez. "Uma médica veio e disse 'nem pense nisso porque não irá aguentar mais'", lembra. "'Ganhou na lotaria porque a gente não laqueia aqui (...), mas vamos fazer-se um favor".
Sem recursos
A mortalidade infantil na Venezuela aumentou 30,12% em 2016, com 11.466 mortes de crianças dos 0 a 1 ano de idade, e a mortalidade materna aumentou 65%, de acordo com os últimos dados publicados pelo Ministério da Saúde.
Jaime Lorenzo, médico da ONG Médicos Unidos, garante que essas taxas estão a aumentar devido a falhas "principalmente de infraestrutura e material" dos hospitais. "Temos que pedir (aos pacientes) que tragam uma grande quantidade de coisas", explica à AFP.
Reutilizar uma seringa? O risco de infeção "é muito alto" e deve ser o último recurso, explica Lorenzo.
Uma pesquisa de 2019 feita pela HumVenezuela, plataforma independente que documenta a complexa emergência humanitária no país, revelou que quatro em cada 10 hospitais careciam de suprimentos básicos e que em oito em cada dez faltavam suprimentos cirúrgicos e reagentes.
E Wendy, funcionária pública com uma renda mínima mensal de menos de um dólar, não podia nem pensar em dar à luz numa uma clínica particular, onde o parto custa cerca de 5.000 euros.
Antes de chegar à clínica, ela já tinha passado por outros dois hospitais onde não a receberam pela mesma razão: a crise.
Metade das maternidades venezuelanas teve os seus serviços obstétricos inoperantes ou fechados, parcial ou totalmente, em 2019, segundo a HumVenezuela.
Em péssimo estado, desceu dez andares "intermináveis" por uma "rampa escura, cheia de excrementos, sangue e lixo". Os elevadores não funcionavam e não havia cadeiras de rodas disponíveis.
"Seis hospitais antes de parir"
Briggite Pérez, de 19 anos, passou pelo mesmo "corre corre". "Foram seis hospitais antes de parir", conta a jovem, com sobrancelhas recém-maquilhadas e cabelos trançados, que a sua mãe de trinta anos amarrou com esparadrapo.
Internada, Briggite fazia força numa cama oxidada sem apoio para os pés, segurando o peito do pé com as mãos. Sem sucesso, foi transferida para a sala de cirurgia para uma cesariana.
Quatro dias após a alta, voltou ao hospital com uma infeção. "Não me explicaram como eu tinha que limpar a ferida", justifica.
Em 2019, segundo a HumVenezuela, 57% das gestantes recebeu atendimento obstétrico inadequado em maternidades públicas do país.
Lorenzo explica que alguém pode cair em "negligência médica" por "não estar preparado o suficiente". Acontece que ao colapso dos hospitais se soma a migração de pessoal médico, parte do êxodo massivo de mais de cinco milhões de venezuelanos devido à crise. Os que permanecem no país estão "a migrar para outras áreas" por causa dos baixos salários, acrescenta Lorenzo.
Briggite resiste enquanto as enfermeiras limpam a sua ferida com uma escova cirúrgica; sofre mais por estar longe do seu bebé Azael.
"Eu vim aqui e não estou com a criança, isso deprime-me horrivelmente", diz. "Choro a noite toda".
"Questão de sorte"
Dar à luz "foi uma questão de sorte" para Vanessa Martínez.
Após um aumento da pressão arterial momentos após uma suplementação de ferro, esta jovem de 28 anos passou por uma cesariana de emergência no sétimo mês de gravidez.
Em voz baixa e aguda, diz que aspira a uma "vida tranquila" com a sua recém-nascida Samantha, de 1.945 kg, que dorme num berço coberto com uma rede mosquiteira... Um luxo que Wendy não poderá ter.
O corpo de Thiago teve que ser levado ao necrotério de outro hospital porque não havia refrigerador na clínica para guardá-lo.
Ao buscá-lo, Wendy percebeu que pequenos corpos anónimos estavam empilhados num sala aberta, por onde o frio entrava.
"O meu estava quase em más condições e nem 24 horas tinham passado", assegura. E se isso continuar, ela pensa, "estaremos a matar os nossos filhos".
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