A Food and Drugs Administration (FDA), regulador de saúde norte-americano, recomendou a limitação do uso deste tipo de remoção de tecidos que, aplicado no útero, em caso de cancro pré-existente, pode envolver o risco de disseminação de células cancerígenas no abdómen. «A morcelagem é uma forma de remover grandes massas e consiste em cortar um órgão volumoso em pedaços para os extrair do corpo», descreve Alexandre Lourenço, médico ginecologista.
Nos EUA, é usada no contexto de histerectomia (remoção do útero) ou de miomas que podem, assim, ser retirados através de orifícios executados por laparoscopia, o que evita a realização de um corte mais extenso no abdómen, os potenciais riscos da cirurgia e a cicatriz inestética. Em Portugal, esclarece Alexandre Lourenço, «a morcelagem é importante na remoção laparoscópica de grandes miomas benignos (miomectomia) na pré-menopausa, em mulheres que ainda pretendem engravidar».
«Nessas mulheres, a histerectomia só deve ser realizada em caso de suspeita de tumor, e nesses casos, a morcelagem é evidentemente de evitar», acrescenta ainda o especialista, que alerta para os riscos de disseminação de células cancerígenas. Quer nos EUA quer na Europa, por norma, esta técnica não é usada caso haja diagnóstico prévio ou suspeita de cancro uterino ou cervical. Ao recortar tecido, caso exista um tumor maligno, há o risco de se espalharem células cancerígenas para a cavidade abdominal.
O alerta foi dado, nas últimas semanas, por um estudo norte-americano, divulgado pelo jornal The New York Times, é de que haverá mais casos, do que o que se pensava, de cancro pré-existente à cirurgia que não foi detetado ou em relação ao qual não houve suspeita antes da sua realização. Contudo, como esclarece Alexandre Lourenço, «o que está em causa é a power morcelation associada a dispositivos muito potentes de morcelagem que, praticamente, trituram de forma agressiva os tecidos. Existem outras formas de remover órgãos/tecidos da cavidade abdominal».
Segundo o especialista, «a morcelagem não é a responsável pela disseminação do cancro, se realizada com a indicação correta e com a técnica adequada, nas mulheres adequadas. No entanto, em situações benignas mal estudadas previamente, a destruição do útero em pequenos pedaços dificulta a avaliação histológica que se faz à peça operatória, pelo que cancro de pequenas dimensões (colo do útero ou endométrio) não rastreado previamente pode escapar ao exame da peça e o tumor ser detetado tardiamente».
O estudo da polémica
A investigação foi publicada no The Journal of American Medical Association e vem alertar para o facto de os casos de tumores malignos não detetados antes da morcelagem em mulheres que são submetidas a histerectomias serem mais comuns do que aquilo que se pensava. Liderado por Jason D. Wright, chefe do serviço de oncologia ginecológica da Universidade de Columbia, o estudo avaliou os casos de mais de 232 mil mulheres norte-americanas submetidas a histerectomia.
Neste universo, cerca de 36 mil mulheres tinham sido sujeitas à morcelagem e destas, 99 tinham cancro do útero que não fora detetado antes da intervenção. «Isto significa», refere o The New York Times, citando o investigador principal do estudo, que «uma em cada 368 mulheres que fizeram uma histerectomia tinha um cancro (não diagnosticado ou suspeito na altura da cirurgia) que se podia espalhar devido à morcelagem». Estimativas anteriores, revela o jornal norte-americano, apontavam para uma percentagem muito inferior deste tipo de casos, estimando-se um em cada 500 e um em cada 10 mil casos.
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A posição da FDA
Já em abril deste ano, relata a mesma fonte, a FDA havia desencorajado o recurso a este procedimento cirúrgico. O organismo norte-americano, que «prepara agora audiências para avaliar a morcelagem», lançou uma análise na qual, entre outros dados, estimava que «uma em cada 352 mulheres que eram submetidas a uma histerectomia ou remoção de miomas tinha um sarcoma», um tumor maligno agressivo e difícil de detetar. Neste contexto, Alexandre Lourenço aponta que «a possibilidade de um mioma ser um sarcoma é muito baixa, menos de um caso em cada mil».
