A Herdade da Ravasqueira, em Arraiolos, é hoje sinónimo de vinho e enoturismo. Mas o projeto que conhecemos tem raízes bem mais antigas. Com cerca de 3.000 hectares, a propriedade resulta da junção da Herdade da Mata e da Herdade da Ravasqueira, ambas ligadas à família José de Mello.

Em 1943, quando se começou a estruturar a exploração agrícola, a vinha ainda não estava sequer em perspetiva. O Alentejo era então conhecido como o “celeiro de Portugal” e a herdade acompanhava esse perfil: cereais, gado, cortiça e fruta eram as principais produções. Era uma agricultura de subsistência, mas também de escala, com impacto direto na economia local.

Nesse tempo, a herdade chegou a empregar mais de 500 pessoas. Não se tratava apenas de necessidade produtiva, Havia também um lado de mecenato e responsabilidade social. Manuel de Mello e o seu filho, José Manuel de Mello, mantinham empregos e dinamizavam a comunidade muito para além do indispensável, tornando a herdade num verdadeiro polo económico da região.

Era o Alentejo dos anos 1940: rural, duro, mas também fértil em recursos. E a Ravasqueira era, acima de tudo, um espaço de trabalho e de vida, onde se cruzavam a agricultura tradicional e a presença de uma família que nunca perdeu ligação à terra.

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram créditos: Divulgação

Porque mais do que uma exploração agrícola, a Herdade da Ravasqueira foi, desde cedo, um refúgio familiar. A casa principal, ainda hoje utilizada pelos doze irmãos da atual geração, era o centro de uma vida rural vivida em paralelo com a da cidade.

Foi neste espaço que a família encontrou equilíbrio entre os negócios e o campo, entre a gestão empresarial e a ligação às origens. A Ravasqueira mantém-se, até hoje, um ativo 100% detido pela família, ao contrário de outros projetos vínicos adquiridos mais tarde pelo grupo.

Este detalhe é importante. É aqui que tudo começa e é aqui que está o coração do grupo. A Ravasqueira não é apenas um investimento, mas sim um pedaço de história familiar, com peso afetivo e simbólico. Isto porque o projeto vínico da Herdade da Ravasqueira cresceu de forma consistente e tornou-se uma marca de referência no panorama nacional. Em 2023, a criação da Winestone marcou uma nova etapa, com a integração de outros ativos vínicos – Quinta do Côtto, Quinta do Retiro Novo, Quinta de Pancas, Paço de Teixeiró e Krohn – e uma aposta reforçada na internacionalização.

Nos anos que se seguiram à década de 1940, a herdade continuou a desenvolver-se como unidade agrícola, mas também como casa da família. Foi esse duplo papel que lhe deu consistência e identidade, preparando o terreno para os projetos que viriam a marcar as décadas seguintes: primeiro os cavalos, depois o vinho.

O sonho dos cavalos, numa verdadeira epopeia lusitana

Nos anos 1980, José Manuel de Mello voltou o seu olhar para uma grande paixão: o cavalo lusitano. A ideia parecia improvável uma vez que a raça não era adequada para a competição de atrelagem. Mas o objetivo era ambicioso: criar uma equipa que pudesse disputar campeonatos internacionais.

O projeto começou em 1988 e desenvolveu-se ao longo de oito anos de treino e seleção rigorosa. A primeira etapa da atrelagem, chamada de ensino, permitia avaliar a obediência, a resistência e a capacidade de resposta dos cavalos, mas os desafios eram muitos uma vez que a raça lusitana não tinha tradição nesse tipo de competição e era, por natureza, um cavalo de trabalho, mais robusto do que ágil.

Apesar das dificuldades, a persistência de José Manuel de Melo deu frutos. Em 1996, a equipa sagrou-se campeã do mundo na Bélgica, tornando-se num exemplo de visão e determinação. Este feito consolidou a reputação da herdade, mostrando que a aposta em rigor e detalhe poderia transformar sonhos improváveis em conquistas concretas.

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram créditos: Divulgação

Hoje, já não há cavalos na Ravasqueira, mas o legado mantém-se vivo na coleção particular de atrelagens de José Manuel de Mello, considerada uma das mais diversas da Europa. Entre carruagens históricas, coupés, trenós e carros infantis, incluindo peças utilizadas em cortes europeias do século XVIII. Cada carruagem revela um cuidado meticuloso com a preservação: há mecanismos de suspensão avançados para a época, rodas e roldanas originais, e até sistemas rudimentares de manutenção que ainda funcionam perfeitamente. Estas peças, muitas adquiridas em mercados históricos ou leilões, tornam a visita não apenas enológica, mas uma viagem pela história e pela engenharia do transporte equestre europeu.

Este espólio distingue a Ravasqueira de outras quintas, acrescentando camadas de história, tradição e personalidade que se entrelaçam com o presente vínico da propriedade.

