Na discussão sobre o combate ao tabagismo, parece vingar hoje uma posição a roçar o fanatismo que assenta no paradigma: “Quit or Die”. É muito difícil ultrapassar este paradigma, porque mesmo os especialistas ligados a esta área não estão abertos a abordagens alternativas, como a da redução de danos através da substituição do tabaco tradicional pelos novos dispositivos de tabaco aquecido. Mesmo os Governos que adotaram inicialmente uma posição favorável aos produtos “heat-not-burn” (HNB), reconhecendo que estes produtos conseguem reduzir o risco associado a substâncias nocivas para a saúde em mais de 90%, acabam por colocar restrições ou mesmo proibir a venda, alinhando com o lóbi antitabagista.

Healthnews (HN) – Olhando para o panorama internacional no que respeita a estratégias de redução de danos do tabaco observamos um retrocesso por parte dos governos no que toca às estratégias de saúde pública adotadas. Voltam frequentemente atrás nas decisões de avançar com estratégias de substituição. Como se explica este comportamento?

Bruno Maia (BM) – Porque são pressionados pela própria comunidade científica local a voltar atrás. A própria OMS continua hoje em dia a defender uma teoria que em tudo o resto na Medicina, sobretudo na área dos consumos, já foi abandonada. Na área das dependências, por exemplo, já foi abandonada há muito tempo. Está provado que não funcionou em mais nenhum consumo, mas continua-se a insistir nessa tecla em relação ao tabaco. É evidente que o tabaco tem que ser combatido, que a abstinência é o principal objetivo, superior a todos os outros. Agora, já levamos umas décadas da mesma política de saúde que assenta na premissa “ou se deixa de fumar ou não há outra alternativa”. Ora, penso que está na altura de começar a pensar noutras alternativas, como se fez em relação aos demais consumos.

HN – Nas políticas de substituição por metadona, na toxicodependência, também houve, inicialmente, muita controvérsia, com muitas vozes contra, mas a verdade é que os estudos mostram que a medida foi eficaz e que constitui um paradigma mesmo em termos internacionais…

BM – Há quem diga com graça que na guerra contra as drogas ganharam as drogas. E de facto, na prática, pareceu um bocadinho isso. Mas não. A política única – absoluta e absurda – de combate aos consumos não resultou no caso das drogas. Eu diria que também não está a resultar no caso do tabaco. Continuamos com uma prevalência elevadíssima de fumadores. Ora, o objetivo número um de qualquer política é o de reduzir ao máximo esta prevalência. E sabemos também que mesmo que esta prevalência diminua, haverá sempre uma percentagem de fumadores que irão continuar a fumar. Até porque há quem não consiga deixar de fumar e há quem queira continuar a fumar. A questão é se para este grupo específico de pessoas não deveríamos adotar uma política diferente da do abstencionismo puro e duro.

HN – O que se sabe sobre os novos produtos de tabaco?

BM – Na verdade, sabe-se muito pouco, ou seja, há imensos estudos produzidos pelas próprias tabaqueiras. Isso é um problema, porque são estudos que à partida são enviesados. Não estou a dizer que estão errados ou que são mal conduzidos. Na maioria dos casos até são realizados por cientistas, investigadores ou médicos. Mas sabemos que é preciso ser mais independente do que isto para se conseguir chegar a conclusões evidentes.

Sabe-se, com certeza, como é que os produtos funcionam. Sabemos que não ocorre combustão.

Bem, não fazem com certeza. É garantido que fazem mal à função pulmonar. Agora, comparando com a combustão, já sabemos – e não é preciso olhar para os estudos da indústria – que a combustão liberta muito mais substâncias potencialmente cancerígenas.

HN – Em todos os estudos a que tive acesso realizados por autoridades sanitárias de países de todo o mundo, ficou demonstrado que a quantidade de substâncias tóxicas era muitíssimo inferior nos produtos de tabaco aquecido comparativamente ao fumo do tabaco.

BM – Relativamente a isso não temos quaisquer dúvidas. Não é preciso estar à espera de estudos a longo prazo para evidenciar isso. É como digo… Que fazem mal… Fazem; que vão provocar doença… Vão. Mas a percentagem em que são nocivos é seguramente muito menor, com a maioria dos estudos a apontarem para uma redução de 95% das substâncias nocivas.

HN – Isso só por si não deveria levar a que a Saúde Pública colocasse a possibilidade de utilizar estes produtos numa estratégia de redução de danos?

BM – Sim! O que está a acontecer com o tabaco é até curioso. As entidades públicas de saúde recusam a estratégia de oferecer a quem não quer deixar de fumar ou a quem não consegue deixar uma alternativa que seja menos nociva. No entanto, há uma mudança massiva de fumadores para estes novos produtos que precisava de ser estudada. Ou seja, os próprios fumadores, sem influência de políticas públicas, começaram a mudar.

HN – A penetração dos produtos de tabaco aquecido, também conhecido como “heat-not-burn” (HNB), tem vindo a aumentar em todo o mundo.

