Luís Pereira, enfermeiro da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos, Lisboa
A COVID-19, essa entidade tão falada nos últimos tempos e com aquele aspeto fofo de bolinha com cornículos, anda a deixar-nos a todos à beira de um enorme ataque de nervos. No maravilhoso mundo da pediatria dizem-nos que não é tão grave, mas que eles lá morrem, morrem, ou então ninguém entenderia toda a preparação que tivemos de fazer até agora… Sim, não foi só no Serviço de Infecciologia que se prepararam para a COVID-19, nós, a Unidade de Cuidados Intensivos também nos preparámos e... Não, não temos só dois ventiladores... Temos pelo menos 10 prontos para a ação... Não acreditem em tudo o que leem nos jornais.
Permitam-me, já agora, abordar a história dos ventiladores… Vamos ter mais 100, 200, 300 ventiladores… Mas quem os opera? O Camões? Onde estão os intensivistas e anestesistas para os programar? E os enfermeiros de intensivos para os operar? Não se formam médicos e enfermeiros de cuidados intensivos de um dia para o outro. Nem nascem de buracos no chão por geração espontânea. Vamos com calma meu povo… Não basta ventilar… É preciso saber ventilar.
Para nós enfermeiros, desde o tempo da Florence Nightingale (vejam no Google quem é) tudo o que envolve o doente é uma preocupação. Desde toda a montagem de uma unidade até à limpeza e desinfeção. É preciso olhar para o mais pequeno pormenor que tenha entrado em contacto com o doente. Parece pacífico, mas é enfermagem na sua plenitude. Problema disto tudo: diariamente a Direção-Geral da Saúde (DGS) emana novas normas e orientações (muitas delas que desorientam mais do que orientam) e que alteram pormenores que se tornam "pormaiores".
Sempre que toca a trompeta castelhana (vai entrar um suspeito, entenda-se) entra tudo em alerta vermelho… Tudo começa a ser operacionalizado de acordo com os procedimentos (nascidos quase todos das nossas necessidades específicas, intensivas e pediátricas)… Começa o veste, veste e veste dos equipamentos de proteção individual e a seguir chega a criança (infelizmente e geralmente mal) que requer a intervenção de, no mínimo, dois enfermeiros de intensivos pediátricos, um intensivista pediátrico, um anestesista e um cirurgião pediátrico.
No meio de toda esta confusão esquecemo-nos que nós próprios. Somos humanos com família, muitos de nós casados com outros profissionais de saúde e com filhos
Um bom par (ou mais) de horas depois - nos quais a criança foi entubada, ventilada, sedada - começa o ritual do despe, despe e despe… Talvez a fase mais importante para evitar a infeção do profissional… Mas não pensem que o trabalho se cinge aos "astronautas" que estiveram/estão no interior do quarto de pressão negativa a intervir na criança… No exterior existem mais dois enfermeiros de intensivos, um deles chefe de equipa, que laboram para que nada falta à equipa no interior e que tem combates hercúleos com o telefone agilizando terapêutica, exames complementares de diagnóstico, hemoderivados e até… Comida e água para os colegas que irão sair completamente desidratados e esfomeados dos quartos de pressão negativa.
Ao fim de todo este tempo alguém se lembra "os pais". Sim, eles também estão em crise e estiveram todo este tempo, pacientemente (geralmente) a aguardar… Um de nós desloca-se à sala de espera e dá-lhes uma breve palavra. Temos de informar, esclarecer, confortar e… Chorar por vezes.
No meio de toda esta confusão esquecemo-nos que nós próprios. Somos humanos com família, muitos de nós casados com outros profissionais de saúde e com filhos… Tem sido de particular dificuldade toda a gestão familiar. Fazemos turnos também em casa, revezando-nos nos cuidados aos filhos.
Nós, enfermeiros e restantes profissionais de saúde, lutamos pela criança doente e no final do dia lutamos pelo colega que está ao nosso lado. Porque esta é, com todos os seus defeitos e virtudes, a nossa segunda família.
Inês Gonçalves, enfermeira no Serviço de Urgência, Lisboa
Quando começou, ninguém estava verdadeiramente a prestar atenção. Nós (enfermeiros) estamos habituados a ver “de tudo” e a trabalhar em condições que as pessoas “normais” nem sonham. Portanto, isto seria apenas mais uma onda de alarmismo e nós iríamos lidar com isso, como qualquer outra situação no passado. Seria mais um “inverno” no serviço de urgência. Só quando vi as imagens de Itália dentro dos hospitais, os profissionais de saúde exaustos, infetados, os corpos a serem transportados por camiões do exército, é que caí em mim.
