
Nem sempre os gestos mais ousados nascem do impulso. Por vezes, precisam de silêncio, tempo, confinamento — e talvez de uma pandemia global. Em 2020, enquanto o mundo travava uma luta contra o isolamento, um homem habituado a cruzar fronteiras todos os meses começou a pensar seriamente no que vinha a adiar. “Viajava bastante e, o que era ainda melhor, conhecia pessoas de diferentes países com as quais trabalhava e tinha contacto regular”, relata-nos César Correia. Mas com a chegada da COVID-19, a realidade e os quotidianos assumiram novos contornos. “Fui forçado a ficar em casa e começar a fazer o meu trabalho atrás do ecrã de um computador, com imensas reuniões à distância, perdendo por completo o contacto direto com os colegas dos diferentes países com os quais estava a trabalhar”,
Foi nesse quotidiano suspenso — com refeições diante do ecrã e horários ditados por fusos horários díspares — que a ideia de fundar uma galeria de arte contemporânea deixou de ser um sonho longínquo. “A ideia que já tinha de um dia poder vir a ter uma galeria acabou por se tornar cada vez mais presente”. Desta forma, nasceu a Castra Leuca, no centro histórico de Castelo Branco.

“Abrir aqui a galeria não foi um salto no escuro”
Engenheiro físico de formação e com uma carreira em marketing corporativo internacional, César Correia não entregou a um impulso a abertura da Casta Leuca. “Houve, da minha parte, estudo, preparação e planeamento”. O regresso a Castelo Branco, cidade natal, foi tanto um reencontro pessoal como um posicionamento cultural: “Quis fazer algo de diferente do que abrir uma galeria numa das grandes cidades”. Acredita que há espaço — e necessidade — para estruturas privadas dedicadas à arte contemporânea no interior do país. “Faltam iniciativas deste género no interior”.
Durante a sua pós-graduação em Curadoria de na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o diagnóstico tornou-se evidente: “Há muito poucas iniciativas culturais privadas no interior do país, e isso pode ser diferenciador”.
Da madeira à arte: o espaço como manifesto
A galeria instalou-se numa antiga marcenaria. Não foi apenas uma escolha funcional — foi também um gesto simbólico. “Desde o princípio sempre tive o desejo consciente de ligar a memória, território, futuro — e eu acrescento, contemporaneidade — ao espaço físico da galeria e do centro histórico da cidade.” O acaso fez o resto: “Encontrar o espaço de uma antiga marcenaria foi uma pura e muito agradável coincidência.” À primeira visita, ficou claro o potencial. “Fiquei muito agradado com a sua história e com a arte da marcenaria que aqui se produziu durante mais de uma geração”.
Seguiu-se a transformação do espaço, através de um projeto de arquitetura pensado para respeitar o passado e preparar o futuro: “Fizemos as obras necessárias para transformar a antiga marcenaria num espaço adequado a uma galeria de arte contemporânea”.
Para o fundador, a questão territorial continua a marcar o mapa artístico português. “Sim, há uma assimetria grande entre litoral e interior no que respeita à arte contemporânea.” Mas nem tudo é ausência. “Há artistas contemporâneos que vivem no interior, onde têm os seus ateliers e locais de produção artística”. Em Castelo Branco, por exemplo, não faltam infraestruturas para criação e exposição — mas falta público: “O que penso que fará mais falta é a promoção do interesse pelas práticas artísticas, especialmente no que respeita à arte contemporânea”.
“A arte contemporânea assusta”
Esse trabalho de aproximação tem sido constante. “O diálogo com o público tem sido bastante interessante”. No início, recorda, havia um certo receio: “Algumas pessoas pareciam ter medo de entrar na galeria, e várias vezes fui à porta convidar as pessoas a entrar”. E mesmo dentro do espaço, o desconforto era visível. “Quando eram confrontadas com algumas obras, notava-se que não sabiam o que dizer”. A solução tem passado por uma mediação atenta e acessível: “Tento sempre fazer com que o visitante se sinta confortável, ajudando a perceber o que está a ver e explicando o que o artista tenta transmitir”.
As maiores surpresas chegaram, inesperadamente, da escola primária ali perto. “As crianças, como não têm ainda os filtros e os medos das críticas dos adultos, são mais livres, não têm medo de falar”. Muitas vezes, os seus comentários revelam uma leitura tão lúcida quanto espontânea: “Fazem comentários muito pertinentes”.

