A preparação mental no desporto de alta competição, tem tido um destaque crescente. Os episódios relacionados com isso durante os Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 acenderam a discussão púbica do tema e puseram-no definitivamente em cima da mesa.

Como centro especializado em saúde mental e comportamento humano, em todas as fases da vida, o PIN não é alheio à importância da saúde mental no desporto. Nesse contexto partilha aqui alguns aspetos importantes a ter em consideração na prática desportiva de elite, com os quais podemos traçar alguns paralelos para outras vivências humanas, noutras áreas de vida.

Qualquer atleta que alveja o topo, deseja evoluir constantemente. Por vezes a todo o custo. Características como a disciplina, sacrifício, e tantas outras capacidades em torno da aprendizagem são importantes para que tal se suceda.

Os meios usados neste caminho de superação são cada vez mais estudados e aprimorados. Para além do treino físico, nutrição, ou a tecnologia, a psicologia tem tomado um lugar de protagonismo.

Fora os desafios que envolvem o treino técnico, tático, físico, e estratégico, é comum ouvirmos que as dificuldades de um momento de performance são principalmente de cariz mental, e não tanto físico.

Já são inúmeros os casos de atletas e treinadores que consideram que a pequena diferença para o sucesso dos maiores vencedores se deve 80-90% a fatores mentais. Aspetos como a confiança e sentido de auto-eficácia, gestão de expetativas, lidar com a pressão, dúvidas e medos, , apresentam-se frequentemente como dificultadores de uma performance ideal para um atleta.

É neste tipo de desafios pessoais (muitas vezes não partilhados com os outros) que uma intervenção psicológica pode ser útil, no sentido de ultrapassar barreiras ou em encontrar formas mais eficazes e eficientes do atleta se relacionar com elas.

Além disso, a intervenção psicológica também pode promover fatores facilitadores de uma performance optimizada. O objetivo é atingir o máximo de potencial atlético, e uma melhor satisfação com os esforços do atleta e com a sua própria prática desportiva. E obviamente, a proteção da sua saúde mental e a prevenção de perturbação.

O episódio da renúncia da super atleta Simone Biles a várias provas às quais era candidata às medalhas, chama a atenção para isto e permite refletir sobre o caminho a seguir – o da preservação, promoção, e prevenção em Saúde Mental A estes 3 P’s acrescenta-se um quarto – a priorização da saúde mental no desporto.

Pôr a saúde mental em primeiro lugar foi exatamente o que fez ao escolher retirar-se das provas olímpicas, após ter sentido o fenómeno “twisties” (falta de noção espacial do seu corpo no ar - que pode levar a lesões graves) num salto executado durante uma prova de equipas.

Uma escolha que espantou muitos e desagradou tantos outros, que a criticaram por isso, rotulando o comportamento como uma fraqueza e a atleta como uma desistente. Felizmente, a opinião que se tornou mais popular foi a de que foi corajosa ao pôr a sua saúde à frente das expectativas dos outros (e quem sabe das próprias). Permitiu, além disto, que a temática fosse discutida e que pudessem ser feitas algumas reflexões. Entre as quais, enfatizamos as seguintes:

1. Um sinal de coragem, e não de fraqueza (a importância da vulnerabilidade)

Os exemplos de enorme esforço, aqueles que conquistam recordes, medalhas, e exibições formidáveis, são de admirar e louvar. No entanto, essas conquistas não demonstram tudo o que se passa. E apesar destas superações envolverem qualidades admiráveis, levado ao extremo, muitas vezes, infelizmente e paradoxalmente, pode ser aquilo que leva um atleta a perder uma certa estabilidade e a entrar em burnout.

Ainda após vencer a medalha de bronze na prova de Trave (Balance Beam), Simone reiterou: “Muitos passam pelo mesmo e normalmente é-nos dito para empurrar isso e seguir em frente”. “Demónios” foi um termo utilizado pela própria Simone e refere-se a um fenómeno recorrente a nível psicológico em atletas em momentos de grande tensão, stresse, dúvida e medo. Manifestam-se por pensamentos intrusivos que retiram confiança e provocam algum tipo de mal-estar.

Mais uma vez, a capacidade (que como qualquer outra é limitada) de deixar de lado a dor e sinais que urgem os atletas para parar, pode ser vista como uma manifestação de resiliência e força. E nada contra, quando tal é feito deliberadamente e de uma forma que acaba por ser regulada, ou regulatória em si. Contudo, acontece que outras necessidades pessoais e psicológicas ficam frustradas e esses esforços sacrificam outros elementos em detrimento do pouco que restava de um equilíbrio saudável (como já foi o caso da Simone e de vários outros campeões - para mais relatos, ver “The Weight of Gold”).

E o marco desta renúncia fora do esperado, está nisso mesmo - em aferir que o próprio atleta está esgotado, vai ter uma performance muito condicionada, vai sofrer, e não vai render como desejado.

Enquanto por um lado, a priori, podia olhar-se para tal decisão como medrosa e medíocre, e como sinal de proteção do ego para não passar pela vergonha de não “cumprir” com as expectativas impostas sobre ela, por outro lado podemos olhar para a decisão como corajosa por remar contra essa maré de imposições, e de pressão, que, segundo a Simone, se tornou insustentável e a colocariam em perigo. Isto é proteger a sua Saúde. Isto é ser vulnerável. É difícil de fazer, especialmente quando se trabalha extenuadamente em preparação para os JO.