O que mais mudou foi a carga emocional: o fardo que carregamos todos os dias, esse, aumentou
Desde então, a afluência à urgência reduziu como nunca vi. Só quem realmente precisa é que recorre ao serviço, muitos até adiam até já ser tarde demais. Por outro lado, foram criados novos espaços em poucas horas para conter o vírus, proteger as pessoas e os profissionais.
O que mais mudou foi a carga emocional: o fardo que carregamos todos os dias, esse, aumentou. O sentimento de raiva, impotência, tristeza, está presente constantemente. É uma angústia enorme saber que estamos a trabalhar na linha da frente, e ao mesmo tempo, achar que era possível fazer mais.
Paro de beber água uma hora antes de ir trabalhar, sei que não vou poder ir à casa de banho durante as próximas horas. Tento comer o mais que consigo antes de trabalhar. Não sei quantas horas vou passar até à próxima refeição. Tentamos poupar o material que temos, por isso só podemos usar no máximo dois equipamentos por turno. São esses mesmos equipamentos de proteção individual que nos sufocam a pele e nos fazem reter o dióxido de carbono e nos lentificam a ação. Só 24 passos e algumas horas depois, podemos retirar o equipamento. Dizem-nos que vivemos tempos de guerra e que temos de fazer esse sacrifício.
O medo impera a maioria das horas infindáveis do turno e depois dele, mas vamos-nos agarrando às pequenas vitórias do dia à dia para enfrentar cada dia, um de cada vez.
No final, regresso a casa sempre com um grande nó no peito e a pensar: será que me desinfetei corretamente, será que falhei nalgum sítio, será que vesti o equipamento corretamente, será que toquei em alguma coisa que não devia, será que estou infetada e pior, se infetei alguém? Só quero mesmo que fiquemos todos bem.
Rita Martins, enfermeira do Serviço de Urgência, Lisboa
O dia a dia de quem trabalha em ambiente hospitalar mudou bastante nestes tempos que vivemos. Têm sido dias de adaptação a uma nova realidade que exige novas rotinas e precauções adicionais nos cuidados às crianças e famílias que procuram a nossa ajuda.
Como enfermeira, creio que aquilo que tenho sentido é transversal a todos os profissionais de saúde: queremos continuar a prestar os melhores cuidados aos utentes apesar do receio de ficarmos infetados e consequentemente infetar outros doentes e obviamente as nossas famílias e amigos.
Sinto-me motivada para continuar a dar o meu melhor, esperando, no entanto, que esta fase passe depressa e que dela retiremos conclusões
A rotina mudou no trabalho e fora dele, a saudade de estar com os pais e com os amigos não tem sido fácil. Psicologicamente tem sido exigente e fisicamente também tem sido duro. Turnos mais longos com equipamentos de proteção, que protegem mas também dificultam as nossas ações, deixam-nos exaustos ao final da jornada de trabalho, mas somos equipas unidas o que ajuda a atravessar esta fase.
Felizmente adoro o que faço e ser enfermeira de pediatria é o que sempre quis fazer. Sinto-me motivada para continuar a dar o meu melhor, esperando, no entanto, que esta fase passe depressa e que dela retiremos conclusões que nos possam ajudar a melhorar enquanto sociedade.
Cátia Montinho, enfermeira numa Unidade de Cuidados Intensivos do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido
O meu nome é Cátia Montinho, tenho 31 anos, e sou enfermeira há oito anos. Emigrei para o Reino Unido, em 2013, para trabalhar como enfermeira e trabalho numa Unidade de Cuidados Intensivos há quatro anos e meio.
Este ano tem sido particularmente desafiante a nível profissional devido à pandemia que estamos a viver. Vou contar a minha experiência, em relação ao hospital em que trabalho.
O Reino Unido ainda não atingiu o pico da pandemia e o hospital onde trabalho já começa a ficar saturado. Quando ainda não havia medidas do governo, no meu serviço já se discutiam futuros planos para lidar com a situação caso se tornasse igual ao que se vive em Itália. Todos os dias tínhamos reuniões de equipa no início de cada turno para discutir os planos, que todos os dias aumentavam de complexidade. Começaram por cancelar todas as cirurgias eletivas e não emergentes e por fechar alguns blocos operatórios, para se tornarem possíveis quartos para receber doentes com COVID-19.
O rácio recomendado de enfermeiro por doente de cuidados intensivos é 1:1 e neste momento estamos com um rácio de 1:3 ou 1:4, tendo-nos sido explicado que existe a possibilidade de chegarmos a um rácio de 1:6
Um dos hospitais locais que se destina apenas a cirurgias eletivas e que não tem serviço de Cuidados Intensivos fechou o bloco operatório e os ventiladores foram reencaminhados para o hospital onde trabalho, com objetivo de aumentar a capacidade de cada bloco operatório para ter três ventiladores cada.
