O luto é um processo linear?

O luto é a resposta a uma perda significativa, seja real (ex.: morte), funcional (ex.: papéis) ou simbólica (ex.: projetos). Trata-se de um processo universal e, simultaneamente, individual. Isto significa que, embora todos nós experimentemos uma ou mais perdas significativas ao longo do ciclo de vida, a resposta é única para cada sujeito. Está relacionada com as características únicas da pessoa, com as circunstâncias em que ela ocorre e, sobretudo, com intensidade da relação que mantinha com o objeto de perda. Tendo em conta as múltiplas variáveis que interferem neste processo, o luto não pode ser considerado um processo linear.

Esta ideia de que o luto decorre de uma forma linear e sequencial tem origem em modelos teóricos que definiam fases de luto. Talvez o mais conhecido seja o modelo de Kübler-Ross, que incluía as fases de choque e negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Embora a autora não se referisse a este processo como sendo linear – uma vez que consideravam a possibilidade de avanços e recuos – generalizou-se a ideia de que todas as pessoas teriam que passar por todas estas fases, e por esta ordem, para evoluir favoravelmente no seu processo de luto.

No entanto, a evidência empírica e a experiência clínica demonstram que esta perspetiva linear do luto não corresponde à realidade. Nem todas as pessoas passam por estas fases, embora alguns estados possam estar presentes na maioria das pessoas que experimentam uma perda. Por exemplo, é natural, que face ao choque da notícia da perda – sobretudo quando esta é inesperada –, muitas pessoas reajam com choque e negação: “Não é verdade! Isto não pode estar a acontecer!”. No entanto, a forma como cada pessoa lida com este impacto é muito diferente de pessoa para pessoa. Aliás, a mesma pessoa pode responder de forma muito diferente a duas perdas porque a intensidade da relação e as circunstâncias das perdas diferem.

O luto pode ser para toda a vida? 

A maior parte das pessoas consegue, com os seus recursos pessoais e sociais, lidar com a dor da perda e, gradualmente, adaptar-se a esta nova realidade, na ausência da pessoa que perdeu. Naturalmente, quando a relação era muito próxima, a vida não voltará a ser como antes – é necessário fazer ajustamentos na sua forma de se encarar a si própria, os outros e o mundo em geral. Esta transformação pode ser no sentido do crescimento pessoal – em resultado do seu esforço para lidar com a perda, a pessoa pode tornar-se, por exemplo, mais capaz de lidar com as adversidades, mais empática na relação com os outros, mais consciente da sua própria vulnerabilidade. No entanto, por mais anos que passem, a maior parte das pessoas continua a sentir saudade e tristeza relacionada com a perda.

Há aspetos únicos em cada relação que a pessoa sempre sentirá falta. É muito comum haver a reativação dos sentimentos de perda quando surge uma recordação, quando ouvimos uma música especial, ou visitamos aquele lugar onde já estivemos com a pessoa que morreu. Isto acontece também em momentos especiais, como as datas de aniversário ou festas familiares. Esta experiência pode manter-se ao longo do tempo, embora geralmente com menor intensidade. Atualmente, encaramos este processo como ondas de dor emocional, que numa fase de luto agudo (primeiras semanas ou meses) são muito intensas, e depois, progressivamente, têm tendência a atenuar, embora possam estar presentes por toda a vida.

Quando é que o luto se torna patológico?

O termo “luto patológico” já não é usado porque tem uma conotação negativa e estigmatizante. No entanto, há claramente um grupo de pessoas (entre 10 a 20%) que têm dificuldade em adaptar-se à realidade da perda. Isto pode estar relacionado com vários fatores, seja de ordem pessoal, interpessoal ou situacional.

Por exemplo, se a pessoa tem vulnerabilidade prévia, como antecedentes de depressão, ansiedade ou outra perturbação de saúde mental, está em risco acrescido de vir a ter complicações no luto. Também nos casos em que a relação era de grande dependência, emocional ou prática, é natural que a adaptação à perda seja mais difícil. Do mesmo modo, relações conflituosas ou distantes, onde há muitas questões pendentes são mais propensas a lutos prolongados. Aqui há geralmente sentimentos de culpa e/ou mágoa relacionadas com a insuficiente demonstração de amor ou gratidão, com o facto de nunca se ter ouvido ou dito um pedido de perdão, ou ainda não ter tido a possibilidade de se despedir como desejaria.

