As previsões mais recentes estimam que em 2035 mais de 50% das pessoas em todo mundo viverão com excesso de peso. Entre 2020 e 2035 o número de crianças com obesidade duplicará. E em Portugal 39% das pessoas terão obesidade. Estes números não deixam dúvidas: será uma doença com a qual todos teremos de lidar. Um desafio que será não só de saúde pública, mas de toda a sociedade.
No entanto, em pleno século XXI, confrontamo-nos com outro desafio social que se cruza com a obesidade: o preconceito. Porque apesar de no papel a obesidade ser reconhecida como uma doença crónica, continuamos a não tratá-la como doença naquilo que o termo pressupõe. E continuamos nós, profissionais de saúde, nós, cidadãos, e nós, estado social, a olhar para os “culpados”. Mas a ciência é irrefutável nos factos.
A obesidade é uma doença complexa. E é esta complexidade que a tem tornado mal compreendida. É fácil entender que a exposição a um ambiente “obesogénico” é um fator chave. Em poucas décadas, a oferta de alimentos hipercalóricos, ultraprocessados e ricos em açúcar, sal e gordura tornou-se abundante, facilmente disponível e altamente publicitada. O estilo de vida de um cidadão moderno é maioritariamente sedentário, e a isto juntam-se o stress, os horários laborais, o sono insuficiente, a exposição aos ecrãs, as desigualdades socioeconómicas, etc. O que ainda é pouco compreendido, e a ciência tem desvendado, é o facto de este ambiente desfavorável ter colidido com uma biologia reguladora do apetite que funciona “contra nós”. Ou seja, este ambiente favorece a ativação de fenómenos biológicos que aumentam o apetite e desregulam a homeostasia do peso das pessoas geneticamente suscetíveis. Assim, a suscetibilidade à obesidade é fortemente hereditária e a sua expressão é amplificada pelo ambiente, por fatores hormonais, pela exposição a fármacos e por fatores psicológicos. O resultado é uma doença que “calhou” a quem noutro ambiente não a teria. Portanto, o facto de haver pessoas que não desenvolvem excesso de peso não quer dizer que tenham necessariamente hábitos saudáveis. Nem que aquelas com excesso de peso “comem muito” e se “mexem pouco”. Estas vivem, frequentemente, em luta contra a sua biologia num ambiente altamente desfavorável.
Bastaria o impacto que a obesidade tem na saúde, pelas mais de 200 doenças que pode originar, entre as quais doenças metabólicas, mecânicas e mentais. Mas há, ainda, um peso extra além dos quilos: o peso da culpa. A culpa que é sentida pelo próprio, e é gerada por todos nós. Porque ainda se fala em ”gordos” de forma desrespeitosa e ainda se olha para alguém com peso a mais como se se tratasse de uma escolha de quem não quer “fazer um esforço” para ser saudável. É um estigma tão enraizado que o vamos encontrar com naturalidade em entrevistas de trabalho, lojas de roupa, na fila do almoço, na carruagem do metro e até entre homens da ciência, em consultas médicas. E assim agravamos a doença. Agravamo-la pelo impacto na saúde mental da pessoa e pelas portas que se fecham devido à discriminação, incluindo a do médico.
Mas a ciência explica as razões da doença e convida-nos a abrirmos as portas da empatia. A obesidade irá afetar a maioria das famílias do mundo. Concerne, portanto, a todos nós, cidadãos, saber tratar com respeito e apoiar. Concerne, a todos nós, profissionais de saúde, oferecer o tratamento adequado. Concerne a todos nós, estado social, pôr em marcha mudanças radicais no ambiente em que vivemos e garantir equidade de acesso às terapêuticas existentes para quem tem a doença.
Um artigo da médica endocrinologista Carolina Neves, adjunta da Direção Clínica da APDP e diretora clínica da clínica Qorpo.
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