A pandemia obrigou-nos a todos a adaptar a um “novo normal” – em casa, no trabalho, na vida. Sabendo que boa parte da Hipertensão Arterial (HTA) depende do estilo de vida – nomeadamente da alimentação mais rica em legumes e frutas e pobre em gorduras, da redução do sal, da cessação tabágica, da redução do consumo de álcool, da prática de exercício físico – e obviamente do cumprimento diário da medicação, vigilância dos valores da pressão arterial e seguimento médico regular, logo aqui percebemos que o confinamento consegue provocar profundas alterações em todos estes aspetos.
Mas dependerá de cada um levar estas alterações a melhor ou a pior porto: podemos resignar-nos e comer pior porque estamos aborrecidos, quebrar rotinas porque não as conseguimos manter, fumar mais porque o tempo assim o permite, consumir mais álcool porque achamos que podemos e não fazer exercício porque não podemos ir ao ginásio.
Durante as consultas dos últimos meses consigo aperceber-me que muitos doentes hipertensos que sigo foram capazes de ser melhores:
- de adaptar o exercício ao espaço em casa (por mais pequeno que seja) ou aos passeios higiénicos e ao tempo que conseguiam arranjar entre teletrabalho, filhos ou tarefas domésticas; -de passarem a comer melhor, em especial reduzindo o sal, beber menos e manter a medicação porque viram que resulta;
- de medirem a tensão porque compraram um aparelho na farmácia e os ensinei a medir e a registar da melhor forma;
- de trazerem boas notícias para a consulta, o que significa trazer melhor vida para cada um de si.
Verdade que também o compromisso na saúde mental e o aumento de ansiedade que estes tempos têm trazido são fatores predisponentes a má alimentação e aumento de peso, contribuindo para o mau controlo tensional, mas é necessário contrariar e tentar ser melhor, para ficar melhor.
É um facto que algumas consultas estão menos acessíveis, os médicos estão muito dedicados a questões de Covid mas tudo o resto continua a funcionar, e só depende de cada um fazer o seu esforço para manter estes aspetos a funcionar.
É importante estar atento(a)
A vigilância continua a ser um desafio, dado que neste “novo normal” nós, profissionais de saúde, temos menos oportunidade para avaliar os doentes presencialmente, os contactos telefónicos não são a mesma coisa, muitos dos hipertensos não têm aparelho em casa para avaliar a tensão e as farmácias não estão disponíveis por motivos óbvios (segurança e controlo de infeção). O tempo está consumido com doentes Covid, urgências mais lotadas…mas continuamos a existir, a estar disponíveis, e a prescrição que fazemos é para cumprir, os conselhos que demos antes são para manter e só assim se consegue manter um bom controlo e evitar enfartes e acidentes vasculares cerebrais (AVCs).
Outro problema como já referido é a falta de acesso de muitos utentes a aparelhos para avaliar a pressão arterial (PA): já antes da pandemia o momento da consulta ou as farmácias eram o único local onde a PA era avaliada. Com a restrição de acesso a ambas no confinamento, quer por ausência de atividade quer por receio dos próprios utentes, muita da vigilância ficou impossível de manter. Também a falta de medicação leva a redução do controlo, do diagnóstico, e uso indevido de outros medicamentos em muitas situações, mas isto tem de ser combatido com a procura dos cuidados de saúde em vez de optar pela automedicação ou autodiagnóstico.
Hipertensão, uma doença silenciosa
A hipertensão é uma doença silenciosa. Ou mais concretamente, um assassino silencioso. Causa enfarte e AVC e sendo essas as principais causas de morte em todo o mundo, mesmo em tempos de COVID-19, significa que é o principal fator de risco para a incapacidade e para a morte em todo o mundo. Mas os sinais e sintomas de enfarte, AVC ou insuficiência cardíaca são sobejamente conhecidos pelo público e o medo da pandemia não deve adiar a recorrência à urgência quando estes surgem.
Focando mais um pouco na doença por SARS-CoV-2, alguns estudos relatam que a hipertensão arterial (HTA) pode ser um fator de risco para doença grave por COVID-19. Mas pode ser plausível de interpretar que a elevada prevalência de HTA entre doentes com COVID-19 grave ou fatal pode ser atribuída à vulnerabilidade dos indivíduos mais velhos com doença por coronavírus.
Para além da idade e da obesidade, o facto da HTA ser tão prevalente na população em si vai naturalmente também significar que há mais indivíduos infetados que sejam hipertensos, pelos fatores de risco associados a ambas as doenças. Isto deve chamar-nos a atenção para o impacto que a HTA tem e pode ter na morbilidade e mortalidade global. Foram também levantadas teorias de que a medicação para a HTA poderia de certa forma agravar a doença por Covid-19, visto que uma das proteínas que permite a entrada do vírus nas células está relacionada com um dos mecanismos que causa a HTA, por um lado, e com um dos mecanismos de ação de algumas classes de medicamentos, por outra.
Mas dada a incerteza sobre vários aspetos da sua ação específica e, após se verificar que os hipertensos medicados com este tipo de fármacos tiveram menor taxa de doença crítica e mortalidade e não tinham mais risco de contrair a doença, várias sociedades científicas lançaram documentos defendendo que os medicamentos não deviam ser descontinuados para prevenir doença grave por COVID-19.
Por outro lado, dado que a HTA é um contribuinte major para doença cardiovascular e renal, e dado que esta está associada com maior risco de doença grave por COVID-19, um bom controlo da PA pode contribuir para um melhor prognóstico ao mitigar a progressão destas doenças.
Ainda estamos a aprender como lidar com o vírus mas por enquanto é prudente manter os cuidados dos doentes crónicos, assegurar que os doentes são adequadamente aconselhados e têm acesso à medicação. Os doentes devem estar alerta para o facto de que apesar do confinamento as farmácias estão abertas, os hospitais funcionam, as consultas sejam telefónicas, presenciais ou as que foram adiadas, serão remarcadas e muitos médicos têm algum tipo de acesso disponível.
Os utentes devem continuar a fazer o seu esforço e a colaborar pois nós profissionais de saúde continuamos a fazer o nosso e lá estaremos como sempre quando a pandemia terminar.
Um artigo da médica Vitória Cunha, especialista em Medicina Interna no Hospital Garcia de Orta e Secretária-Geral da Sociedade Portuguesa de Hipertensão (SPH).
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