Doença hereditária da coagulação causada por uma deficiência de um fator coagulante, a hemofilia é uma enfermidade de transmissão genética ligada ao cromossoma X, que afeta quase exclusivamente os homens, embora as mulheres sejam portadoras da doença. Nos casos graves, o diagnóstico ocorre, geralmente, no primeiro ano de vida.
«Nas pessoas com hemofilia a coagulação do sangue é mais difícil», explica Cristina Catarino, especialista em Imunohemoterapia, responsável do Centro de Coagulopatias Congénitas do Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte. Esta doença caracteriza-se por hemorragias prolongadas, espontâneas ou traumáticas, especialmente frequentes a nível articular ou muscular.
«Na base de cerca de 70% dos casos está uma história familiar de hemofilia, pelo que apenas 30% se devem a alteração genética da própria pessoa», esclarece a especialista. «No caso de um doente com hemofilia nenhum dos filhos do sexo masculino tem risco de sofrer da doença. Já as filhas serão todas obrigatoriamente portadoras do gene. Nos casos em que a mãe é portadora (e o pai é saudável), para cada criança que nasce, existe uma probabilidade de 25% de ser um rapaz com hemofilia e 25% de ser uma rapariga e portadora do gene», exemplifica.
O que é
Existem dois tipos de hemofilia: a A e a B, relacionadas, respetivamente, com a deficiência em factor VIII (FVIII) e factor IX (FIX). «A hemofilia A tem uma incidência mundial de 1 em cada 5.000 nascimentos do sexo masculino, sendo a hemofilia B muito menos frequente (1 em 25000-30000 nascimentos)», acrescenta Cristina Catarino. Em Portugal calcula-se que existam cerca de 1.000 pessoas com hemofilia sendo que 40% dos casos identificados são graves. «Contudo, a inexistência de um registo nacional destes doentes faz com que possam existir muitos casos por diagnosticar, nomeadamente com hemofilia ligeira».
Manifestações clínicas
A frequência e a gravidade das manifestações clínicas estão relacionadas com os níveis de FVIII /FIX da pessoa com hemofilia (em pessoas sem a doença o fator deve ser superior a 50%). Quando o nível de fator é inferior a 1% considera-se que a hemofilia é grave. A hemofilia moderada é definida por níveis de fator entre 2 e 5% e a ligeira por fator superior a 5%. «Os indivíduos com hemofilia grave têm hemorragias frequente e espontâneas, enquanto os indivíduos com hemofilia ligeira e moderada apenas sangram, habitualmente, na sequência de traumatismos e procedimentos cirúrgicos», acrescenta a médica.
«A hemorragia mais frequente e característica é a intra-articular e leva, ao longo dos anos, a uma progressiva destruição articular com a consequente incapacidade física (artropatia hemofílica). São, também, frequentes as hemorragias musculares, bem como diversas hemorragias dos vários órgãos e sistemas, a mais grave das quais a hemorragia intracraneana. O tratamento precoce dos episódios hemorrágicos é essencial para prevenir as complicações que lhes estão associadas e até mesmo evitar situações que põem em risco a vida», alerta.
Consequências
Sendo um distúrbio hemorrágico, a hemofilia tem um grande impacto na qualidade de vida e atividades diárias dos pacientes. «De acordo com um estudo desenvolvido pela Associação Portuguesa de Hemofilia e de outras Coagulopatias Congénitas (APH), as crianças e jovens até aos 15 anos são limitadas numa série de atividades consideradas normais para esta idade e que impliquem um exercício físico mais intenso.
Este impacto tem, mesmo, uma consequência ao nível do relacionamento e do rendimento escolar (28% das crianças inquiridas no estudo da APH perdeu, pelo menos, um ano escolar devido à doença). Já os adultos conseguem lidar melhor com a doença e respetivo impacto na rotina diária», observa. Ainda assim, cerca de 49% dos adultos consideram que a doença interfere e tem um impacto mediano no seu estilo de vida limitando as atividades físicas, 26% afirma que a doença condicionou a obtenção de um emprego e 12% deixou de trabalhar mais cedo devido à hemofilia.
