Num país de contrastes agudos, onde a esperança e o desespero muitas vezes dançam em par, a formação médica em Portugal exemplifica esta realidade com uma clareza cristalina. No cerne deste sistema, encontramos os internos – jovens médicos que são, indubitavelmente, dos melhores profissionais que este país tem para oferecer. Mas, desde cedo, não são tratados como promessas de futuro. São, em vez disso, ativos descartáveis de um sistema que os molda à custa da sua própria dignidade.A Ordem dos Médicos, a entidade que deveria ser a sua voz e proteção, parece ausente. Num estudo recente, mais de 90% dos médicos acreditam que a Ordem deveria ter um papel mais ativo na monitorização da formação médica, mas a realidade é que esta monitorização não acontece com a transparência necessária. Mais do que dar voz e protecção, a Ordem dos Médicos é a principal responsável pela formação pós-graduada em todas as suas vertentes: desenho dos programas de formação, avaliação e certificação dos serviços responsáveis pela formação. A habilitação formativa. deveria ser precedida de uma certificação assistencial com obrigatoriedade de cumprimento de objetivos assistenciais definidos para o funcionamento de um serviço clínico, através de indicadores que permitissem ter uma visão 360º – produção quantitativa e qualitativa, opinião de profissionais, ratios médico/doente padrão adequado, avaliação dos doentes. A liderança do serviço devia ser exercida por um profissional qualificado inter-pares, referência no ãmbito da especialidade.
Em resumo, antes da fiscalização e da monitorização de aspetos relacionados com a formação, deviam estar salvaguardados aspetos relacionados com o desempenho assistencial, sem os quais qualquer internato não funcionará. Esta é uma obrigação da OM. Sem fiscalização, o internato médico torna-se uma terra de ninguém. Em especialidades cirúrgicas e de grande prestígio, o que deveria ser um percurso de aprendizagem torna-se um campo de batalha onde se exige subserviência para progredir.
A liderança de um serviço clínico não devia ser um jogo de cadeiras políticas, mas um cargo de exigência técnica, ocupado por pares que sejam referência na especialidade. E a avaliação dessas lideranças, anónima, abrangente e periódica, deveria ser um dever incontornável da Ordem, envolvendo todos os profissionais, internos incluídos – um verdadeiro 360 graus. Sem isso, todo o sistema continua a funcionar à margem daquilo que se exige de uma profissão que se quer rigorosa, séria e, acima de tudo, digna.
O assédio moral, esse, está entranhado no sistema. Em um questionário com mais de 250 respostas, 83% dos médicos acreditam que o assédio laboral na profissão é um problema sério que precisa de regulamentação, mas as denúncias continuam a ser feitas em sussurros, longe dos canais formais. O assédio não pode ser regulamentado! Não pode é existir!. Devem acontecer inquéritos sistemáticos, anónimos e investigações simples. Normalmente não dão em nada devido a uma “solidadriedade” inter-pares com a conivência das entidades reguladoras (normalmente os colégios de especialidade e os conselhos disciplinares) envolvidos numa lógica corporativa da qual não alcançam o prejuízo. Na avaliação de um processo de inquérito por assédio devem estar incluídos internos de instituições e de especialidades diferentes daquelas que estão em questão.São fundamentais as auditorias sistemáticas e não simplesmente reativas. As avaliações dos serviços devem ser publicitadas com os critérios especificados. Isto é válido, quer para a atividade assistencial, quer para aformação.
Mas a exploração não fica por aqui. Invoca-se frequentemente a nobre missão de salvar vidas como escudo contra qualquer crítica, colocando os médicos num dilema moral quase insuperável. O que fazem quando o hospital exige horas extra não pagas? Quando são obrigados a trabalhar em condições indignas? Quando os seus turnos ultrapassam o aceitável e a fadiga se torna um risco para os próprios doentes? Cumprimento de horários e auditoria da Ordem sobre sobrecarga horária são as principais medidas defendidas pelos médicos para melhorar a qualidade de vida dos internos, mas a resposta do sistema continua a ser o silêncio.