Outro fator fundamental na adaptação à perda é a qualidade de suporte social. Quando a pessoa não dispõe de um espaço de segurança ou se sente desautorizada no seu luto, fica naturalmente isolada nos seus sentimentos, o que tende a agravar a solidão associada ao luto. Há várias formas de desautorização, geralmente relacionadas com a desvalorização da dor da perda ou com juízos de valor em relação à forma como a pessoa vive o seu luto. Por exemplo, é frequente ouvir expressões como: “Já devias saber que ele/a ia morrer”, “São muito jovens, podem ter outros filhos”, “Já passou tanto tempo e ainda estás assim?”, “Não devias guardar as coisas dele/a, isso não te faz bem!”. Este tipo de comentários, embora habitualmente bem intencionados, fazem com que a pessoa se sinta desadequada e iniba o que realmente está a sentir, o que é prejudicial a longo prazo.

Finalmente, as circunstâncias de morte: sabemos que quanto mais inesperada e extemporânea é a morte, mais difícil será compreender e aceitar a sua realidade. Também nos casos em que a morte foi distante, por impossibilidade de acompanhar o doente em fim-de-vida – como aconteceu recentemente, na fase de pandemia, em que havia restrição do contacto com os doentes hospitalizados ou institucionalizados – pode ser difícil à pessoa reconhecer a realidade da morte. Mas é também possível que, nos casos em que houve grande deterioração física ou mental do doente, o familiar seja confrontado continuamente com imagens de grande sofrimento, que geram muita impotência. Todas estas circunstâncias de morte são potencialmente traumáticas, mas o seu impacto depende sobretudo da forma como são vividas pela pessoa. Duas pessoas diferentes podem experimentar a mesma morte de uma forma muito distinta.

Quem é Alexandra Coelho?

Alexandra Coelho

Psicóloga na Unidade de Medicina Paliativa do Centro Hospitalar Lisboa Norte desde 2007, onde é responsável pela Consulta de Luto. Doutorada em Ciências e Tecnologias da Saúde, especialização em Cuidados Paliativos, pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), onde colabora como professora auxiliar convidada, e mestre em Psiquiatria e Saúde Mental. É especialista em Psicologia Clínica e da Saúde pela Ordem dos Psicólogos Portugueses e membro do Núcleo Académico de Estudos e Intervenção no Luto da FMUL e da Sociedade Portuguesa de Estudos e Intervenção no Luto (SPEIL). Desenvolve investigação e formação profissional na área da comunicação em cuidados paliativos e intervenção no luto.

Em que situação se deve procurar ajuda psicológica e psiquiátrica?

Quando as manifestações de luto estão associadas a sintomatologia intensa e prolongada. Incluem-se aqui a saudade e anseio persistentes; sentimentos de vazio e dificuldade em investir nas relações ou nas atividades que antes eram geradoras de prazer; anestesia ou embotamento emocional; confusão e sentimento de irrealidade; mágoa, culpa, ressentimento e dificuldade em aceitar a morte; evitar pensar na perda e incapacidade de se manter funcional nas áreas social, profissional ou doméstica.

Embora haja alguma controvérsia em relação ao critério temporal, recentemente estabeleceu-se que quando estes sintomas se mantêm intensos durante mais de 12 meses após a morte, estamos perante uma perturbação de saúde mental designada Perturbação de Luto Prolongado. Esta perturbação é distinta em relação a outras, como a depressão, a ansiedade e a perturbação de stress pós-traumático, embora muitas vezes possam coexistir. Está demonstrado, também, que a Perturbação de Luto Prolongado está associada a problemas de saúde física, como a dor crónica e problemas cardiovasculares, mais consumo de substâncias, comportamentos de risco, ideação suicida e maior mortalidade.

Tendo em conta o sofrimento e os problemas que podem advir da Perturbação de Luto Prolongado, é necessário recorrer a ajuda especializada de profissionais de saúde mental.

A terapia de luto, realizada geralmente por psicólogos ou psicoterapeutas, ajuda a compreender e a expressar emoções associadas à perda, facilitando a sua elaboração, com consequente alívio dos sintomas. Possibilita também o desenvolvimento de recursos para lidar com a dor emocional e favorece o restabelecimento de relações e hábitos de vida saudáveis. Quando, associados aos sintomas de luto, surgem sintomas de depressão, ansiedade ou outros tipos de problemas de saúde mental, é necessário o tratamento farmacológico, prescrito pela psiquiatria.

Existem respostas suficientes ao nível do Estado para pessoas que fazem lutos mais difíceis?

