Mais de 100 milhões de análises clínicas realizadas, 14 milhões de utentes atendidos e mais de metade desses cuidados prestados ao abrigo do SNS. Esta é a dimensão do trabalho assegurado pelos laboratórios clínicos privados convencionados em Portugal. E, no entanto, nunca o seu papel foi tão ignorado, o seu contributo tão desvalorizado e a sua sustentabilidade tão ameaçada como agora.
As alterações introduzidas recentemente ao regime de licenciamento das unidades de saúde podem parecer, à primeira vista, um simples ajuste técnico. Mas para quem está no terreno, o impacto destas portarias é real, profundo e, sobretudo, perigoso para a continuidade dos cuidados de saúde prestados em proximidade a milhões de portugueses.
A ausência de auscultação institucional, o carácter desproporcional das novas exigências e a fragilidade dos mecanismos administrativos de implementação deixam claro que este processo não foi pensado para a realidade das unidades de base ambulatória.
Tendo por base a realidade dos laboratórios convencionados, mais de 78% têm menos de 10 colaboradores, muitas delas fora dos grandes centros urbanos. Nas restantes áreas, a realidade não será distinta. Exigir a estas estruturas permanentes alterações, realizando obras estruturais, reconfigurações físicas e cumprir requisitos técnicos desajustados da sua realidade é comprometer, silenciosamente, o acesso aos cuidados essenciais. E mais grave – é ignorar o papel que os convencionados desempenham na cobertura do SNS, especialmente em zonas onde o Estado não chega.
Mas este é apenas o rosto visível de um problema mais profundo. Enquanto se impõem novas regras, o essencial continua por resolver. A tabela de atos convencionados permanece desatualizada há mais de uma década. Exames essenciais continuam sem cobertura pública. Em 2024, os laboratórios associados da ANL realizaram mais de 101 milhões de atos, dos quais 54 milhões ao abrigo do SNS. E ainda assim, o número médio de atos por utente do SNS foi inferior ao de qualquer outro subsistema: 7,2 no SNS, contra 11,6 nos subsistemas e 10,1 nos seguros. Isto não é eficiência – é subfinanciamento disfarçado de rigor, empurrando os cidadãos para o pagamento direto.
Além disso, desde a criação das ULS, os laboratórios enfrentam um labirinto contratual sem saída. Em vez de um interlocutor único e eficaz, passaram a faturar e relacionar-se com dezenas de entidades distintas, com atrasos injustificáveis, interpretações díspares e uma burocracia que parece feita para não funcionar. Em abril deste ano, foi necessário desencadear um procedimento extraordinário para pagamento de atos realizados há mais de 18 meses. Um setor que garante quase 55% dos atos de diagnóstico do SNS não pode continuar a ser tratado como invisível no circuito orçamental e contratual.
Também a falta de resposta administrativa se tornou regra. Atrasos sucessivos na inclusão de novos atos — como no caso do Peptídeo Natriurético, autorizado em outubro de 2024, mas só operacionalizado em maio de 2025 — comprometem o acesso a exames essenciais, prejudicando diretamente os utentes e sem qualquer responsabilização institucional.
Os dados não mentem: 78% das empresas consideram muito elevado o impacto do preço dos atos convencionados na sua viabilidade económica. A maioria aponta entraves administrativos severos à gestão das convenções. E, ainda assim, 67% das empresas mantêm uma expectativa de evolução positiva da atividade. Este otimismo não nasce da complacência, mas da convicção de que o setor pode — e deve — fazer parte da solução para os desafios do SNS.
É tempo de reconhecer a urgência de rever o regime de licenciamento, de simplificar os processos, de modernizar a regulação, de atualizar tabelas de atos e de preços administrativos, fixados unilateralmente pelo Estado e não revistos há décadas, e de devolver racionalidade a um sistema que hoje mais atrapalha do que ajuda. É tempo de se deixar de asfixiar as empresas do setor e de, com isso, de se deixar de prejudicar os seus trabalhadores. O setor laboratorial privado não pede favores. Pede condições normais para continuar a garantir qualidade, acessibilidade e cobertura universal. E pede, sobretudo, que se deixem cair os muros — normativos, administrativos e financeiros — que se vão erguendo entre os portugueses e o diagnóstico de que necessitam.
Os laboratórios privados e convencionados não pedem privilégios. Pedem bom senso. E, neste momento, isso faz toda a diferença.
Laboratórios em risco: o sistema que sufoca quem garante o diagnóstico de 14 milhões de Utentes
Nuno Marques. Diretor-Geral da Associação Nacional dos Laboratórios Clínicos (ANL)
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