Dos cavalos à vinha, a génese de um projeto vínico

Após a conquista mundial na atrelagem, José Manuel de Mello voltou o olhar para outro sonho: produzir vinho no Alentejo com a mesma ambição e rigor que aplicara aos cavalos lusitanos. Foi assim que nos anos 1990 nasceu o projeto vínico da Herdade da Ravasqueira. Em 1998, começaram as primeiras plantações de vinha, que se prolongaram até 2002.

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram créditos: Divulgação

O primeiro passo foi um “estudo para perceber qual era a melhor localização das vinhas e as melhores castas para a região”, explica-nos Gonçalo Ribeirinho dos Santos, diretor comercial e responsável de marketing do grupo Winestone. Encontradas as melhores localizações para plantar, e identificadas as castas que melhor se adaptariam ao microclima e à diversidade de solos, foi tempo de começar a trabalhar de forma a tirar partido da geografia da herdade. A Ravasqueira conta hoje com 19 talhões distribuídos por oito tipos de solo, num total de 45 hectares de vinha própria. Falamos de pequenas parcelas que permitem trabalhar em precisão e criar perfis de vinho distintos, explorando um terroir único.

Isto porque o vale onde estão as vinhas revela um microclima raro no Alentejo, com temperaturas até cinco graus mais baixas que as zonas envolventes nos picos de calor. Uma frescura que se reflete diretamente no perfil dos vinhos, mais elegantes e equilibrados do que aquilo que muitos associam ao calor da planície.

A primeira vinha foi plantada junto à casa principal, quase como um símbolo: o ponto de partida do sonho vínico. A primeira casta foi o Alvarinho, então rara no Alentejo, seguida de Viognier. Posteriormente, a herdade plantou castas menos comuns em Portugal, como  as italianas Nero d’Avola — única no país — e Sangiovese, além das tradicionais Alicante Bouschet, Trincadeira, Touriga Nacional ou Touriga Franca.

O maneio da vinha segue um modelo de produção integrada, equilibrando sustentabilidade e rigor técnico. A irrigação é criteriosa, evitando-se intervenções desnecessárias, e o cuidado diário da vinha preserva o solo e a biodiversidade.

A Ravasqueira possui hoje cerca de 500 barricas de carvalho, essenciais para o estágio dos vinhos de gama superior.

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram créditos: Divulgação

Mas a herdade também tem apostado em experiências inovadoras. “Estamos a fazer experiências com depósitos de inox que permitem inserir aduelas de carvalho. É uma solução com grande vantagem económica, porque o inox dura uma vida inteira e, ao mesmo tempo, conseguimos reproduzir parte da micro-oxigenação e dos aromas da barrica”, explica Francisco Garcia, que apesar de ser enólogo da Quinta de Pancas, em Alenquer, neste dia foi o nosso acompanhante na Ravasqueira.

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram Enólogo Francisco Garcia créditos: Divulgação

A experiência de enoturismo na Herdade da Ravasqueira vai além da prova de vinhos. A visita pode incluir uma passagem pelas vinhas, pela adega com as centenas de barricas, e sobretudo pelo já referido museu de atrelagens.

O mercado nacional continua a ser o principal destino dos vinhos da Ravasqueira, mas o enoturismo revela cada vez mais visitantes vindos dos Estados Unidos, Brasil e Canadá.

A vinha que nasceu entre romãzeiras

Algumas parcelas, como a Vinha das Romãs, são particularmente emblemáticas. “É um vinho de vinha, um single vineyard” como sublinham os responsáveis.

Plantada em 2002, ocupa o espaço do que em temppos foi um antigo pomar de romãs, arrancado em 1997. Acredita-se que as raízes das árvores se entrelaçaram com as novas vinhas. Mas aquel que parece ser um encontro subterrâneo poético entre gerações de plantas, não é apenas simbólico. O que se sabe é que enriqueceu o solo, conferindo-lhe uma estrutura e uma textura únicas que se refletem diretamente nos vinhos produzidos.

Cada garrafa carrega não só o nome da parcela, mas também a memória desse território singular, onde a história agrícola se cruza com a visão vitícola contemporânea.

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram A loja de vinhos da herdade. créditos: Divulgação

O resultado é um vinho de expressão rara, que se traduz num micro-terroir, que merece a atenção meticulosa da herdade e que faz jus à diversidade de solos e condições climáticas da região, numa procura constante pela tal singularidade que distingue a Ravasqueira no panorama vínico do Alentejo.

A gama Vinha das Romãs inclui vinhos tintos e brancos, na maior parte, uma combinação de Syrah e Touriga Franca. Na versão branco, os vinhos são elaborados com as mesmas castas, mas vinificadas como se de castas brancas se tratassem, assumindo um perfil de vinho completamente diferente.

