Um jardim é algo que nos pede atenção, mas que também nos retribui. Criamo-lo e acarinhamo-lo. Em troca, aceitamos entregar o nosso cuidado aos ritmos da natureza. E, com ela, reencontramos um outro tempo, mais sereno e atento aos ciclos anuais. Ana Manuel Mestre, arquiteta paisagista, nascida no Alentejo, neta e filha de agricultores, “adotada” pela grande cidade, vê nos jardins um ato de constante renascimento. Uma dimensão da vida que não habita somente os espaços públicos e que podemos transportar para dentro de nossas casas. Para além da questão estética, Ana Mestre revela-nos no livro que assina, “O Seu Jardim Interior” (edição Oficina do Livro), todo um mundo de ligações que podemos estabelecer com as plantas, também como as escolher face ao espaço de que dispomos, como cuidar delas, gerir pragas e doenças.
“Há plantas bastante caprichosas, outras que quase se cuidam sozinhas. Mas no geral, se aprendermos a respeitar o seu tempo, os seus ciclos e as deixarmos ‘na sua vidinha’, todas se tornam fáceis”, confidencia-nos em conversa Ana Mestre.
Para a autora, cuidar do nosso jardim interior é também a oportunidade para repensarmos a gestão racional dos recursos, evitando a compra por impulso (no caso das plantas também é um erro), usar produtos sustentáveis e amigos do ambiente, fazer um aproveitamento racional das águas domésticas.
Fora de portas, Ana Mestre lamenta que “o pequeno jardim do bairro, aquele jardim de proximidade e que devia ser o bocadinho de natureza perto de casa, ainda fica esquecido”. Isto, não obstante, termos belos e bem cuidados jardins históricos e botânicos em Portugal.
A Ana Mestre nasceu no Alentejo, aí viveu, rodeada de natureza, e acabou por mudar-se para Lisboa. Foi uma transição dura, considerando o apego que tem à natureza?
Na altura foi uma transição fácil porque tenho um lado muito urbano. Além disso, grande parte dos jovens que cresce no meio rural tem o desejo de ir para a cidade. E com 20 anos, eu era um desses jovens também. Nunca imaginei o quanto a natureza me faria falta.
No seu livro escreve que a maior virtude que um jardineiro poder ter é saber olhar para as plantas. De que forma estas nos retribuem?
Retribuem-nos com crescimento, com folhas novas ou flores, com beleza.
Numa sociedade material, ansiosa e pouco paciente, ainda há espaço para comunicar com as plantas e saber respeitar os seus tempos?
Quero muito acreditar que ainda existe esse espaço, mas infelizmente contacto com muitas pessoas para quem as plantas são mais um foco de ansiedade do que de tranquilidade e conexão, porque morrem folhas, porque perdem as flores ou porque ficam doentes.
Acredito que as plantas, aos poucos, nos ensinam a ter essa paciência, nos ensinam que não são apenas objetos com um objetivo estético nas nossas casas e que os seus ritmos são os nossos próprios ritmos naturais, porque somos todos parte de algo maior que é a natureza. Quando chegamos a essa conexão e entendemos isso, aprendemos a respeitar-nos a nós mesmos e aos outros também. Mas é preciso parar e observar, para “ouvir” essa lição que elas nos dão.
“A vida começa no dia em que começas um jardim”. O provérbio chinês é-nos destacado no seu livro. Criar um jardim pode ser um ato de renascimento?
Criar um jardim é um ato de constante renascimento, sem dúvida. Um jardim é algo vivo, em constante mudança e que nunca está terminado. Não criamos um jardim e já está. O processo continua para sempre e enquanto acompanhamos essa evolução, todos os seus ciclos, mortes e renascimentos também nós renascemos. Diria mesmo que não só uma vez, mas em todas as primaveras.
Uma outra citação que lemos no seu livro é a da jardineira Janet Kilburn Phillips: “Na jardinagem não há erros, apenas experiências”. É uma das virtudes da jardinagem, a de nos dar sempre novas oportunidades?
Sim, é ótimo saber que podemos sempre tentar outra vez e aprender com os erros que cometemos. Apesar de se tentar criar regras para a jardinagem, dicas exatas e medidas certas não existem nesta área. Sem experiências não podemos afirmar que estamos a “jardinar”. Afinal, não foi sempre isso que fizeram os botânicos e os grandes jardineiros da história ao trazerem plantas do outro lado do mundo sem saber como se dariam no nosso clima? Umas vezes correu bem, outras não.
Os espaços verdes urbanos são ainda encarados como áreas que servem apenas para embelezar, quando na verdade são tão mais que isso.
A Ana é arquiteta paisagista, ou seja, também olha para os jardins numa perspetiva profissional. Somos um país que estima e cuida os seus jardins?
Sinto que estamos cada vez mais perto de dar aos jardins a importância que lhes é devida, mas ainda longe. No meio urbano ainda se encaram as ervas como feias e sinal de descuido, as árvores como algo que suja o chão e a terra como um meio que transmite doenças.
Os espaços verdes urbanos são ainda encarados como áreas que servem apenas para embelezar, quando na verdade são tão mais que isso. Claro que, temos fantásticos jardins e muito bem cuidados em Portugal, Jardins históricos ou Jardins botânicos, por exemplo, aqueles pelos quais temos de pagar para usufruir e que por isso conseguem garantir uma manutenção cuidada. Mas o pequeno jardim do bairro, aquele jardim de proximidade e que devia ser o bocadinho de natureza perto de casa, ainda fica esquecido e é para muitos autarcas apenas uma fonte de despesa e o primeiro a deixar sem cuidados na hora de poupar.
