Queria que soubessem por mim: rapei o pelo todo do meu cão em pleno pico do Inverno. Já foi há uns anos, é certo, pelo que o crime já prescreveu. Coloquei-lhe a malga, a comida, a cama e o saco com o pelo rapado no contentor mais próximo. Disse-lhe, com o jornal enrolado, que só entrava em casa com o que conseguisse ir buscar a esse lixo específico, tudo o resto ficava à porta. Filmei tudo e coloquei no Youtube, num canal chamado "começar do zero: uma vida de cão".
A ideia era simples: ele tinha de perceber o que era começar do nada. Porquê? Nem sei bem, porque no fundo ele é um cão e os ensinamentos que leva para a vida, tirando o de dar a pata, fazer as necessidades fora de casa e trazer um pau seco quando o mando para longe, de pouco servem.
Se o Costa fizesse as contas a meia hora por dia a lamber o escroto, rapidamente perceberia que, por semana, são 210 minutos a produzir baba.
A primeira meia hora passou-a bem. Talvez tenha ajudado o facto dos cães poderem lamber os testículos, o que ajuda a combater a monotonia. Enquanto filmava a deprimente cena, para colocar no Youtube e alimentar o meu ego com visualizações, likes e partilhas, pensei naquilo que o governo poderia lucrar se fosse o meu cão a ir à loja do cidadão tratar de burocracias. Não é que as coisas passassem a funcionar mais rápido, não. Mas a capacidade de lamber a genitália durante meia hora, torna o tempo relativo e faz com que os serviços aparentem funcionar mais depressa, porque os primeiros trinta minutos estão ganhos. Se o Costa fizesse as contas a meia hora por dia a lamber o escroto, rapidamente perceberia que, por semana, são 210 minutos a produzir baba. Tendo em conta que um ano tem 52 semanas e 1 dia e os bissextos 52 semanas e 2 dias, daria a módica quantia de 10950 minutos (10980 em anos bissextos, para sermos mais precisos). São quase oito dias por ano que o estado nos tem sem atenção nenhuma, só a contemplar o abono. É tempo mais do que suficiente para colocar mais familiares no governo e orientar a vida.
Na segunda meia hora já o senti irrequieto. Saiu de casa em direcção ao contentor enquanto tremia de frio. Pensei que trouxesse a cama para se aquecer, mas não. Aprendi que os cães têm sempre fome, por muito frio que sintam, e comeu a ração de dois dias. Foi a marcar território e veio a fazer o mesmo. Se o Costa sabe disto, mete o país a urinar por Espanha adentro e em meio ano Madrid é nossa. Ficamos com o Real a jogar em Portugal, mas nos distritais, porque há que aprender a começar do zero.
Até o meu cão percebe que ir para a televisão tirar a roupa com o intuito de perceber que a vida é difícil, é só estúpido
No final desse dia, tinha o meu cão doente. Mas achava-o mesmo muito feliz e com a sensação de que ele sentia que tinha tido uma experiência de vida incrível e que o tinha feito crescer muito enquanto cão. Ainda assim, acabei por optar por ensiná-lo educando-o, sem o expor ao ridículo.
É que o país quer-se distraído. Seja por meia hora por dia a salivar a genitália, seja por se mascarar um programa de benfeitor, vendendo a ideia da importância da desmaterialização da sociedade quando, no fundo, se sabe que a nudez sempre deu audiências. Até o meu cão percebe que ir para a televisão tirar a roupa com o intuito de perceber que a vida é difícil, é só estúpido. Para isso, basta tentar ter as contas em dia.
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