Mais do que um vinho, a Vinha das Romãs é o reflexo de um trabalho meticuloso, onde cada planta é estudada e acompanhada, e cada colheira é uma oportunidade de exploração.

À prova: três vinhos, três caminhos (e um terroir frio no coração do Alentejo)

Uma prova de vinhos confirma o que a história já insinuava: na Ravasqueira, as decisões nascem no terreno e das pessoas. Entre notas técnicas e perspetiva comercial, desenha-se o retrato de três vinhos que traduzem a mesma paisagem, mas de formas bem distintas.

Alvarinho 2023

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram créditos: Divulgação

Num vale particularmente fresco — manhãs de 11 °C e geadas de inverno — o Alvarinho encontrou casa improvável no Alentejo. Vinificado sem madeira e trabalhado em inox sobre borras finas, mostra perfil seco, tenso e mineral.

“Aqui temos sempre manhãs muito frias, chega a gear. Essa diferença térmica favorece muito a casta e dá-nos um vinho com acidez viva e uma expressão muito própria,” explica Francisco Garcia.

A produção é limitada a uma pequena parcela, e só é colhida quando a fruta atinge a maturação ideal. O vinho é trabalhado com cuidado, mantendo a pureza da casta. O enólogo sublinha que se trata de “um vinho de guarda, que vai ganhar mel, frutos secos e mais camadas com o tempo.”

Para Gonçalo Ribeirinho Santos, trata-se de “um vinho que se posiciona muito bem no mercado, com um preço justo para a qualidade (PVP: 15€). Em Portugal ainda vendemos vinhos demasiado baratos, e este mostra ser um excelente value for money.”

À mesa, vai bem com peixes gordos, bacalhau ou mariscos intensos. Mas também acompanha bem pratos alentejanos mais ricos. É um exemplar raro que mostra como o Alvarinho pode expressar toda a sua elegância mesmo no coração do sul de Portugal.

Vinha das Romãs Blanc de Noirs 2024

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram créditos: Divulgação

Os responsáveis assumem que este vinho é um dos projetos mais ousados da herdade, um Blanc de Noirs de Touriga Franca e Syrah.

“O segredo está na congelação das uvas. Congelamos 24 horas, prensamos a frio e só aproveitamos o primeiro mosto, quase incolor. É um vinho de baixíssimo rendimento, mas com uma identidade única,” descreve o enólogo.

O vinho fermenta como um branco e estagia cerca de seis meses em barrica, para domar o tanino subtil. A produção ronda 6 a 7 mil garrafas e esgota-se rapidamente.

“Está mais fresco e vertical, muito próximo do 2021, que todos recordam como especial. É um vinho de sommelier, que pede contexto e gastronomia,” acrescenta Francisco Garcia.

Do lado comercial, o responsável fala sobre o desafio de gerir um produto tão procurado: “Lançamos em maio e, com sorte, chega ao Natal. É um vinho que o mercado absorve rápido, mas nunca vamos aumentar muito a produção. É mais interessante manter a exclusividade.”

Com um PVP de 20€, à mesa, este Blanc de Noirs desafia os brancos tradicionais, acompanhando carnes brancas, enchidos, assados de porco e arrozes de forno. Os responsáveis recomendam servi-lo ligeiramente acima da temperatura habitual para ampliar a textura e a expressão aromática.

Espumante Grande Reserva Rosé 2015

O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram
O Alentejo fresco da Ravasqueira, onde vinhos, história e experiências se encontram créditos: Divulgação

De uma vinha considerada difícil para tintos, nasceu a virtude deste espumante: a acidez natural do Alfrocheiro. Produzido pelo método clássico e com quase 10 anos de estágio em garrafa, a edição é extremamente limitada, com cerca de 2.000 garrafas.

“O que era um problema no tinto — a falta de volume — tornou-se uma vantagem aqui. Ganhámos frescura, acidez e longevidade. É um espumante raro, diria mesmo único no Alentejo,” explica Francisco Garcia.

No copo, apresenta cor viva e uma paleta aromática complexa, com notas de folhas secas, casca de laranja, nuances licorosas e especiarias finas. “É um vinho que fala por si. Mais do que para brindar, é para a mesa ou até para a sobremesa, onde contrabalança muito bem o doce com a frescura,” acrescenta o enólogo.

Gonçalo Ribeirinho dos Santos sublinha a estratégia do grupo: “Não é um produto feito para consensos. É uma edição limitada, trabalhada como peça de coleção. O preço (PVP entre 40 e 50€) reflete o tempo de cave e a raridade.”

No fim da prova, fica a sensação de coerência: mesmo quando arrisca, a Ravasqueira não procura efeitos, procura vinhos com uso à mesa, personalidade própria e a marca de um terroir fresco no coração do Alentejo. Como resume Gonçalo Ribeirinho dos Santos, “Na Ravasqueira, não seguimos modas. São elas que vêm ter connosco”.