A leviandade com que se encara e se fala da morte, tira-lhe importância. Falamos da morte, não como fim de vida, mas como parte integrante e tiramos-lhe poder. Desconstruímos vivências, desvirtuamos a vida e retiramos a importância da pessoa. Encaramos tudo como uma fatalidade, encolhemos os ombros, enrugamos a testa e prosseguimos a vida, porque esta nunca parou para ajudar ninguém.
Vivemos uma cultura de desperdício numa época de esquecimento. Existem crianças abandonadas, jovens abandonados pela ausência de emprego e idosos abandonados com o pretexto de manter um sistema económico equilibrado. Deixámos de colocar a pessoa no centro em detrimento do dinheiro, desvalorizando-a enquanto ser humano em prol do poder económico, o que nos torna, indubitavelmente, num povo sem memória.
Porque ninguém me tira da cabeça que, quando as pessoas realmente acordarem, os líderes vão forçosamente perder o sono. É que não fazer nada engloba-nos no leque de quem nada fez
A desgraça, directa ou indirectamente, atrai o lucro. Não tivesse o caso de violência doméstica automaticamente circunscrito o caso Face Oculta, a problemática do Bairro da Jamaica ou os 157 mortos e os 182 desaparecidos na sequência da ruptura da barragem em Brumadinho. Ciclicamente os holofotes viram-se para outra polémica, procuram-se novos culpados e prossegue o show da vida que tanto criticamos e em que tão bem nos inserimos. Se hoje o desaire faz capa de jornal, amanhã a sua resolução é inserida nas páginas do meio, em letra pequena, com importâncias antípodas. Abanamos a cabeça, arriscamos três frases gerais para o ar, continuamos a folhear o jornal e aumentamos o nosso índice de popularidade no café da região.
Não investir na prevenção e em soluções não faz mal. A curto prazo, poucas são as coisas que realmente o fazem. A longo prazo, a conversa muda de tom. A Lara foi a décima vítima de violência doméstica este ano apesar de, em 2017, a mãe ter feito queixa, acabando por desistir da mesma. Como tantas. Como se tivesse passado. Como se o perigo fosse uma miragem. Como se as coisas tivessem mudado. Como se as pessoas mudassem. Nada é prioritário e acredita-se na sorte, como se não fosse um problema nosso e esta nos salvasse. A ética que tanto apregoamos e defendemos é a mesma que nos mata. Se tivermos em conta que estamos a falar de vidas que se perderam, isto mancha de vermelho sangue as mãos de qualquer governante.
Se poucas são as coisas que nos despertam a mente, que o erro da morte contribua para isso. Porque ninguém me tira da cabeça que, quando as pessoas realmente acordarem, os líderes vão forçosamente perder o sono. É que não fazer nada engloba-nos no leque de quem nada fez.
A diferença entre hoje e amanhã é que hoje continuamos a falar no desleixo, na problemática da violência doméstica e na falha do sistema que nos devia proteger
Entre hoje e amanhã, separa-nos o tempo. A distância temporal é tantas vezes nossa aliada como a nossa maior inimiga.
A diferença entre hoje e amanhã é que hoje continuamos a falar no desleixo, na problemática da violência doméstica e na falha do sistema que nos devia proteger. Amanhã falaremos no desleixo, na problemática da morte por violência doméstica e na falha do sistema que nos devia ter protegido.
A semelhança entre hoje e amanhã é que nada vai mudar, a não ser a vida de quem partiu e as cicatrizes de quem por cá ficou.
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