Nasceu no Rio de Janeiro em 1981, cresceu em São Paulo, apresenta-se ao mundo como publicitária e escritora. No dia em que foi diagnosticada com bipolaridade, Bia Garbato descansou finalmente. “Tudo encaixava”, como escreve. Ajustavam-se as peças de um puzzle feito de uma vida batalhada entre a depressão e a euforia. Bia fez uma pausa, respirou fundo e empreendeu um novo caminho, o do tratamento e da sobriedade. Chegou o momento em que quis levar para livro a sua história de superação, também de dor, e fê-lo através de uma linguagem universal, o humor, o que não arreda da narrativa o peso que traz uma patologia psiquiátrica ainda sujeita a preconceitos e estigmatização. Do exercício libertador de Bia Garbato nasceu Bipolar, sim. Louca, só quando eu quero (edição Oficina do Livro), primeiro lançado no Brasil, mais recentemente exposto nos escaparates portugueses. Na obra, prefaciada pela escritora portuguesa Rita Ferro e pela crítica literária brasileira Tati Bernardi, a autora escreve sobre a sua infância, a maternidade, os relacionamentos, o caminho para perder 40 Kg, encarando de frente a compulsão alimentar. Bia sublinha que a bipolaridade não a define e que pode ser, sim, muito louca. Mas só quando quiser. Além de autora do livro que nos serve de pretexto para uma conversa, Bia Garbato assinou um livro infantil e é colunista do site da Rádio Jovem Pan e da revista Vero. Na calha, está um novo livro.
“A Perturbação Bipolar (...) é uma patologia psiquiátrica crónica que se caracteriza por variações acentuadas do humor. Tipicamente, manifesta-se por períodos de elevação do humor e aumento da energia e da atividade (mania ou hipomania) alternando com fases de depressão e diminuição da energia e da atividade”. Esta é a definição pura e dura. Mas, a Bia Garbato traz-nos a patologia vivida no dia a dia, na primeira pessoa. Quer dar aos leitores uma definição menos fria e mais humana?
O transfono bipolar é uma doença que atinge 140 milhões de pessoas no mundo. Nesta doença vai encontrar dois polos de humor, a extrema energia e a depressão. A depressão é tristeza e choro, mas não é só isso. É um estado de muito sofrimento, de muita angústia, a pessoa deixa de ter prazer e alegria nas coisas que faz. A autoestima vai para o chão, há muita culpa, há muito medo. No transtorno bipolar, essa falta de energia e letargia é muito acentuada e vem acompanhada de fobia social. Nesse estado de depressão, muitas vezes precisei de ajuda para fazer coisas básicas, como tomar banho ou alimentar-me. Mas, claro, tem o outro polo, que é a mania, também conhecida como euforia, um estado de energia extrema. Não dorme nada, mesmo que tome medicamentos para tal. Há uma agitação física e mental muito grande. Tem também alguns sintomas como a compulsão por compras, algo que conto no livro; e também tem ideias grandiosas.
O transfono bipolar é uma doença que atinge 140 milhões de pessoas no mundo. Nesta doença vai encontrar dois polos de humor, a extrema energia e a depressão.
Aliás, no livro conta a história do dia em que decidiu comprar todos os apartamentos do seu prédio...
Exatamente. Em determinado momento, juntei as ideias megalomaníacas com a confusão por compras, e, sim, tive a brilhante ideia de comprar todos os apartamentos do meu prédio. Queria ter ali todos os meus amigos a morar, uma espécie de Friends [série de ficção norte-americana]. Levei a ideia adiante e fui visitar os apartamentos que estavam à venda no meu prédio. Pedia financiamentos, negociava o preço. Como queria comprar todos os apartamentos, fui negociar com os restantes moradores. Cheguei a pedir um empréstimo. Mas, felizmente, o meu marido travou esse meu projeto. Isto serve para ilustrar um episódio muito grave de mania e a forma como esta doença pode levar ao descolamento da realidade. Mas, parte da bipolaridade também mora na estabilidade. Temos esses períodos de estabilidade.
Escreve no livro que tem de gerir em si a “rainha do karaoke” e a “crise de ansiedade porque recebeu uma mensagem de áudio no WhatsApp.
Por exemplo, a questão que refere do áudio no WhatsApp, liga-se aos sintomas da fobia social que é muito característico da depressão. Então, qualquer contato, mesmo que seja uma mensagem, gerava-me uma crise de ansiedade. Por outro lado, quando ficava com mania, pegava no telefone e ligava de A a Z para todos os meus amigos para lhes dizer que estava com saudades.