Acerca da Vulnerabilidade, Dan Abrahams, um reconhecido Psicólogo do Desporto que atua especialmente no Futebol em Inglaterra (entrevista para a EWS) diz: “A Resiliência e Tenacidade no Desporto requerem vulnerabilidade... A capacidade para se ser honesto sobre sentimentos e sensações que não estão a servir de modo ajudador, como a ansiedade, preocupação, dúvida e medo. Então, o meio envolvente de treino promovido pelos Treinadores importa. Será que é dado espaço para abertura e discussão destes desafios internos?”.

Isto dá que pensar para todas as pessoas envolvidas no Desporto Profissional. Sabemos que os Psicólogos ajudam no sentido de fornecer ferramentas e recursos para que a performance e aprendizagem possam ser optimizadas, bem como no delinear de objectivos sustentáveis e desafiantes. Ao mesmo tempo, em conjugação com este intuito de melhoria, há o trabalho de ampliação da consciência, de fomentar o auto-conhecimento, de ajuda em suprir necessidades psicológicas. E, portanto há que manter um olhar atento para casos de potencial ruptura. Quais os limiares de tolerância do atleta? Qual os limiares em que o produtivo se torna improdutivo? Em que o prazer se torna em demanda ou obrigação?

2. A exigência, as expetativas, e os limites ao sacrifício

É muito difícil empatizar com a total experiência subjectiva da Simone Biles. Com isso em mente, torna-se ainda mais difícil tecer comentários e opiniões acerca das suas performances e decisões. São atletas de topo. De topo na elite mundial! O que isso acarreta é inimaginável. Provavelmente são submetidos a exigência de igual nível, a treinos em regimes de dureza extrema, a expectativas com o peso de um mundo.

Podemos considerar um fenómeno regular nestes atletas - o alargamento da sua zona de conforto e de extensão dos seus limites - é isso que traz o êxito. No entanto, é importante o tal olhar atento do próprio para reconhecer os tais limites.

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créditos: PIN

O que a Simone manifestou com a sua retirada foi a exibição dos seus limites. Uma exibição que a fez trocar a sua exibição no Pavilhão olímpico. Um sacrifício invertido daquilo que tanto sonhara e trabalhara. O sacrifício dos sacrifícios que tivera na preparação, para não sacrificar derradeiramente a sua Saúde. Uma decisão em situação limite a mostrar um limite aos seus esforços e capacidades mentais e físicas.

Recorde-se aqui uma situação análoga e interessante da vida da atleta Katelyn Ohashi.

A demonstração de auto-compaixão

Uma exímia demonstração de auto-cuidado e compaixão por si. Apesar de não se conseguir afirmar que essa compaixão tenha sido sentida na sua plenitude, podemos expressá-lo dessa forma (“exímia”), uma vez que exibe plenamente os 3 componentes do Modelo de Auto-Compaixão da Investigadora Kristin Neff. São eles: Mindfulness; Humanidade Comum; Gentileza.

O Mindfulness verifica-se na tomada de consciência e na abordagem mais equilibrada ao turbilhão de emoções e pensamentos que invadiram a Simone. Todos estes não devem, regra geral, ser exagerados nem suprimidos pela/o própria/o.

É comum acontecer uma sobre-identificação com pensamentos que dificultam o bem-estar e performance mais “clean” do atleta. Difícil é adoptar um olhar afastado, não-crítico, e não fundido com os mesmos pensamentos.

Esse foi o “combate” feito. Simone não continuou a tentar ignorar as suas “dores”. Lidar eficazmente com as mesmas requer um olhar atento e compassivo. Simone reconheceu que devia dar espaço para si para recuperar, ao invés de se isolar (não contar nada a ninguém e ‘engolir’ tudo), sofrer ainda mais com os tais “demónios”, e poder falhar redondamente se continuasse a competir naquelas condições.

Enquanto a Simone poderia ter-se julgado negativamente por esses pensamentos de abandonar as provas, e seguido tantos outros no sentido de ‘engolir ou tentar deixar de lado’ prosseguindo nas provas, ela teve a noção de que estava longe de conseguir executar aquilo que é capaz, e desfrutar. Isso demonstrou a tal Gentileza para consigo acima do turbilhão interno pelo qual devia estar a passar, evitando um sucumbir maior (Burnout) ou uma lesão grave.

Enquanto a Simone poderia (na opinião de muitos) suportar tudo, continuar e ficar feliz, há outro factor a realçar aqui. Ou seja, é frequente que atletas desta dimensão submetam bastante do seu valor pessoal e auto-estima (mais, ou menos, conscientemente) às percepções externas sobre a sua performance, dando imenso relevo a comparações, às conquistas, etc. Simone demonstrou que não depende tanto assim da sua identidade e valor pessoal no que alcança desportivamente. E esse é um passo difícil para quem vive impregnado pelos hábitos e rotinas das suas modalidades, e em que tanto da sua vida é condicionado pelo seu atleticismo.

As expetativas eram muitas. Tanto do público como da própria Simone, provavelmente. De um momento para o outro, num salto que corre mal (momento decisivo), isso pode ser desolador e levar à deceção. É corajoso prosseguir e tentar outra vez. Mas é outro nível de coragem, em determinadas circunstâncias, retirar-se e rever as suas necessidades para voltar mais sã e capaz. Foi de facto um sinal de coragem e de maturidade.

Texto: Gonçalo Marques - Psicólogo estagiário no PIN e criador da EWS