O serviço de cuidados intensivos do hospital onde trabalho tem 10 camas com 10 ventiladores. Neste momento as 10 camas estão ocupadas com doentes diagnosticados com COVID-19, todos ligados ao ventilador. Cinco dos seis blocos operatórios destinados a quartos de isolamento para doentes COVID-19 já estão ocupados com três doentes cada. O rácio recomendado de enfermeiro por doente de cuidados intensivos é 1:1 e neste momento estamos com um rácio de 1:3 ou 1:4, tendo-nos sido explicado que existe a possibilidade de chegarmos a um rácio de 1:6.
Os enfermeiros de cuidados intensivos estão a ser apoiados pelos enfermeiros do bloco operatório, mas não tendo estes últimos experiência em cuidados intensivos, torna-se desafiante, numa situação stressante como esta, estar a explicar e ensinar ao mesmo tempo os cuidados a ter com estes doentes. É uma responsabilidade acrescida, sendo que estes doentes são muito instáveis.
Em relação ao material de proteção, sinto que tem havido uma evolução tanto no meu serviço como no resto do hospital, que segue as indicações do "Public Health England" e que se baseia nas indicações da Organização Mundial de Saúde (OMS). No serviço onde trabalho seguimos as indicações que nos são requeridas e usamos bata cirúrgica, proteção para sapatos, touca cirúrgica, máscara e viseira.
Temos tido muita oferta de fatos de proteção de corpo inteiro de pessoas fora do hospital e por agora temos usado esses fatos também.
Tiago Salgadinho, enfermeiro da Unidade de Cuidados Intensivos, Lisboa
Do nada, um vírus surge em território chinês, com pouca probabilidade de atingir solo português, mas que em semanas nos deixa em alerta, ao abalar uma Itália tão próxima de nós e que ultrapassa todos os limites do nosso país vizinho. Março, o mês que muda a história de todos nós, o mês em que todos os profissionais de saúde são chamados a cancelar férias, como eu que as teria nesta mesma semana, a alterar horários, encontrar alternativas, discutir soluções e a deixar mais uma vez de lado a família.
Ser profissional de saúde é diariamente um teste, tanto às nossas capacidades pessoais e de resiliência, como à daqueles que connosco partilham o dia a dia, a casa e a vida, porque sabem que nada é garantido. Não saber muito bem o que é ter um fim de semana, não estarmos presentes nos aniversários, no Natal ou em outros momentos cruciais dos nossos, também já estávamos nós resignados, até 2020. Chega assim, aquele que é declarado como o Ano Internacional do Enfermeiro, ano esse que nos decide mostrar que foi escolhido a dedo para nos testar até ao limite das nossas capacidades.
Uma guerra cujo inimigo é invisível, silencioso, inteligente, manipulador e que destrói tudo por onde passa
Trabalhar numa Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos é, por si só, um desafio diário. Lidar com crianças em risco de vida e com os seus pais é tão duro, que muitas vezes, nós mesmos, nos questionamos de onde vêm as forças para enfrentar tal batalha. Hoje, a diferença é que todos os doentes que entram pela nossa porta são possíveis doentes com COVID-19 e isso acresce à nossa luta um esforço elevado de horas seguidas com o mesmo equipamento de proteção e uma dúvida quanto ao regresso às nossas casas no momento em que o resultado do teste vier positivo.
A nós, enfermeiros, é pedido que neste momento possamos deixar tudo, absolutamente tudo para trás, dar o que temos e o que não temos: a força, o amor, a coragem, literalmente dar o corpo às balas, numa guerra cujo inimigo é invisível, silencioso, inteligente, manipulador e que destrói tudo por onde passa. Este adversário só pode ser vencido por nós, se ficarem em casa, reduzindo ao máximo a capacidade de propagação deste vírus, que nos consome um pouco mais a cada dia. Esta é a verdade!
Enquanto enfermeiro, neste 2020 tão duro para todos, mas principalmente para aqueles que, como eu, estão na linha da frente desta luta, desejo que cada dia sem as nossas famílias, cada momento de dor, cada segundo de ansiedade, cada marca no corpo, cada gota de suor e cada lágrima não se reflitam em palmas, ou reconhecimento, mas sim em cada vida salva e recuperada deste inimigo.
Sobre as nossas condições de trabalho, riscos e direitos, haverá tempo para discutir… Mas agora, por favor, não desistam.
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Este artigo foi publicado originalmente a 7 de abril, no Dia Mundial da Saúde.
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