BM – É verdade. E insista-se: os próprios fumadores, mesmo sem políticas públicas que promovam essa mudança, estão a mudar. Quiseram de moto-próprio dar esse passo, procurando desta forma reduzir os riscos. O que também é um sinal de que provavelmente a política está errada. Não podemos continuar a tratar as pessoas como crianças, autómatos ou robôs. Estamos a falar de pessoas que refletiram sobre o seu consumo de tabaco e perceberam que existe uma alternativa mais razoável. Não sabemos o quão mais razoável, mas é seguramente mais razoável. Falámos de uma redução de 95% de substâncias tóxicas. Ora, mesmo que a redução fosse de 50 ou 70% já era uma boa razão para querer mudar.

Há aqui uma contradição óbvia – diria mesmo um divórcio – em relação à política de tabaco face à política de todos os outros consumos, mesmo dentro da OMS e das autoridades de saúde nacionais cujas razões é necessário perceber. Porque é que o tabaco é especial ou diferente?

HN – O que pode estar por detrás dessa posição?

BM – Quando olhamos para este divórcio entre abordagens, vemos que existe um lóbi antitabagista gigantesco.

HN – Que chega a afirmar que estes novos produtos são ainda piores que o tabaco.

BM – Uma afirmação dessas não é sustentada em nada. Não existe nenhum dado que diga que os novos produtos são piores do que o tabaco. Pelo contrário, todos os dados existentes afirmam exatamente o oposto. Há um lóbi gigantesco, financiado, por exemplo nos Estados Unidos, por Michael Bloomberg, um dos grandes financiadores das campanhas antitabagistas. É verdade que têm a sua quota-parte na redução do consumo, ninguém nega isso. Agora, a questão que se coloca é a seguinte: por que razão tem-se obrigatoriamente que adotar uma política de saúde que exclui um número elevado de pessoas que não querem ou não conseguem deixar de fumar? Isso não faz sentido; é completamente contraditório.

HN – Como se combate esse lóbi?

BM – É difícil! Desde logo pelo passado das tabaqueiras. Qualquer coisa que tenha que ver com tabaqueiras traz de imediato à memória o historial destas empresas, designadamente no que se refere à manipulação de informação e à informação enganosa. Isto não significa que nós tenhamos de, para o futuro e para todo o sempre, recusar toda e qualquer alternativa aos consumos de tabaco. Isso não faz sentido nem é sequer racional. Estamos perante uma postura emocional e não racional.

HN – Como é que se pode mudar este estado de coisas?

BM – Como referi, é difícil. É preciso combater o lóbi antitabagista. Que é um lóbi como qualquer outro, que se tornou um obstáculo ao desenvolvimento da ciência na área das políticas de saúde. Há muito trabalho por fazer, desde logo desmistificar conceitos como o que é a redução de risco; quais as formas alternativas de consumo de tabaco, entre outros. É preciso investir na informação e combater a desinformação.

HN – Uma das alternativas propostas são os produtos não tabágicos de administração de nicotina…

BM – Sim, desde logo os pensos de administração transdérmica de nicotina, as pastilhas, os chupa-chupas, etc.

HN – Todavia, uma das malfeitorias apontadas aos produtos de tabaco aquecido pelo lóbi antitabagista é a de que a dose de nicotina consumida nestes é idêntica à dos cigarros convencionais. Não existe aqui um contrassenso?

BM – As coisas estão hoje diferentes. No início o mercado era dominado pelas principais multinacionais, com produtos de tabaco com nicotina em doses idênticas às dos cigarros “normais”. Penso que há hoje espaço no mercado para a introdução de produtos com doses inferiores de nicotina.

HN – Qual é a vantagem?

BM – É a das pessoas poderem desabituar-se. E já há autorização para que as empresas comecem a produzir estes produtos.

HN – Na Austrália, a proibição de tabaco e produtos alternativos é total e o mercado está hoje sob a mira do tráfico criminoso, que floresce graças ao proibicionismo. Não se deveria acautelar este cenário?

BM – Claro. A experiência mostra que todas as proibições acabaram mal. Temos a experiência das drogas, já com muitas décadas, em que todas as proibições resultaram em tráfico, a que se associaram outros tipos de criminalidade. As proibições nunca foram resposta para nada. Muito menos na área da saúde. Vamos mudar o paradigma relativamente ao tabaco, impondo o proibicionismo quando não o fizemos relativamente às demais drogas? Não faz sentido! As pessoas que hoje consomem tabaco aquecido não vão deixar de o fazer por causa de proibições. Vão continuar a consumir ou então retornam ao tabaco tradicional e em última instância recorrerão ao comércio ilegal.