Como sabemos, os recursos humanos na área da saúde mental são escassos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). No entanto, têm sido feitos alguns progressos. Os cuidados paliativos, em particular, têm investido bastante no suporte ao luto da família, uma vez que este é um dos seus pilares de intervenção. No entanto, o tempo dedicado ao luto é claramente insuficiente para dar resposta às necessidades existentes.

Em 2019, foi criada a Norma Portuguesa designada Modelo de Intervenção Diferenciada no Luto Prolongado em Adultos que estabelece os procedimentos de avaliação e encaminhamento na área do luto, em função das necessidades individuais. Para as pessoas com necessidades complexas no luto (i.e., com Perturbação de Luto Prolongado), foram criadas quatro consultas de luto, a nível nacional, nomeadamente no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, em Lisboa, no Centro Hospitalar Universitário S. João, no Porto, na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, em Beja, e no Centro Hospitalar Universitário do algarve, em Faro.

Embora a criação destas consultas seja um grande progresso no reconhecimento da especificidade da intervenção no luto, ainda não são de fácil acesso para a maioria das pessoas. Em primeiro lugar, por causa do desconhecimento da sua existência. Grande parte dos profissionais dos centros de saúde não está a par desta norma, pelo que não faz a referenciação.  O outro grande motivo prende-se com o facto de servirem apenas as pessoas de centros urbanos. Por último – e talvez um dos mais importantes – a falta de investimento na sensibilização para os cuidados no luto. Grande parte do sofrimento associado à perda é negligenciado, vivido de forma isolada, e sem o reconhecimento do seu verdadeiro impacto, por isso, estas pessoas nunca chegarão a solicitar ou a aceitar ajuda profissional.

O que é preciso fazer para melhorar o apoio às pessoas em luto?

Esta questão prende-se com o que acabei de dizer acima: é necessário promover a sensibilização para o tema da perda e do luto na comunidade. Embora natural, a perda por morte, implica a separação em relação a um ente querido, e isso pode constituir um dos acontecimentos de vida mais dolorosos. Por isso não se fala abertamente. Isto acontece sobretudo nas sociedades ocidentais, onde há claramente uma tendência para fugir a estes temas que nos fazem sentir vulneráveis, expostos àquilo que não podemos controlar.

No entanto, não é por falarmos na morte que ela se se torna mais assustadora - grande parte do sofrimento associado à perda e ao luto tem a ver com o isolamento e a desvalorização da dor. Paradoxalmente, quando a negamos e reprimimos, ela tende a aumentar ou a manifestar-se de outras formas – geralmente através de somatizações, fobias ou comportamentos de abuso. Se, pelo contrário, formos capazes de estar em contacto e empatizar com a dor do outro, vamos acolher melhor quem sofre.

Simultaneamente, é necessário formar profissionais a vários níveis – desde os educadores e professores, para saberem lidar melhor com as perguntas difíceis dos seus alunos, aos profissionais de saúde, que têm que transmitir más notícias e acolher o sofrimento do doente e da família. É importante também formar as forças policiais, bombeiros e outros profissionais que lidam diariamente com a morte em situação de crise. O primeiro e mais importante princípio ético é não fazer mal às pessoas. Inadvertidamente, por desconhecimento, todos estes profissionais podem cair em lugares-comuns que invalidam o sofrimento, acabando por aumentá-lo.

Finalmente, para garantir a equidade no acesso a serviços especializados de apoio ao luto, é necessário criar mais estruturas de suporte a nível local, acessíveis à população geral. Para isso, é necessário criar uma articulação entre os serviços, no sentido de identificar e referenciar atempadamente as pessoas mais vulneráveis, de acordo com critérios clínicos rigorosos. Isto é importante por dois motivos: é importante canalizar os escassos recursos humanos para aqueles que mais precisam de apoio e não medicalizar lutos normais.

Importa ainda lembrar que as necessidades complexas no luto requerem serviços de apoio especializado, para o qual a formação pré-graduada claramente não nos prepara.  Os currículos académicos da maioria das faculdades de psicologia não inclui formação específica na área do luto, e os conteúdos lecionados não são baseados na evidência empírica mais recente. Por isso, a maior parte dos profissionais desta área não está habilitado a intervir com casos complexos de luto prolongado. É fundamental criarmos um corpo de profissionais que possam intervir, dar consultoria e formação específica especializada na área do luto.

