Num tempo em que o sono se tornou uma das maiores fragilidades da vida moderna — pressionado pelo trabalho, pelos ecrãs e pela ansiedade — Merijn van de Laar lança um desafio inesperado. O psicólogo e cientista do sono neerlandês sugere que o problema pode não estar na falta de disciplina, mas sim no afastamento da forma como os seres humanos sempre dormiram.

O livro Dormir como um Homem das Cavernas, publicado em Portugal pela Ideias de Ler, parte de uma premissa central: o nosso corpo conserva um sistema de sono moldado por milhares de anos de evolução, que entra em conflito com os hábitos contemporâneos. A luz artificial, os horários rígidos e a obsessão pelas chamadas “boas práticas” criaram expectativas difíceis — e muitas vezes contraproducentes.

Van de Laar escreve também a partir da sua experiência pessoal. Durante anos, enquanto trabalhava como terapeuta em distúrbios do sono, enfrentou insónias persistentes. Sabia explicar aos pacientes como adormecer, mas não conseguia aplicar as próprias estratégias. Essa contradição levou-o a investigar o sono para além das recomendações convencionais, recorrendo a exemplos antropológicos de povos caçadores-recolectores.

Entre as suas conclusões está a desconstrução da famosa “regra das oito horas”, que não é uma norma universal. Para muitas pessoas, sete ou até seis horas podem ser suficientes, desde que haja recuperação e vitalidade ao longo do dia. Outra provocação do autor é a naturalidade de acordar durante a noite. Estudos etnográficos sugerem que períodos de vigília noturna sempre fizeram parte da experiência humana.

A abordagem do autor combina ciência clínica, psicologia evolutiva e vivências pessoais. No livro, defende técnicas práticas como a restrição de sono — passar menos tempo na cama para aumentar a pressão natural para adormecer — e o controlo de estímulos, que limita a associação da cama a atividades de vigília. Van de Laar rejeita, contudo, a dependência de aplicações e rastreadores de sono, que considera potencialmente geradores de ansiedade. Em alternativa, recomenda o uso de diários de sono — simples, acessíveis e mais fiáveis do ponto de vista clínico.

Não dormir pode, literalmente, matar-nos. Quantas horas de sono são suficientes?
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O livro organiza-se em três semanas de reflexão e prática. O leitor é guiado por exercícios que procuram reconectar o corpo e a mente à respiração, à luz natural e aos ritmos circadianos. Não se trata de um regresso literal à caverna, mas de uma reaproximação a hábitos alinhados com a nossa biologia.

O tom não é o de um manual rígido, mas sim o de uma exploração aberta que desmonta mitos e convida à redescoberta do sono como um fenómeno natural, imperfeito e essencial. “O nosso corpo sabe dormir”, escreve Van de Laar. “Fomos nós que desaprendemos.”

Merijn van de Laar é psicólogo, doutorado em distúrbios do sono e personalidade. Trabalhou durante vários anos no centro de medicina do sono Kempenhaeghe, nos Países Baixos, e é atualmente professor e responsável por programas de formação em Medicina Geral e Familiar na Universidade de Maastricht. Publicou diversos artigos científicos e é reconhecido internacionalmente como terapeuta especializado em insónia.

O livro, já traduzido em mais de 20 línguas, teve edições nos Países Baixos, nos Estados Unidos e em diversos mercados europeus antes de chegar a Portugal.

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

Introdução

O sono é um fenómeno mágico. Quando dormimos bem, fechamos os olhos e, sem darmos por isso, viajamos até um mundo maravilhoso para lá da consciência. Quando dormimos mal, a noite parece um castigo. Todas as noites se transformam num suplício, conduzindo frequentemente a pensamentos negativos e a um desespero profundo. E assim que o sol nasce, tememos o dia que parece não ter fim. Os problemas de concentração e de memória, as alterações de humor e a falta de energia podem ser uma consequência de noites mal dormidas.