HN – Uma das críticas que se apontam a estes novos produtos de tabaco é a de que eles são mais atrativos para as camadas mais jovens da população. Não consegui encontrar nenhum estudo que o demonstrasse, mas é um dos argumentos mais utilizados…

BM – Eu também não. No Reino Unido, no início da comercialização dos produtos de Vaping (não tabaco), parece que houve um aumento do consumo (de vaping). Mas os dados disponíveis são muito pouco coerentes, de dois ou três anos, pelo que não nos é possível afirmar se se trata mesmo de uma tendência de aumento ou se é só uma “moda”, que é uma coisa que acontece com frequência, sobretudo entre os adolescentes. Dito isto, é evidente que todas as políticas de prevenção devem incidir sobretudo sobre o início do consumo, procurando evitá-lo. Mas como disse, não existem dados que nos permitam afirmar que esse fenómeno esteja a ocorrer. Como também não sabemos se o consumo de vaping é feito com nicotina, já que há vapings sem nicotina, apenas com sabores que as pessoas escolhem. Se fazem bem à saúde, certamente que não, mas o potencial de adição está na nicotina.

HN – Outra questão muitas vezes colocada tem a ver com o controlo sobre os produtos que são utilizados no vaping. Ao contrário do que acontece no tabaco aquecido e com outros produtos que usam cartuchos pré-preenchidos ou pods, selados, contendo e-líquido que é vaporizado pelo dispositivo, no vaping o líquido utilizado pode até ser produzido pelo utilizador. Existem kits para a produção destes líquidos, ao gosto do utilizador.

BM – Em rigor, as autoridades de Saúde Pública podem controlar o que está a ser comercializado. Os produtos que têm autorização de introdução no mercado já foram, em princípio, sujeitos a alguma forma de controlo. As autoridades de saúde têm de assumir esse controlo. Se não o fazem por falta de condições, é outra história… Já quanto à possibilidade de as pessoas fazerem o seu próprio vaping… Também podem fazer os seus próprios cigarros. Esse espaço vai existir sempre.

HN – Como é possível debater estas questões quando até em conferências internacionais, o lóbi antitabagista intervém de forma muito virulenta, com insultos aos especialistas que procuram investigar estas questões, acusando-os de estarem ao serviço das tabaqueiras?

BM – Esse tipo de reação só se pode explicar com muita lavagem cerebral e muito lóbi do antitabagismo. Na verdade, muitas dessas pessoas que estão nas plateias são profissionais de saúde que passam a vida em congressos pagos pelas farmacêuticas. Não critico que o façam, mas então devem ser coerentes e não utilizar “dois pesos e duas medidas”: por um lado criticar as tabaqueiras por pagarem investigação e sessões em congressos e por outro receberem dinheiro das farmacêuticas, que também têm um historial pouco abonatório…

HN – A força do lóbi… Também há lóbi por parte das farmacêuticas?

BM – Não existem dados que nos permitam afirmar isso. Sei que há um lóbi forte do antitabagismo. Que há uma série de instituições públicas que recebem financiamento desse lóbi.

HN – E estão a travar uma batalha…

BM – Sim, mas é uma batalha contra “moinhos de vento”; uma batalha contra aquilo que parece lógico para toda a gente. Dentro de pouco tempo, poderemos vir a perceber que o recurso a estes novos produtos permite alguma redução de riscos. Isto, sem nunca perder a orientação de que a cessação é o objetivo final de toda a gente. Até dos próprios fumadores. Até lá há um caminho a percorrer, que estas pessoas, ou não perceberam, ou se já perceberam têm uma agenda escondida.

HN – Como é que se explica que até os políticos, em Portugal, alinham ao lado do lóbi antitabagista?

BM – As autoridades de saúde, sociedades médicas com peso e as comissões técnicas adotaram este discurso antitabagista de abstinência absoluta, deixando pouca margem para os políticos tomarem decisões contrárias. Podiam ter a coragem política para estudar e contrariar o paradigma antitabagista e o lóbi que o suporta, mas isso é outra história. Ou aparecem outras comissões técnicas que se sobreponham e entrem em conflito – e aí já é possível escolher entre duas posições – ou vai ser difícil.

HN – O problema é que ninguém se quer meter com este lóbi

Ninguém se quer meter ao lado das tabaqueiras. Como também ninguém se quer meter com o lóbi antitabagista. É por isso que é difícil encontrar alguém disposto a falar sobre o assunto. As pessoas têm o receio de que as associem às tabaqueiras.

HN – É de facto muito difícil encontrar especialistas dispostos a falar. Eu senti essa dificuldade. Ninguém se disponibilizou a falar sobre o assunto. A maioria diz mesmo que “não se quer meter nisso”.

BM – Esse é um dos problemas: ninguém se quer meter no assunto “tabaco” com seriedade porque isso implica enfrentar toda uma barreira de gente que assume um discurso fácil que está completamente desadequado mas que tem muita força, por muito hipócrita que seja.

HN – Uma última mensagem….

BM – Que haja bom-senso quando se fala de políticas públicas. Sei que é muito difícil, que não é possível qualquer discussão técnica sensata quando a única coisa que existe em cima da mesa são acusações de corrupção. Não é possível desenhar políticas públicas partindo desta base.

Entrevista: Miguel Múrias Mauritti

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