Por fim, a qualidade da resposta depende muito da atualização constante dos conhecimentos. Para isso, é necessário investir na investigação. Só assim, poderemos desenvolver práticas baseadas na evidência e ter dados que possam sustentar a adoção de medidas políticas de proteção na área do luto.

Sofia Gabriel e o Dr. Mauro Paulino
Edição portuguesa de “A Mensagem das Lágrimas” (PACTOR), da autoria de Alba Payàs Puigarnau, foi revista por Alexandra Coelho, Sofia Gabriel e Mauro Paulino

Os grupos de luto podem ser úteis?

Sim, os grupos podem ser muito úteis porque garantem a reciprocidade entre pessoas que muitas vezes se sentem descontextualizadas, estranhas, diferentes em relação a todas as outras que não passaram pela experiência de perda. Por exemplo, para os pais que perderam um filho, pode ser fundamental falar com outros pais que passaram por uma experiência equivalente. Isto permite-lhes sentirem-se mais acompanhados, menos sozinhos na sua dor.

Além disso, podem ser promotores de esperança – “se outros conseguem lidar com a perda, é possível que eu também consiga”. É comum as pessoas em grupo aprenderem com os outros novos significados que, individualmente, talvez não conseguissem alcançar. Aquilo que um participante diz ressoa dentro de cada um dos presentes, potenciando mais consciência de si própria e dos outros à sua volta.

Mas é necessário garantir que este espaço seja de segurança para evitar comparações e julgamentos. Para isso, é fundamental a existência de um moderador com formação específica na área do luto (profissional ou par), com a capacidade de gerir relações e facilitar a comunicação.

Outro aspeto a salientar é que nem todas as pessoas têm indicação para participar num grupo. Por exemplo, pessoas numa fase inicial do processo de luto, que ainda estão muito desreguladas emocionalmente, terão dificuldade em lidar com a dor dos outros; não têm, sequer, a capacidade para se vincularem porque estão absorvidos pela sua dor. Outras contra-indicações são a sobremedicação, o uso de substâncias ou a ideação suicida. Estes casos são muito complexos e requerem um acompanhamento individual prévio para estabilizar os sintomas, caso contrário, a ativação emocional do grupo pode ser altamente desorganizadora.

As pessoas estão preparadas para lidar com o luto de outrem?

Ao longo da vida, ninguém nos prepara para a morte e o sofrimento da perda. Ensinam-nos a pensar o futuro com as dificuldades que lhe são inerentes, mas raramente nos dizem o que fazer e como lidar quando alguém que nos é querido morre. É a vida que, inevitavelmente, nos confronta com essa realidade. E sendo tão dolorosa, é natural que a evitemos – afastamos os pensamentos, fugimos das conversas, não encontramos as palavras para dizer ao outro. É realmente muito difícil ajudar uma pessoa que está num sofrimento tão grande, não há nada que minimize a sua dor. E como isso nos gera impotência e frustração, há que recorrer a frases feitas, numa tentativa de consolo imediato que nos alivia do embaraço do silêncio: “Isto vai passar”, “O tempo ajuda”, “Não chores”. Alivia-nos mais a nós, que as dizemos, do que ao outro, que as ouve. E embora sejam ditas com a melhor das intenções, revelam apenas uma incapacidade para realmente ouvir e tolerar a dor do outro.

Porque é que apesar de a morte ser algo natural e inevitável ainda sofremos tanto com ela?

Porque morte representa separação em relação a pessoas que nos fazem falta. Como seres mamíferos, desde que nascemos, precisamos dos outros para sobreviver. E não só porque os outros nos alimentam quando somos crianças. Dependemos dos outros sobretudo pela segurança que nos inspira uma pessoa que é constante na nossa vida. Chamamos-lhes, por isso, figuras de vinculação. E os vínculos significativos são o que nos prendem à vida. Ora, quando um desses vínculos se rompe, a minha segurança fica abalada, assim como a minha ligação à vida. Se o outro me completa, preenche a minha vida, perdê-lo significa ficar amputada de uma parte de mim. E é por isso que dói tanto, mesmo fisicamente.

Apesar de natural e inevitável, a morte é uma ameaça real à nossa existência, que questiona o nosso sentido de permanência, de previsibilidade e de controlo. Que nos torna infinitamente pequenos e vulneráveis. Que desperta fantasias e interrogações – como será depois? Mas talvez também por tudo isto, a possibilidade de transcender o sofrimento da morte e da separação pode ser muito transformadora. Pode tornar-nos mais empáticos, conscientes dos nossos limites, mais capazes de amar e de valorizar a vida.