Trabalhando como terapeuta do sono, decidi investigar as causas da insónia. No meu consultório, constatei que toda a gente perceciona o sono de maneira diferente. Conheci pessoas que mal conseguiam pôr um pé à frente do outro depois de dormirem sete horas, e outras que se sentiam perfeitamente revigoradas ao fim de cinco horas. Algumas deste último grupo nem sequer achavam que tinham problemas de sono, embora os seus parceiros jurassem o contrário.

A experiência subjetiva do sono e dos problemas de sono parecia ser um fator importante, mas vago, nas suas várias disfunções diurnas e noturnas. Foi graças a estas experiências que dei início a uma investigação científica com o objetivo de desvendar alguns dos segredos do sono. Em particular, queria saber que fatores psicológicos contribuem para os problemas de sono. Os meus pacientes expressavam frequentemente preocupação por não dormirem o suficiente e sentiam-se incapazes de resolver a questão. Poderiam traços de personalidade específicos explicar estas experiências? Seriam estes indivíduos mais perfecionistas ou compulsivos, talvez? Preocupar-se-iam mais, de uma forma geral, ou seriam mais ansiosos?

Felizmente, as pessoas que sofrem de insónia não diferem muito diferentes das que não as têm. Digo felizmente porque fiquei secretamente satisfeito com esta descoberta. Afinal de contas, eu próprio já passei por longos períodos de sono insuficiente, e gosto de pensar que não sou diferente das outras pessoas por causa disso.

Os meus problemas de sono começaram numa idade muito precoce. Quando era bebé, dormia mal. A minha mãe andava exausta à custa das noites passadas em claro por causa dos meus gritos. Desesperada, decidiu consultar o médico de família, que me encaminhou para o hospital, onde fiquei dois dias em observação. Lá, dormi como uma pedra desde a primeira noite. No entanto, assim que cheguei a casa, voltei a chorar constantemente. Os médicos e as enfermeiras acabaram por aconselhar: «Deixe o miúdo chorar até adormecer.»

“Dormir como um Homem das Cavernas”. A redefinição do sono de acordo com o psicólogo Merijn van de Laar
“Dormir como um Homem das Cavernas”. A redefinição do sono de acordo com o psicólogo Merijn van de Laar créditos: Ideias de Ler

O truque funcionou, e a verdade é que dormi bem durante anos depois desse dia. Olhando para trás, percebo que o hospital recorreu ao Método Ferber, que consiste em deixar um bebé chorar sem qualquer intervenção para que aprenda a acalmar-se e a adormecer sozinho. Hoje, este método é controverso para alguns, mas, na altura, funcionou às mil maravilhas comigo.

Aos 28 anos, as coisas descarrilaram. Estava a trabalhar como terapeuta numa clínica do sono e voltei a ser atormentado por noites mal dormidas. Demorava horas a adormecer e acordava de hora a hora, vendo o tempo passar no relógio. Durante a noite, não conseguia deixar de pensar que, assim que saísse de cama, me esperava um dia de trabalho terrível, porque não ia conseguir estar a 100%. Sentia-me profundamente envergonhado; durante o dia, tratava pessoas com insónias, e à noite não conseguia dormir. Não seguia as minhas próprias recomendações. Sentia-me como um pneumologista que aconselha os doentes a não fumar e, depois, secretamente, acende um cigarro. Não conseguia perceber porque é que, de repente, andava a dormir tão mal, e tinha dificuldade em aceitar essa realidade.

Um mês depois, o meu médico de família encaminhou-me para um psicoterapeuta. No início, senti-me pouco à vontade nas sessões: sentava-me literalmente de costas para ele enquanto ele me fazia perguntas sobre a minha infância. Anda assim, ao fim de algumas sessões, comecei a dormir melhor. Também ajudou o facto de um colega meu me ter incentivado a pôr em prática determinados aspetos da terapia do sono que eu próprio ensinava aos meus pacientes. A ideia de qualquer pessoa poder subitamente desenvolver um problema de sono intrigou-me. Comecei a investigar os mecanismos de um bom sono. Queria perceber por que razão os tratamentos regulares do sono não funcionavam com toda a gente.