E dentro de casa, temos a tradição de “mimar” estes microcosmos verdes?
Acho que neste momento mimamos mais as plantas de interior do que de exterior, no geral. Mas penso que é um primeiro passo para começar a reparar mais e a dar mais importância às plantas dos nossos jardins exteriores. Quem nunca, só depois das Strelitzia nicolai passarem a ser moda como plantas de interior, reparou que a vizinha do lado tem uma gigante há anos no quintal? Ou igual com as famosas Monstera deliciosa, que temos nos nossos jardins desde sempre e só se tornaram famosas como plantas de interior, passando até a serem chamadas por um nome mais pomposo do que o anterior “Costela-de-adão”.
É lícito dizer-se que criar um jardim está na natureza humana considerando que os plantamos desde que a Humanidade se sedentarizou?
Claro que sim. Uma horta também pode ser considerada um jardim e o Homem teve necessidade de produzir plantas para alimentação quando deixou de as procurar na natureza “selvagem”, devido à sedentarização. Diria até que a vontade de ter a natureza próxima é inato em nós, mesmo que por vezes percamos essa conexão com a nossa essência, na sociedade em que vivemos.
Há evidências científicas que comprovem os benefícios de termos plantas em casa?
Há muitos estudos que comprovam os benefícios de ter plantas em casa, basta uma breve pesquisa na internet para encontrar alguns, direcionados para diferentes áreas da saúde como física ou mental. No livro, faço referência a estudos que poderão consultar. Mas a melhor forma de o comprovar é experimentando. Trabalhei oito anos na área da saúde mental como formadora de jardinagem e essa experiência só veio confirmar as maravilhas que eu já sabia que a natureza podia fazer por nós.
Que condições de base temos de considerar ao iniciarmos um jardim interior?
Devemos perceber se temos em casa as condições suficientes de luminosidade, temperatura e humidade para as plantas de interior. E tão ou mais importante saber se temos disponibilidade para cuidar delas, não só de tempo, mas disponibilidade mental também.
Devemos perceber se temos em casa as condições suficientes de luminosidade, temperatura e humidade para as plantas de interior.
Comprar plantas por impulso é um erro?
Considero um erro comprar qualquer coisa por impulso, num tempo em que devemos evitar o consumismo desenfreado, e plantas também, claro. Neste caso, o impulso pode levar à aquisição de espécies que nunca se adaptarão às condições que temos nas nossas casas ou ao tempo que temos para lhes dedicar, acabando estas por adoecer ou até morrer ao fim de algum tempo.
A Ana Mestre esclarece-nos no seu livro: “planta de interior” é um conceito não um tipo específico de planta. Contudo, há algo em comum entre estas. O quê?
Tal como todas as plantas, aquelas a que chamamos de “plantas de interior”, em algum lugar do mundo vivem no exterior, selvagens e nascem aí espontaneamente. O que faz com que sejam agrupadas como plantas de interior é o facto de serem originárias de zonas do planeta com condições de luz, temperatura e humidade semelhantes às que temos em casa e por isso conseguem crescer perfeitamente saudáveis em ambiente interior.
No seu livro, a Ana não separa os jardins interiores dos cuidados com o meio ambiente, reciclagem, entre outros. Pode dar-nos alguns exemplos?
Sim. Evitar a compra por impulso, usar produtos sustentáveis e amigos do ambiente como fertilizantes, inseticidas ou fungicidas, não fazer gastos de água exagerados, recolhendo água da chuva ou aproveitado a água que corre para o banho até aquecer, são algumas formas de ser mais sustentável mesmo tendo muitas plantas em casa. Na compra de vasos, podemos também optar por materiais reciclados ou recicláveis.
Estas plantas de interior são seres caprichosos ou de fácil manutenção?
Depende da espécie. Há plantas bastante caprichosas, outras que quase se cuidam sozinhas. Mas no geral, se aprendermos a respeitar o seu tempo, os seus ciclos e as deixarmos “na sua vidinha”, todas se tornam fáceis.
É possível mantermos o nosso jardim saudável sem o uso de químicos? Pode dar-nos exemplos de como combater pragas, doenças?
Para quem prefere comprar produtos já preparados, temos disponíveis no mercado diversos produtos orgânicos e biológicos. Caso haja tempo para fazer produtos em casa, a utilização de alho, sabão natural ou alguns óleos, por exemplo, pode servir perfeitamente para combater a maior parte das pragas que surgem nas plantas de interior. O mais importante para garantir a eficácia deste género de produtos é a identificação do problema precocemente.
Jardinar também tem uma dimensão decorativa. Mas há regras. Quais devemos observar?
Não considero regras. As opções decorativas devem sempre seguir o gosto de cada um. Não há limites para a criatividade. Neste ponto, aconselho apenas a seguir um conceito para que não se torne tudo muito confuso. Simplificar e não esquecer que somos nós que temos de nos adaptar ao que as plantas precisam e não elas à nossa vontade. Por muito que achemos que uma plantas que não gosta de sol fica linda próxima do vidro de uma janela virada a sul, naquele canto especial, esse nunca será o local ideal para ela.
Finalmente, o que é para a Ana um jardim perfeito doméstico?
Um Jardim simples, adaptado a nós e nós a ele, que não precise de demasiados cuidados e onde seja possível apenas observar a dinâmica da natureza, ao longo do dia, em cada estação ou ao longo dos anos, sem pressas e sem ansiedade, permitindo-nos uma conexão profunda com a natureza.
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