Os períodos de estabilidade de que fala permitem ao bipolar perceber os extremos? Ou seja, nos períodos de estabilidade conseguia fazer uma análise racional do seu comportamento mais extremado?
Sim, mas com o tempo. O meu primeiro episódio psiquiátrico foi aos 16 anos. Foi uma síndrome de pânico e tudo começou com a perda de uma borracha. Estava na última prova da disciplina de química, não encontrava a borracha, fiquei obcecada com aquilo, e saí de rompante da sala de aula. Enfrentei uma crise de ansiedade, uma crise de pânico, sem perceber o que estava a acontecer. Depois, tive uma depressão. A depressão é muito clara. É momento em que a gente vai procurar ajuda, vai a um psiquiatra. Só que o período de mania, quando nos sentimos muito bem, é de felicidade extrema. Aí, não procura ajuda. Então, demorei mais ou menos dez anos entre a primeira crise psiquiátrica até fechar o diagnóstico de transtorno bipolar. Ninguém quer um remédio para curar o bem-estar. Só que esse estado de mania inclui impaciência, irritabilidade e agressividade. Pode ser muito complicado, principalmente para quem está ao redor.
O meu primeiro episódio psiquiátrico foi aos 16 anos. Foi uma síndrome de pânico e tudo começou com a perda de uma borracha.
O seu livro é sobre vulnerabilidade, mas também sobre força. Concorda?
Sim, porque, querendo ou não, foi uma história de superação. Esta doença é muito difícil, ela tirou-me muitas coisas. Não me comprometia a longo prazo com nada. Era muito difícil manter o emprego. Fechava-me, não contava o meu problema a ninguém. Preferia pedir a demissão a pedir uma licença.
É sempre radical.
Sim, vivemos nos extremos. Exatamente, é uma vida muito instável, é muito difícil planear.
No seu livro expõe-se e fá-lo em diferentes dimensões, a sua bipolaridade, a maternidade, os relacionamentos, etc. No fundo o que nos dá é a sua experiência de vida. Foi um ato muito ponderado o de escrever este livro?
Tive uma trajetória muito solitária, principalmente antes da pandemia, porque não se falava sobre o assunto. Foi o período em que mais sofri com a doença, pois não tinha redes sociais, nem psiquiatras e psicólogos que falassem sobre o assunto. Então, motivada pelo facto de me sentir muito sozinha, disse a mim mesma: “tenho de ajudar as pessoas que, como eu, estão a sofrer”. Aí, resolvi escrever o livro para contar a minha história, também com o objetivo de tentar tirar à doença o estigma social. Coloquei-me por inteiro no mundo. Ser bipolar não me define, mas é uma parte relevante do que sou e do meu percurso.
Sim, e escreve o livro no registo humorístico. Quis, com esta abordagem tirar algum do peso que acompanha este transtorno?
Exato. O livro não fala apenas do transtorno bipolar porque, eu, tal como todas as pessoas, tenho altos e baixos, tenho histórias, sou mãe. E quis levar para o livro tudo isso, mas de uma maneira leve e divertida, primeiro porque é a minha forma de ser, segundo, porque é uma maneira, também, de nos aproximarmos das pessoas e mostrar que isto não é um “bicho de sete cabeças”. É possível levar uma vida boa, uma vida normal, a partir do momento em que nos tratamos. A questão é que é muito difícil aceitar esse diagnóstico. Então, as pessoas tendem a não aceitar e não se tratam. E o problema agrava-se. Tem de aderir ao tratamento, à psiquiatra e, também, à psicoterapia por ser muito importante. E, claro, mudar o estilo de vida.
Como escreve no livro, quando recebeu o diagnóstico “finalmente as coisas se encaixaram”.
Exato. Ou seja, precisava de ouvir esta palavra para perceber tudo aquilo que já trazia até ao momento. Não sabia o que me estava a acontecer. Inclusivamente, tinha a ideia de que era louca. Agora, só sou louca quando quero [risos]. Quando chega o diagnóstico, muitas pessoas entram em choque, não aceitam. No meu caso, o diagnóstico trouxe-me alívio, acalmou-me, deu-me esperança. Só que a minha família teve dificuldade em aceitar. Não é fácil escutar que a sua filha é bipolar, é pesado. Comecei a ir ao psiquiatra, comprava os meus remédios, fazia a minha terapia, cuidava do meu estilo de vida, disciplinei o sono, fazia exercício, evitava o álcool. Com o tempo adquiri fuma rede de apoio.
Escreve que quando foi diagnosticada, muita gente a aconselhou a encobrir a doença.