As preocupações
As principais preocupações dos adultos com hemofilia prendem-se, essencialmente, com duas razões: 41% dos pacientes preocupam-se com o acesso ao tratamento em casos de emergência enquanto que 36% canaliza as suas preocupações para as deslocações para fora de Portugal e a possibilidade de contrair infeções através da utilização de produtos derivados do plasma humano.
Além disso, 34% dos adultos mostra preocupação e tenta estar a par de assuntos relacionados com a segurança dos produtos derivados do plasma em relação à possibilidade de transmissão da Doença de Creutzfeld-Jacob (variante humana da doença das Vacas Loucas). «Contudo, hoje em dia, os doentes com hemofilia podem ter uma vida praticamente normal, desde que cumpram a profilaxia instituída pelo seu clínico e que previne o surgimento de hemorragias que, de outra forma, seriam muito perigosas», diz.
Tratamento
Ainda não existe cura para a hemofilia, tendo a terapêutica aplicada atualmente como principal objectivo, evitar os episódios hemorrágicos e tratar eventuais hemorragias existentes. Permite, na maioria dos casos, manter uma boa qualidade de vida e uma esperança média de vida semelhante à da restante população. «Os indivíduos com hemofilia podem fazer terapêutica on-demand, ou seja, tratar apenas os episódios hemorrágicos, ou fazer terapêutica profilática.
Esta profilaxia, que significa a administração endovenosa, 2 a 3 vezes por semana, do fator de coagulação em falta, é o tratamento recomendado nos casos de hemofilia grave uma vez que previne episódios hemorrágicos e as suas consequências, nomeadamente a artropatia hemofílica», elucida a expecialista. Em Portugal, e de acordo com dados do estudo da APH, 84% dos inquiridos a fazer profilaxia demonstra uma melhoria, grande a moderada, na sua qualidade de vida.
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A evolução do tratamento
Crê-se que o primeiro tratamento desenvolvido para a hemofilia surgiu em 1840. Nos anos 50 e 60 do século XX, a forma mais comum de tratamento dos indivíduos com hemofilia passava pela transfusão de sangue fresco total ou de plasma fresco congelado, tratamentos que não eram eficazes. Com os avanços da investigação foram surgindo novas tecnologias e, nos anos 70 do século passado, foi possível fazer a extração do fator VIII de uma fração do plasma e transformá-lo em pó.
Este avanço, que se traduziu no aparecimento de concentrados de fator liofilizados, permitiu reduzir de forma significativa o volume do tratamento administrado aos doentes e marca o aparecimento dos concentrados de origem plasmática. «Contudo, apesar do avanço no tratamento, a utilização destes concentrados tinha associado um elevado risco de contaminação de vírus como a Hepatite C ou o VIH», esplana a especialista.
Produtos de terceira geração
No final da década de 80, a investigação e o avanço nos procedimentos de inativação viral, assim como na despistagem sistemática nos dadores de sangue, permitiram o desenvolvimento de concentrados de fator cada vez mais seguros, de tal forma que, no início dos anos 90, surgiram os concentrados de fator recombinantes desenvolvidos a partir de engenharia genética em laboratório.
«Estes concentrados, desenvolvidos através do ADN humano e de uma célula animal, foram também evoluindo e, atualmente, já não contêm quaisquer vestígios de derivados sanguíneos», assegura Cristina Catarino. Um ponto de viragem no tratamento da hemofilia, uma vez que o torna independente das dádivas de sangue (até então a única forma de obter concentrados de fator) e reduz, ainda mais, os riscos de contaminação viral.
«A utilização destes produtos recombinantes, de terceira geração, é um grande avanço na profilaxia e uma mais-valia para os doentes, uma vez que, de acordo com o estudo da APH: 36% dos adultos com hemofilia revelam preocupação relativamente à possibilidade de contrair infeções através da utilização de produtos derivados do plasma; sentimento partilhado por 71% dos pais de crianças com hemofilia sendo que, destes últimos, há ainda 58% que consideram que esta situação causa apreensão relativamente ao tratamento do seu filho», garante.
No entanto, «a investigação neste campo da medicina continua ativa. Estão a decorrer várias investigações em terapias genéticas e a comunidade científica acredita que os concentrados recombinantes com ação prolongada e alternativas aos tratamentos intravenosos são o futuro da profilaxia», conclui Cristina Catarino.
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