A ética das representações legais, incapacidades, autonomia relacional e decisões substitutivas.
O dilema da decisão em nome do outro
Numa enfermaria, um médico é confrontado com a seguinte pergunta de um familiar: “Doutor, agora que o meu pai já não consegue decidir, somos nós que temos de escolher por ele, certo?” A questão traduz uma situação frequente, quando o doente perde a capacidade/competência de tomar decisões, quem tem legitimidade para decidir no seu nome?
O dilema cruza três dimensões: a lei, a ética e a prática clínica. É precisamente na articulação destas esferas que emergem mal-entendidos, sobretudo quando se confundem papéis — o da família, o dos profissionais de saúde e o do enquadramento legal.
Capacidade, competência e autonomia relacional
A primeira distinção necessária é entre capacidade e competência.
- Capacidade é um conceito jurídico: corresponde à aptidão legal de um indivíduo para exercer direitos e deveres, incluindo consentir ou recusar atos médicos. A capacidade é presumida em todos os adultos, só podendo ser limitada por decisão judicial.
- Competência é um conceito médico: traduz a aptidão clínica do doente para compreender informação, avaliar riscos e benefícios, ponderar opções e comunicar uma decisão consistente. A competência pode variar ao longo do tempo e consoante o contexto clínico (um doente pode estar competente para consentir numa transfusão, mas não para avaliar a complexidade de uma cirurgia cardíaca).
A distinção é essencial: o médico avalia competência; o tribunal declara capacidade. Porém, na prática, os dois planos interagem: a avaliação médica da competência informa o processo de decisão clínica e pode, em certas situações, abrir caminho a processos legais de restrição da capacidade.
A este nível, importa recordar que a autonomia nunca é absoluta. A bioética contemporânea tem insistido no conceito de autonomia relacional: cada decisão é sempre situada, enraizada em vínculos familiares, sociais e culturais. Mesmo quando a competência clínica se perde, a dignidade e a vontade presumida do doente continuam a ser referência para as escolhas.
O quadro legal em Portugal
Em Portugal, a lei prevê diferentes instrumentos para proteger os doentes em situação de incapacidade.
- Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) / Testamento Vital Criadas pela Lei n.º 25/2012, permitem que um cidadão, estando capaz, exprima antecipadamente as suas opções sobre cuidados de saúde em caso de futura incapacidade. Têm força vinculativa e devem ser respeitadas pelos profissionais de saúde.
- Procurador de Cuidados de Saúde Também previsto na mesma lei, é a pessoa designada pelo doente para tomar decisões em seu nome, caso este perca capacidade de decisão. Esta é a figura mais robusta de representação legal em contexto clínico.
- Maior Acompanhado A Lei n.º 49/2018 veio substituir as figuras de interdição e inabilitação pelo regime do maior acompanhado. Mediante decisão judicial, um acompanhante pode apoiar a pessoa em diferentes áreas, incluindo a saúde. O tribunal define o grau de intervenção do acompanhante, assegurando que não há uma substituição genérica da pessoa, mas uma proteção proporcional às suas necessidades.
- Ausência de instrumentos formais A realidade mostra que a maioria dos cidadãos não possui DAV nem procurador designado. Nestes casos, a decisão recai frequentemente sobre os médicos, em diálogo com a família. Porém, a família não possui automaticamente estatuto de representante legal.
O papel da família: escuta sem usurpação
A família é parte indispensável da narrativa do doente. São os familiares que conhecem a sua história, valores, preferências e medos. A sua voz é crucial para reconstruir a vontade presumida do paciente.
Contudo, ser escutado não equivale a ser representante legal. A lei portuguesa não confere aos familiares um poder automático de decisão clínica, salvo nos casos em que foram nomeados como procuradores ou designados como acompanhantes pelo tribunal.
Há aqui riscos éticos significativos:
- Projeção de vontades — familiares podem exprimir o que eles próprios fariam, e não necessariamente o que o doente teria escolhido.
- Conflitos intrafamiliares — diferentes membros podem discordar, colocando os médicos no centro de disputas.
- Simplificação perigosa — transformar a decisão clínica numa “votação familiar” desvirtua a dignidade do doente.
Assim, o papel da família é o de testemunha qualificada, não o de decisor automático.
Decisões substitutivas e prudência ética
Quando não existe testamento vital, procurador ou decisão judicial, os profissionais de saúde enfrentam um dilema: como decidir por alguém que perdeu a competência clínica?
Dois critérios devem guiar estas situações:
- Vontade presumida: reconstruir, através da família e da história de vida, aquilo que o doente teria decidido se pudesse exprimir-se.
- Melhor interesse: quando não é possível inferir a vontade, procurar a opção que melhor protege a dignidade, a saúde e a integridade da pessoa.
A prudência ética é indispensável:
- O médico deve reconhecer os limites da família como representante legal.
- A avaliação da competência é médica e contextual; a declaração de incapacidade é judicial.
- Decisões substitutivas não devem ser precipitadas nem baseadas apenas em conveniências.
Nos casos de maior complexidade, é recomendável recorrer a Comissões de Ética ou processos de mediação clínica, que ajudam a equilibrar valores e a garantir transparência.
A ética da escuta e do processo partilhado
O processo de decisão em saúde não é apenas jurídico ou médico: é também ético e relacional. A família deve ser escutada sempre, mas com a clareza de que a decisão jurídica só pode ser tomada por quem a lei reconhece como representante.
A tríade fundamental é:
- Lei — garante clareza e proteção jurídica.
- Ética — assegura respeito pela dignidade e prudência nas escolhas.
- Cuidado relacional — integra a voz da família e dos profissionais, reconhecendo a importância dos vínculos sem lhes atribuir poder absoluto.
Aqui, o médico assume o papel de guardião da dignidade e mediador ético. Escuta, dialoga, mas também protege o doente de decisões que possam contrariar os seus direitos.
Entre lei, ética e cuidado
Decidir em nome do doente é sempre uma tarefa delicada, onde se cruzam lei, ética e afetos.
A clareza é fundamental:
- Capacidade é jurídica; competência é médica.
- A família deve ser escutada, mas não possui automaticamente estatuto de representante legal.
- A proteção do doente exige prudência, transparência e, sempre que possível, planeamento antecipado de cuidados.
Promover uma cultura de Diretivas Antecipadas de Vontade e de nomeação de Procuradores de Cuidados de Saúde é essencial para evitar dilemas dolorosos. Enquanto sociedade, precisamos de maior literacia bioética e jurídica para garantir que a dignidade do doente permanece no centro, mesmo quando já não tem voz.
No fim, a decisão nunca é apenas técnica ou legal: é, sobretudo, um ato de cuidado.
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