“O teu mal é sono”. Porque dormimos mal e como reencontrar o caminho para equilibrar o nosso sono  
“O teu mal é sono”. Porque dormimos mal e como reencontrar o caminho para equilibrar o nosso sono  
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Só anos mais tarde é que vim a saber o que desencadeou as minhas insónias, quando descobri que alguns processos básicos, desenvolvidos nos primórdios da evolução humana, estavam a dificultar o meu descanso noturno. Para além de me surpreender, a ideia de que algo de tempos tão remotos pudesse explicar muitas das atuais teorias sobre o sono despertou a minha curiosidade. Já tinha um grande interesse pela evolução, algo que ficou comigo desde o final da adolescência, quando estudei psicologia. Apesar de ter achado aborrecidos muitos aspetos da disciplina, os módulos de psicologia evolutiva despertaram em mim uma grande vontade de aprender mais sobre o assunto. Fiquei entusiasmado ao descobrir que perdemos o conhecimento sobre o funcionamento do nosso corpo em circunstâncias naturais e que os princípios evolutivos podem explicar a expressão de emoções como medo, raiva e tristeza.

Muitos anos mais tarde, quando trabalhei como terapeuta do sono, descobri que acordar durante a noite não tem necessariamente de ser algo mau, porque os humanos antigos provavelmente passavam mais tempo acordados do que nós. No entanto, a forma como nos sentimos quando acordamos durante a noite é importante, e aprofundarei este tópico mais à frente. Provavelmente fazia sentido acordar com mais frequência durante a noite e ter períodos de vigília maiores no caso de existir uma ameaça noturna de predadores ou tribos hostis. Desta forma, a nossa tribo conseguiria reagir mais rapidamente e fugir para um lugar seguro.

Além disso, percebi que, para compreender a natureza do sono, temos de recuar até aos tempos pré-históricos, quando o corpo humano estava muito mais adaptado às condições naturais. O que é que os homens primitivos faziam para terem uma boa noite de sono? Como era o nosso sono primitivo? Os homens das cavernas preocupavam-se sempre com a qualidade do seu sono, ou, por vezes, envolviam-se em atividades que interferiam com ele, como o consumo de substâncias? Sentiam preocupações ou medos em relação ao sono? O que comiam e como é que a alimentação afetava o seu sono?

Este livro responde a questões como: por que razão a evolução pode ter levado a um sono melhor nas pessoas que se apaixonam, porque é que o sexo nos pode ajudar a adormecer, e como é que uma boa noite de descanso nos torna mais atraentes. Qual é a relação entre os antigos predadores noturnos e as preocupações modernas, e qual é o efeito do estado de espírito no sono, e vice-versa? Vou falar sobre a função dos sonhos, o sono fragmentado e outras experiências noturnas, como o sonambulismo. Que papel desempenham os sonhos nas emoções e como podem ter ajudado o Homo sapiens a sobreviver ao longo de milénios? Vou falar sobre o efeito dos estimulantes no sono. O que dizer, por exemplo, dos medicamentos para dormir? O que fazem exatamente ao nosso sono? Este livro centra-se, também, no efeito do sono na mortalidade, na saúde e nas doenças crónicas. Como podemos manter-nos saudáveis?

São muitos os livros que falam do que devemos ou não fazer para promover o sono. Dão todo o tipo de dicas sobre como pensar, agir e até sentir. Muitas vezes, essas dicas ajudam, ainda que não se perceba porquê. Neste livro, quero dar um passo em frente e ajudá-lo a compreender melhor o que são noites repousantes, porque é que precisa delas e porque é que tem um sono bom ou mau. Ao analisar a forma como provavelmente vivíamos há centenas de milhares de anos, espero dar-lhe uma ideia do contexto evolutivo do sono e de como o pode utilizar a seu favor. Quero, também, desmistificar vários mitos inúteis sobre o descanso noturno. Um exemplo é o mito das oito horas, que não está de acordo com as evidências da investigação sobre as vidas prováveis dos nossos antepassados. Com isto, pretendo reconfortar as pessoas que atualmente sofrem de insónia, ajudá-las a dormir melhor e a relaxarem quando não conseguem dormir.

Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.