De Castelo Branco a Madrid
A internacionalização da Castra Leuca é hoje uma realidade. “O circuito global constrói-se escolhendo os artistas a apresentar, fazendo exposições com conceitos curatoriais cuidados, e selecionando os eventos nos quais queremos participar”. A presença da Castra Leuca na JUSTMAD 25, em Madrid, foi uma dessas conquistas. “Foi uma das maiores conquistas até agora”. Mas nem tudo é fácil. “Os principais desafios são por sermos uma galeria muito jovem e com um currículo, ainda, muito curto”.
Apesar disso, o entusiasmo cresce. “Conseguimos manter um programa de exposições, há vários artistas interessados em expor connosco, e claro, houve a participação na JUSTMAD 25, no início de março”.
A atual exposição em mostra na Castra Leuca, Serendipity, reúne duas artistas de diferentes continentes: Patrícia Borges (Brasil) e Shih Yun Yeo (Singapura). “O trabalho destas duas artistas foi-me proposto pela curadora, Sandra Birman, que tem trabalhado comigo nestes últimos tempos”. Ambas representam bem a linha curatorial da galeria: “Interessa-me trabalhar com artistas contemporâneos que utilizam técnicas ou materiais que normalmente vemos em artesanato, mas que na sua prática artística os puxam para a contemporaneidade”.
Patrícia Borges, por exemplo, “usa inteligência artificial para produzir imagens que, ao serem impressas, ganham um aspeto de cianotipias”. Já Shih Yun Yeo “utiliza tinta da China e pincéis de caligrafia chinesa, controlando robôs com algoritmos para produzir as pinturas expostas”.
Mais do que mostrar: formar
A galeria não se limita à exposição ou venda. “Gostamos de organizar conversas com os artistas que expõem na galeria para partilhar com o público as suas obras, inspirações, técnicas e visão do mundo”. Há também programas paralelos, “onde convidamos pessoas de outras atividades a conversar com o público sobre os temas da exposição, mas com outros olhos”. E sempre que possível, “organizamos workshops orientados pelos artistas expostos, onde estes mostram e ensinam as técnicas que utilizam”.
Essas atividades têm sido essenciais para criar laços com o território. “Pretendem aproximar o público dos artistas e da sua visão do mundo, tentando desmistificar o que é a arte contemporânea”. E os frutos já se notam: “Já vieram pessoas de outras cidades especificamente para eventos da galeria”.

“É preciso resiliência”
Lançar um projeto artístico fora dos grandes centros é um desafio persistente. “Infelizmente, penso que a cultura não é muito valorizada no nosso país”. O diagnóstico é direto: “Veja-se que atualmente não temos um Ministério da Cultura, com um ministro dedicado exclusivamente ao desenvolvimento e promoção cultural”. Por isso, aconselha a quem sonha com um projeto fora dos circuitos habituais: “É necessária muita força de vontade, resiliência e criar pontes com outras pessoas e instituições”.
Ainda assim, a experiência tem sido gratificante. “Tem sido muito bom receber o público e apresentar os artistas e as suas obras”. A arte contemporânea, acredita, “permite uma interação muito rica com pessoas de todas as idades”. Mas nem tudo é fácil: “A aprendizagem mais dura tem sido verificar que, apesar de um país tão pequeno e de tão boas vias de comunicação, ainda há a perceção de que o interior fica muito longe”.
Depois da exposição Serendipity, a galeria faz uma breve pausa para férias de verão. “Estão previstas duas exposições até final do ano, uma individual e outra coletiva”.
Seja qual for o programa, uma coisa é certa: em Castelo Branco, no espaço onde outrora se moldava madeira, trabalha-se agora uma nova relação com a arte.
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