«No entanto, outros cancros uterinos são muito mais comuns como o do colo do útero e o do endométrio», esclarece ainda. Também uma revisão de casos realizada no Dana-Farber Cancer Institute concluiu «que o cancro é espalhado mais rapidamente depois de feita uma morcelagem do que quando feita uma cirurgia abdominal para remoção do útero». Citado pelo The New York Times, Jason D. Wright admite não saber se a morcelagem deve, ou não ser banida, mas realça que «esta análise é importante para permitir que as pessoas tomem decisões».
Em Portugal
O cenário europeu é distinto do norte-americano, elucida Alexandre Lourenço. «A histerectomia é a operação (a seguir à cesariana) mais realizada nas mulheres nos EUA. Por várias razões (económicas, sociais e relacionadas com a litigância judicial), o número de histerectomias realizadas nos EUA é muito superior ao da Europa. Muitas dessas cirurgias não teriam indicação para serem feitas nos nossos protocolos atuais da forma como são executadas nos EUA», esclarece o especialista.
«A morcelagem (power morcelation) não está indicada no caso de histerectomias totais (que implicam a remoção do colo do útero), que são as que habitualmente se praticam em Portugal. Mesmo em caso de histerectomia laparoscópica, o útero pode, e deve, sempre sair por via vaginal, dado que a vagina se encontra aberta quando se remove todo o útero.
Embora a histerectomia sub-total (conservação do colo do útero) não seja aconselhável por rotina (o cancro do colo do útero pode existir nessas mulheres e não há vantagens clínicas significativas em a realizar) é muito praticada nos EUA, especialmente na técnica laparoscópica, por ser mais rápida e mais fácil de realizar por cirurgiões pouco experientes», diz ainda.
«E, nesses casos, como a vagina permanece encerrada, a morcelagem é quase sempre realizada para remover o útero», sublinha o especialista. Por outro lado, acrescenta o especialista, «a histerectomia após a menopausa (altura em que a incidência do cancro oculto não despistado é, de facto, superior) é realizada nos EUA, muitas vezes, sem exames complementares adequados (ecografia dirigida ao endométrio ou papaniolau prévio). Tal não é frequente em Portugal».
Aconselha a morcelagem em mulheres com antecedentes familiares de cancro do útero?
A opinião de Alexandre Lourenço divide-se:
- Sim
«Recomendo a morcelagem dos miomas uterinos, em caso de miomectomia laparoscópia, em mulheres que pretendam conservar o útero com intuitos reprodutivos, desde que não haja suspeita de cancro nos rastreios pré-operatórios adequados, mesmo com antecedentes familiares prévios», refere o especialista.
- Não
«Desaconselho a morcelagem na histerectomia laparoscópica, dado haver alternativas mais adequadas à remoção do útero por via vaginal (e muito mais baratas dado que o morcelador tem custos elevados)», explica também o médico.
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O que fazer no caso de ter indicação para um procedimento de morcelagem
O conselho não podia ser mais simples. Caso tenha indicação para morcelagem, fale com o seu médico:
- Certifique-se junto do especialista que a acompanha que o seu caso é benigno. Existem exames, como o Papanicolau, que permitem identificar a presença de células cancerígenas.
- Se não se sentir confortável com a opinião do médico, peça uma segunda opinião.
- Consulte um médico que utilize, para além da morcelagem, outras técnicas cirúrgicas.
Texto: Catarina Caldeira Baguinho e Nazaré Tocha com revisão científica de Alexandre Lourenço (consultor em ginecologia e obstetrícia no Hospital de Santa Maria e Assistente da Faculdade de Medicina de Lisboa)
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