Sim. Porque as pessoas confundem transtorno bipolar com dupla personalidade, com duas caras, ou seja, com uma pessoa falsa. E isso não é um facto. Como disse, temos períodos de depressão, também de mania e de instabilidade. Por conta disso, há quem diga: “ah, porque ele é bipolar, ele é louco”. Isso é realmente assustador. É uma doença como a diabetes. Se tiver a glicemia controlada pode levar uma vida normal.
Também leva para o seu livro a questão da gravidez. É um momento muito sensível na vida da pessoa bipolar?
É, na verdade o pós-parto é o maior gatilho para a crise psiquiátrica, porque tem de abdicar de muita medicação. Tem também de enfrentar as questões hormonais, o que é terrível e não dorme. À partida, já sabia que teria depressão pós-parto. É o cocktail perfeito. E a depressão pós-parto é muito cruel. Imagine o que é enfrentá-la com um filho nos braços, a quem tem de dar banho, de alimentar. Felizmente, contei com a ajuda do meu marido, da minha família.
Como reagiu o seu filho ao livro?
Antes do lançamento do livro conversei com o António, o meu filho agora com 12 anos, e falei-lhe do livro. Perto do lançamento, o António chegou perto de mim e disse-me: “mãe, posso convidar os professores para a apresentação do livro?” Gelei, e disse-lhe: “Imagina os professores, na sala de professores, conversando: “a mãe do António é bipolar”. Diz-me o meu filho: “posso convidar os meus colegas?”. Respondi com um “não”. Percebi que o António ficou chateado com as minhas negativas. No fundo, ele estava cheio de orgulho da mãe. Aí, fiz um bolo como convite e disse ao meu filho: “olha, dá para todos os professores”.
O livro da Bia tem aquilo a que chamaria de pequenas histórias. Por exemplo, a sua maratona para emagrecer quando chegou a pesar 100 Kg. Há um episódio assustador, o do Doutor Morte. Ele é uma personagem verídica, mas de certa forma também representa tudo aquilo a que a Bia se sujeitou...
Sim, porque não me sentia bem com 100 kg. Foi nesse momento que comecei a procura de uma fórmula mágica para resolver o problema de excesso de peso. Falaram-me então desse médico a quem chamavam Doutor Morte. Foi um episódio assustador. Porque, de facto, emagrecemos com a receita que essa pessoa nos prescreve, mas também nos leva à morte. Finalmente, reverti aquela situação de excesso de peso quando fui a uma clínica séria que aliou a terapia de grupo com a dieta de emagrecimento. Percebi os mecanismos da compulsão alimentar e como lidar com eles. Hoje, peso 60 kg.
Hoje, tal como escreve no livro, diz-se sóbria. Como é que define essa sobriedade?
É estar de cara limpa, estar no controle. Existe, claro, a sobriedade em relação ao álcool. Como parte do tratamento não consumo álcool nem cafeína, que é um estimulante. Acima de tudo é sentir-me bem, não precisar daquela euforia. No início, quando saía da mania, achava a vida sem graça.
Todos os dias recebo novas mensagens de pessoas que me dizem que se identificam comigo e que também aceitaram o diagnóstico de bipolaridade.
Lançou o seu livro no Brasil há perto de dois anos. Qual foi a recetividade no seu país natal?
Tem sido incrível. Todos os dias recebo novas mensagens de pessoas que me dizem que se identificam comigo e que também aceitaram o diagnóstico de bipolaridade. Há a história de uma mãe e de uma filha que se tinham zangado devido à bipolaridade da filha. A mãe comprou o livro, leu-o, deu-o a ler à filha e reconciliaram-se. São histórias como esta que vou recebendo e isso me dá uma realização muito grande, um sentido de missão.
O que sentiu quando viu o livro exposto nas livrarias?
Sempre quis escrever um livro, foi um sonho de vida. Mas, não sabia muito bem como poderia fazer isso, porque queria escrever sobre mim, as coisas que vivia. Contudo, não tinha coragem de falar sobre uma parte relevante da minha vida. Esta doença que me tirou tanto, acabou por me ajudar a realizar este sonho. Ver o livro nas livrarias é uma emoção. Confesso que tinha o receio de que ninguém fosse ler estas páginas. Mas, foi uma alegria ver que as pessoas se identificaram com o livro, o compraram, leram, elogiaram e tudo o mais. As pessoas dizem-me: “acho que vou falar da minha bipolaridade”. Respondo-lhes que podem fazê-lo, mas muito conscientemente, num momento de estabilidade, não o façam impulsivamente, porque também traz consequências.
Há um novo livro a bailar-lhe no espírito?
Sim, estou a trabalhar no segundo livro. Posso adiantar que é um romance que tem uma personagem bipolar.
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