Estimados Colegas,
Após uma atenta auscultação entre a classe médica, acreditamos estar a dar voz a um sentimento comum, ao afirmarmos que, no momento em que decidimos escolher a Medicina como missão, já antevíamos a complexidade dos desafios e a intensidade das exigências diárias que nos aguardava. No entanto, estávamos longe de prever a intransigência com que estas nos seriam impostas. Quem poderia prever que a delicada simbiose entre o humanismo médico e o conhecimento científico seria ofuscada pela necessidade de gestão de tempos cada vez mais curtos de consulta, pela obediência a métricas tantas vezes desprovidos de sentido clínico, ou até mesmo pela realização de infindáveis tarefas burocráticas que nos consomem a agenda e os dias?
Numa compreensível tentativa de nos mantermos à tona destas águas agitadas, acabamos por nos esquecer da importância da participação em assuntos de carácter institucional, como é o caso das eleições para a Ordem dos Médicos. Os dados confirmam esta preocupante realidade: em 2023, apenas 30% dos médicos exerceram o seu direito de voto, precisamente naquilo que constitui o primeiro degrau na escada da mudança.
A aproximação de um novo momento eleitoral na Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos – que decorre entre os próximos dias 29 de Maio e 3 de Junho – convida-nos a refletir sobre este gesto simultâneo de direito e dever, tantas vezes negligenciado, mas que influencia de forma tão determinante o presente e o futuro da nossa classe e ofício. Vale a pena, por isso, sair da roda-viva por um instante e debruçarmo-nos sobre o significado deste ato para cada um de nós: Porquê e para quê votar?
Numa breve tentativa de dar resposta a esta pergunta, propomos ao leitor três motivos e uma ideia de futuro para ponderar e votar:
- Ordem dos Médicos como guardiã da profissão médica
A Ordem dos Médicos é a entidade responsável por assegurar a qualidade, a ética e a dignidade do exercício da Medicina em Portugal. É este organismo – que se quer vivo e atento – que regula o acesso à profissão, supervisiona a formação médica contínua e representa médicos e pacientes junto das instâncias políticas, sociais e jurídicas. Por esse motivo – e embora, por vezes, possa parecer um pouco distante – a presença da Ordem dos Médicos deve ser constante ao longo da nossa carreira, pronunciando-se sobre questões que influenciam diretamente o nosso quotidiano, nomeadamente (mas não em exclusivo) na definição de tempos mínimos de consulta, na criação e revisão de indicadores de desempenho, na perceção da pressões excessivas sobre os profissionais, no combate à desproteção institucional e às decisões políticas que fragilizam tanto a relação médico-doente, como a qualidade da nossa prática.
De igual forma, a Ordem dos Médicos tem ainda a responsabilidade vital de intervir ativamente nos casos (cada vez mais frequentes) de violência contra profissionais de saúde, em conflitos laborais, em situações de assédio e bullying entre colegas.
Mais do que um conjunto de acordos e pareceres, a Ordem dos Médicos deve ser símbolo e sinal de que pertencemos a uma classe profissional que se autorregula e vigia, que se compromete com elevados padrões de exigência e que se encontra unida por um código de conduta que se manifesta no ato de cuidar.
- O voto como conquista histórica e dever cívico
O direito ao voto constitui uma conquista civilizacional, alcançada através de lutas prolongadas e sacrifícios coletivos, tendo como marco incontornável, em Portugal, a Revolução de 25 de Abril. Durante grande parte da história, o acesso ao sufrágio foi restringido por critérios discriminatórios, nomeadamente de género, grau de instrução e condição socioeconómica.
Num cenário marcado por desigualdade, emergiram vozes que desafiaram a ordem estabelecida, como a da médica Carolina Beatriz Ângelo, que em 1911 se tornou a primeira mulher a votar em Portugal, contrariando os estigmas da época. O seu ato consciente e corajoso sublinha a importância de cada voto e a necessidade de não tomarmos este direito por garantido. Importa, por isso, recordar que ao votarmos nestas eleições, não o fazemos apenas por nós, mas também por todos aqueles que abriram o caminho e por todos aqueles que ainda se sentem sem voz. O valor simbólico e real da participação democrática é inestimável para assegurar que as classes profissionais se mantêm livres, éticas e autónomas.
- Fortalecer a Representatividade e a Participação
A reduzida taxa de participação nas eleições da Ordem dos Médicos levanta questões sobre a representatividade das suas decisões e orientações: quando apenas uma minoria dos médicos vota, arriscamo-nos a perder a perspetiva coletiva e a silenciar a pluralidade das vozes que compõem a nossa classe, dando lugar a um eco monocórdico e de uma concordância sem contraste, em que apenas os interesses de alguns são acautelados.
Uma maior participação eleitoral fortalece a legitimidade dos órgãos da Ordem e assegura que as decisões tomadas possam refletir os diversos contextos que compõem a nossa profissão: das urgências hospitalares às unidades de saúde familiar, dos blocos operatórios aos cuidados paliativos, dos laboratórios à investigação, da saúde pública ao ensino, difundindo-se pelos setores público e privado, e abrangendo todos as etapas do percurso médico: estudantes, internos e especialistas.
Apenas através de uma visão global e inclusiva das problemáticas de todos é que a Ordem dos Médicos se pode tornar mais justa, mais eficaz e verdadeiramente relevante.
Um Olhar para o Futuro:
Ainda há lugar para uma Medicina com sentido, com propósito e com coragem. A mudança começa onde há consciência e esperança. Apesar da névoa que por vezes obscurece o nosso caminho, é na força coletiva e na memória do que nos trouxe até aqui que encontramos o impulso para seguir em frente.
Vivemos tempos conturbados, em que a Medicina se vê apanhada num fogo cruzado de lógicas de mercado, pressionada por indicadores que nem sempre refletem a real qualidade dos cuidados e asfixiada por modelos de gestão que confundem rentabilidade com valor. Soma-se a isto a crescente distância entre quem decide e quem executa, os avanços tecnológicos ainda não regulamentados da inteligência artificial e as sucessivas mudanças nos modelos de prestação de cuidados e nos padrões culturais e sociais.
Todas estas circunstâncias culminaram na saturação e exaustão que se sente entre a classe médica e que compromete a lucidez da avaliação clínica e a decisão individualizada e alinhada com as necessidades de cada doente e sua comunidade. Assiste-se à progressiva desvalorização do ato médico, tanto em termos sociais como económicos, após décadas de trabalho árduo, abnegação e dedicação à arte médica. Compreende-se que este desânimo conduza, por vezes, à desesperança e ao ceticismo relativamente a instituições como a Ordem dos Médicos, que tem afastado os médicos da participação eleitoral. Mas sabemos, de igual forma, que o espaço que se deixa vazio é, inevitavelmente, ocupado por outros, e que o silêncio da abstenção abre caminho à vulnerabilidade e resignação. E é precisamente contra isso que devemos lutar: por uma Medicina fiel aos seus fundamentos – ciência, ética e humanidade; por uma Ordem dos Médicos que sabe inovar sem desumanizar, que não subvaloriza a importância do médico face às métricas, mas que as integra com inteligência, transparência e bom senso.
Participar nas eleições da Ordem dos Médicos é o primeiro sinal de que continuamos atentos, exigentes e comprometidos com a profissão que escolhemos exercer. Independentemente do sentido, cor ou letra de cada escolha, vote com exigência, sentido de responsabilidade e esperança no futuro.
Vote!
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