E falemos de salários – ou da falta deles. Muitos internos vivem numa espécie de servidão moderna, aprisionados entre o dever ético e a sobrevivência pessoal. O ordenado, muitas vezes, mal cobre as despesas básicas, e em cidades como Lisboa e Porto, são os pais destes jovens médicos que subsidiam, na prática, o seu internato. A hipocrisia atinge o auge quando se espera que estes mesmos médicos, que mal conseguem pagar as contas, financiem do próprio bolso a divulgação das suas descobertas científicas. Pagam para publicar em revistas, pagam para inscrever-se em congressos, pagam para viajar e apresentar os seus trabalhos.
O que se espera de um país que trata os seus médicos assim? Espera-se que fiquem? Que aceitem de cabeça baixa? O problema não é novo, mas agrava-se a cada ano que passa.
As instituições e os serviços de formação deviam ser obrigadas aquando da abertura de concursos a disponibilizarem o tempo protegido para investigação (com objetivos previstos) e a disponibilizarem bolsas de financiamento desta atividade; com estas condições podiam ser fixados objetivos obrigatórios a cumprir durante o intenato.
O Caminho para a Mudança
A reforma do internato médico não pode ser tímida. Não pode ser feita em pequenos ajustes burocráticos ou em promessas vãs de “melhoria contínua”. É preciso uma mudança estrutural, profunda e corajosa.
Para começar, é essencial criar um canal de denúncias anónimas robusto, eficiente e verdadeiramente confidencial, onde os internos possam reportar abusos sem medo de represálias. Criação de um gabinete/canal na dependência do internato médico, com profissionais dedicados e independentes dos serviços de origem, para a investigação dos processos. Publicitação anual do número de infrações por serviço, devidamente anonimizadas e que devia (tal como a taxade reclamações) constar do relatório de atividades anual das instituições. O medo do silêncio deve ser substituído pela segurança da justiça.
A avaliação do internato médico precisa de ser bilateral e rigorosa. O interno deve ter a oportunidade de avaliar o seu local de formação com a mesma seriedade com que é avaliado. Além disso, o presidente do colégio de especialidade não pode acumular funções como diretor de um serviço com internato. Sem separação de poderes, não há credibilidade.
A monitorização dos locais de internato deve ser ativa e contínua, com dados reais, anuais e públicos sobre a formação e o ambiente de trabalho, em vez de depender apenas de denúncias. Se queremos um internato transparente, temos que torná-lo escrutinável.
As tabelas de avaliação devem ser reformuladas com base nos melhores exemplos europeus, focando-se não apenas na componente técnica, mas também nas competências de comunicação e gestão de doentes. Um interno não deve ser apenas um executor, mas um profissional completo, capaz de lidar com o ser humano por inteiro.
Além disso, a investigação médica deve ser incentivada e apoiada. Os médicos em formação não podem continuar a pagar do próprio bolso para produzir conhecimento. O Ministério da Saúde e a Ordem dos Médicos devem criar eventos científicos próprios, acessíveis financeiramente e com suporte logístico adequado.
Por fim, é urgente uma reforma do modelo de trabalho médico em Portugal. Dois terços dos médicos concordam que um subsídio de exclusividade opcional seria uma boa solução. A ideia de que um médico pode dedicar-se exclusivamente ao SNS, sem precisar de fazer horas extra em hospitais privados para ter um salário digno, não devia ser um sonho distante – devia ser o mínimo aceitável.
Se nada mudar, a pergunta que devemos fazer não é se os médicos vão continuar a sair do SNS, mas quando deixarão de olhar para trás. Como dizia um colega num comentário numa rede social é importante que se arranjem argumentos para fazer regressar os que saíram, mas, mais dificil, motivar os que ainda estão.
E nesse dia, quando os corredores dos hospitais estiverem vazios e os doentes esperarem ainda mais por uma consulta, talvez seja tarde demais para perceber o óbvio.
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